28/02/10

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"Peregrino"


Teu destino é andar
pelo mundo

Estar a caminho

Bater às portas dos palácios
perguntar
se mora alguém

Que o pão da poesia
não falte na tua mesa incerta

Manuel Silva-Terra In "o que sobra", Editora Casa do Sul, s/c, 2008, p 43.
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27/02/10

"dar-lhe essa certeza de se achar em casa"

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quantas vezes quem se afasta não sabe regressar
porém sem que suspeite a sua morada segue-o
e mesmo perdido não se encontra longe

tudo é uma questão de realidade
assim os peregrinos mais que os aventureiros
são reais

num tempo que se agita é um bem estar parado
num tempo de homens lentos é melhor a agilidade
deste modo a quietude conhece o movimento
e o movimento transporta o Deus imóvel

mesmo nas cidades mais ignorantes
é possível e é belo ritmar o coração
dar-lhe essa certeza de se achar em casa

os furtivos os trânsfugas os vertiginosos
não fogem nem caem - apenas são errantes
enganam-se de morte e não sabem o lugar

Carlos Poças Falcão in "A Nuvem", Pedra Formosa, Guimarães, 2000, p 70.
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26/02/10


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Para sobreviver, nunca precisei dos conhecimentos máximos;
tão pouco das horas que se misturavam com os meandros
com os altos e baixos da vida; com a infância que desejei ter vivido;
com a gente que me rodeou, ou que ajudei a que me rodeassem
naquela pontualidade extrema
que foi sempre um dos meus sagrados defeitos. A partir daí
fui de encontro à expressão que julguei coerente e sincera
tentando compreender as ajudas e os apoios
os sentimentos de aproximação e as rejeições
os dogmas e os círculos que se abriam e fechavam
conforme os desejos e os entendimentos.
Tudo isso procurei apreender. No melhor e no pior.
Com dificuldades maiores ou facilidades menores.
No entanto...

José Manuel Capêlo in "A Noite das Lendas", Aríon Publicações,
2000, p 26.
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25/02/10

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    "Alhambra"


Deitado
à sombra das laranjeiras
em flor
posso esperar
que caia a última
pétala branca sobre os olhos
e os feche para sempre

Manuel Silva-Terra in " o que sobra", Editora Casa do Sul,
s/c., 2008, p 27.
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23/02/10

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       "Amazigh"


Caminhas quase sem te moveres
os campos estendem um corpo
colado ao teu
em íntima escuridão
Quando avanças ponte fora
um dos teus ombros brilha como marfim

Nós não os ouvimos
mas os desertos, os oceanos, os cimos remotos
ensinam-te finalmente o que não entendes

Descobres uma casa
noutras direcções
a igual distância
da vida que deixamos para trás

José Tolentino Mendonça in "O Viajante Sem Sono", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2009, pp 35 - 36.
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22/02/10

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fait-on la chasse aux colombes?

je m'assieds au second rang
ma vue de là porte plus loin
mes oreilles entendent mieux
et ma voix résonne plus fort
l'amertume ne me ronge pas
je ne me pousse pas du coude
je prends mieux mes aises qu'au premier rang

comment tirer sur les colombes?

de ma chaise tournante
je mesure à merveille les crânes chauves
et les ventres obèses
subtil est le mensonge
qui dit que moi Ali Podrimja
je suis un citoyen de second rang
de la planète ka ka

vrai chasse-t-on les colombes?

Dieu me garde
de siéger au premier rang
flanqué de pierres tombales
et de tirer sur les colombes

Ali Podrimja in "Défaut de verbe" (édition bilingue), Cheyne Éditeur,
Le Chambron-sur-Lignon, 2000, p 95 (Tradução do albanés para o
francês de Alexandre Zotos.)
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21/02/10

"neste assombro de navegar e dar a volta ao mundo"

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Estou na página. neste falso regaço materno
neste assombro de navegar e dar a volta ao mundo
da maneira mais estranha

as crianças vêm aconchegar-se aqui
quase sempre tristes,

esmagam a luz nos olhos
de tanto sonho e escuridão

só quero sentir esta luz. esta luz que amei
e perdi

Maria Azenha in "de amor ardem os bosques", ed./autor, 2010, p 60.
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20/02/10

"durante anos treinei o lúmen do coração"

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Não sabes, leitor, como estou rodeada de silêncio
há uma ave onde este texto se apoia.
fecho os olhos, e o poema traz para este lugar
o búzio dos cofres

escrevo em filigranas de ar
secretas harpas de sombra
onde as primeiras letras ousam pousar.
durante anos treinei o lúmen do coração
em cântaros de sol subindo os primeiros degraus

depois habituei-me à confidência das aves
pousada na inteligência dos bosques
movidos a vento e água,
acácias entre mãos

por último a ciência da respiração
no sumo das auroras

Maria Azenha in "de amor ardem os bosques", ed./aut., 2010, p 30.

Nota - este livro, a não perder, pode ser adquirido através do endereço colocado no blogue da autora.
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19/02/10

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"souvenir de ma mère et de la lune"


quand la lune se levait au-dessus du mont Tchabrat
ma mère disait:
ta soeur s'est mise à la fenêtre

je prenais mon écharpe une cruche d'eau
et m'en allais pieds nus par la verte colline
sécher les larmes de ses yeux
essuyer ses joues pâles

quand la lune dévêtue
disparaissait dans les eaux de l'Erénik
je me laissais glisser en bas du mont Tchabrat
gardant en main sa jupe déchirée

ma mère alors se renfermait en elle-même

puis j'empoignais le marteau de mon père
brisais l'insoutenable silence
et tout le quartier dressait ses oreilles de choux
et tout le quartier implorait Dieu

ma mère souriait alors:

quand tes pas soulèvent la poussière
je te sais fruit de mes entrailles
je te sais vivant

il advint que ma mère fut changée en oiseau
et le ciel noir s'abattit sur notre toit
j'entrepris un jour de rassembler ses mots épars
puis je m'en fus de par le monde seul coupé de tout

la lune dit-on ne paraît plus au-dessus du mont Tchabrat
ni ne descend le cours de l'Erénik
peut-être éclaire-t-elle le chemin de ma mère

Ali Podrimja in "Défaut de verbe", Cheyne Éditeur, Le Chambon-sur-Lignon,
2000, pp 45 - 47 (Traduzido do albanês para o francês por Alexandre Zotos).
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18/02/10

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"20030407"
Petite histoire d'orphée au portugal
(A broken orgy of verbomania)
Mudada livremente para português
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1.
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Um dia em que orfeu acordou com a mosca
A mosca vai e acordou a musa
Que estremunhada de ralada disse:
Vade retro mosca-demo
Mai-lo orfeu que te carregue;
Ide lá ide lá
Lirar a outra freguesia!
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Orfeu bem mandado tomou a lira
E meteu-se co'a mosca no inferno:
Là-bas, je ne sais où, em francês de musa
Any where out of the world, em inglês de museu.
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2.
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Assim que o tejo encontra o estige
Que vai no verso correndo stix
A mosca salta pulga à orelha
Do velho sticadíssimo cerbereu
Cria das ceres e do teu
Que para bellum ao portão
De ródão arrojado
Não cuidava de ser cuidado.
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Ferocíssima besta - o cão
No comboio descendente
De palmela a portimão
Vinha a todos dando a trela
Uns pasmados outros no chão
Uns por verem nele o diabo
E os outros enfim então.
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3.
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Orfeu da conceição
Vindo em morro descaído
Caiu morto no samba
Acabado de chegar, caramba,
Ao carnaval de olhão.
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Dlim
Dlão.

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Jorge Fazenda Lourenço in "Cutucando a musa",
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2009, 41 - 42.
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"20031213 (2)"

Também tu, musa,
Traído nesta língua
Último nó no laço
Do fato contrariado
Escravo dela me fazes
Putinha alada
Purinha.

Jorge Fazenda Lourenço in "Cutucando a musa",
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2009, p 26.
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17/02/10

"Exorcizando sustos/ que eu próprio espantava. "

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"Para o meu bem"

Os pais tudo fizeram
para o meu bem.
Amparando quedas
da metafórica bicicleta.
Exorcizando sustos
que eu próprio espantava.
Dizendo, sem dizer,
a razão que tinha Agostinho.
Mostrando, sem mostrar,
a ética diferença.
Os pais tudo fizeram
para o meu bem.
A quem posso eu sair?

Pedro Mexia in "Vida Oculta", Relógio D'Água Editores,
Lisboa, 2004, p 30.
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"Feminina"


Eu queria ser mulher pra me poder estender
Ao lado dos meus amigos, nas banquettes dos cafés.
Eu queria ser mulher para poder estender
Pó de arroz pelo meu rosto, diante de todos, nos cafés.
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Eu queria ser mulher pra não ter que pensar na vida
E conhecer muitos velhos a quem pedisse dinheiro -
Eu queria ser mulher para passar o dia inteiro
A falar de modas e a fazer "potins" - muito entretida.
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Eu queria ser mulher para mexer nos meus seios
E aguçá-los ao espelho, antes de me deitar -
Eu queria ser mulher pra que me fossem bem estes enleios,
Que num homem, francamente, não se podem desculpar.
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Eu queria ser mulher para ter muitos amantes
E enganá-los a todos - mesmo ao predilecto -
Como eu gostava de enganar o meu amante loiro, o mais esbelto,
Com um rapaz gordo e feio, de modos extravagantes...
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Eu queria ser mulher para excitar quem me olhasse,
Eu queria ser mulher pra me recusar
........
Ah, que te esquecesses sempre das horas
Polindo as unhas -
A impaciente das morbidezas louras
Enquanto ao espelho te compunhas...
.........
A da pulseira duvidosa
A dos anéis de jade e enganos -
A dissoluta, a perigosa
A desvirgada aos sete anos...
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O teu passado, sigilo morto,
Tu própria quasi o olvidaras -
Em névoa absorto
Tão espessamente o enredaras.
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A vagas horas, no entretanto,
Certo sorriso te assomaria
Que em vez de encanto,
Medo faria.
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E em teu pescoço
- Mel e alabastro -
Sombrio punhal deixaria rasto
Num traço grosso.
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A sonhadora arrependida
De que passados malefícios -
A mentirosa, a embebida
Em mil feitiços...
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Mário de Sá-Carneiro in "Poemas Completos", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2005, pp 144 - 146.
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16/02/10

A Poesia da Catalunha: JOAN ALCOVER (1854-1926)...

" LA BALANGUERA" por MARIA DEL MAR BONET

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La balanguera misteriosa,
com una aranya d'art subtil,
buida que buida sa filosa,
de nostra vida treu el fil.
Com una parca bé cavil.la,
teixint la tela per demà.

La balanguera fila, fila,
la balanguera filarà.

Girant la ullada cap enrere
guaita les ombres de l'avior,
i de la nova primavera
sap on s'amaga la llavor.
Sap que la soca més s'enfila
com més endins pot arrelar.

La balanguera fila, fila,
la balanguera filarà.

Quand la parella ve de noces,
ja veu i compta ses minyons;
veu com davallen a les fosses
els que ara viuen il.lusions,
els que a la plaça de la vila
surten a riure i a cantar.

La balanguera fila, fila,
la balanguera filarà.

Bellugant l'aspi el fil cabdella,
i de la pàtria la visió
fa bategar son cor de vella
sota la sarja del gipó.
Dins la profunda nit tanquil.la,
destria l'auba que vindrà.

La balanguera fila, fila,
la balanguera filarà.

De tradicions i d'esperances
tix la senyera del jovent,
com qui fa un vel de nuviances
amb cabelleres d'or i argent
de la infantesa qui s'enfila,
de la vellura qui se'n va.

La balanguera fila, fila
la balanguera filarà.

Joan Alcover In "Antologia de Poesia Catalana" (a cura d'Isidor Cònsul
i Llorenç Soldevila), Raval Ediciones SLU Proa, Barcelona, 2008, pp 152 - 153.
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15/02/10

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Só no sonho os meus dias se consentem
A um nome se reduz
esta ânsia de ser
presença viva do meu gesto outrora

Eu não sei de outro nome para a ternura.

Amélia Pais
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14/02/10

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Admirável aquele
cuja vida é um contínuo
relâmpago

Na escuridão do mar
brancos
gritos de gaivotas


Matsuo Bashô in "O gosto solitário do orvalho", Assírio & Alvim, Lisboa,
1986, p 51 ( Versão de Jorge de Sousa Braga).
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13/02/10

Do capítulo "Os Sinais"...

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"XIII"

Porque te vou erguendo ó torre de papel
se cada vez comigo a sós menos me entendo

David Mourão-Ferreira In "Obra Poética - 2º Vol.",
Livraria bertrand, Amadora, 1980, p 119.
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11/02/10

"Desalento e persistência na poesia de Alice Fergo"

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Este novo livro de Alice Fergo parte de uma preocupação fundamental - a de narração: "Resumo em poucos meios o que suponho ouvir" (p. 10), "Para que me sigas não devo acrescentar mais nada." (p. 11), "Desdobro planos. Volto às fundações. Encontro a candura floral da polpa e, com dedos de leite, esfrego-a no corpo." (p. 26). Neste último excerto vislumbra-se a razão principal, e última, desta narratividade, bem como os intentos da procura que nesta obra se exibem: procuram-se as fundações, "o horizonte" (p. 13), "a nascente" (p. 25), "a cidade" finalmente conquistada (p. 53). Vê-se, portanto, que a busca empreendida, bem como a apresentação ao leitor do itinerário que ao eu-poético coube em sorte, têm por objectivo essa nascente de onde flui o rio referido no título do livro; esse solo matricial onde esta poesia pretende entrever o sentido do devir, da vida, metaforizados ambos na figura do rio.
O desvelamento desta aventura de ao mesmo tempo ser e dizer não é contudo linear, bem ao gosto de certas poéticas alicerçadas em paradigmas de cariz imediatista. Em Alice Fergo é a própria linguagem que é experienciada, pois a poeta sabe que a palavra, em seu elíptico falar, apenas por aproximação diz: "Difícil saber o guião todo. Incerto o travo das falas. Metade escuro. Metade claro" (p. 9), "Não vou contar o que imagino saber - um sentimento não se diz assim. As palavras mal recriam o que as funda. Servem a elipse" (p. 44). Consciente da vária perigosidade dos símbolos linguísticos e do grau de imprevisibilidade daquilo de que pretende falar, Alice Fergo recorre a alguns procedimentos formais que visam articular a complexidade daquilo que urge dizer com a beleza do modo como tal é feito; por conseguinte encontramos nesta obra - aliterações: "Brumoso. Bruxo..." (p.15), "A lua lambe os limos fétidos." (p. 16); oximoros: "...meninas velhas..." (p. 20); processos de tipo anafórico: "Digo o erro de amor. A ferida de ver (...); digo o mar alojado nas têmporas..." (p. 22), "E a água mói. E a água insiste. E a água não tem verbo que a escorra." (p. 45); personificações: "O rio vê tudo com uma visão faraónica e, de tempos a tempos, conta as águas pelas constelações do reino." (p. 27); enumerações (de seres concretos): "A concha. A cratera. A mulher que nascia de si pela evidência de um beijo..." (p. 28). A maestria na urdidura desta obra e, consequentemente, o excelente domínio do código linguístico, levam muitas vezes Alice Fergo a enveredar por sendas bem mais heterodoxas: "... nunca percepcionei o conflito à história. Intrigo-a" (p. 11) - atente-se à especular plurisignificação do verbo "intrigar" neste excerto; "Vou de muito longe " (p. 12) - mais do que ampliar a abrangência do verbo "ir", a poeta joga aqui com um processo de homofonia, nomeadamente com a palavra "voo"; adjectivação de carácter antitético e/ou contraditório: "... o amor é odioso..." (p. 19), "... um espinho doce." (p. 28), "... a impura sacerdotisa..." (p. 29); etapas de metaforização muitas vezes estabelecidas a partir de objectos do real imediato, do quotidiano: "Faço a sopa da minha existência." (p. 40), "Na rua um gato indiferente aos semáforos atravessa a luz." (p. 43); a afirmação de um léxico à revelia de uma tradição poética: "Sei de bisontes que pegaram no sono em salas rupestres..." (p. 54), esta associação do bisonte à força raramente foi usada na poesia portuguesa das últimas décadas - veja-se, por exemplo, a página 20 de "O jogo dos silêncios" de Maria Alberta Menéres. Depois de tudo o que temos vindo a dizer, não se pense que o novo livro de Alice Fergo tem por objectivo a demonstração de um qualquer virtuosismo formal, a frívola exibição de uma prestidigitação gratuita - é outra a nossa leitura: se a poeta usa todos os recursos que a língua lhe permite, é porque antevê árduo o seu duplo desígnio de procurar e de, ao mesmo tempo, narrar esse caminho que a sua lucidez lhe vai ditando: "Ó Minotauro, para quando o horizonte?!! (p. 13), "Volta não volta sangro-me." (p. 21), "O meu delírio não é negociável..." (p. 23). Este delírio do eu-poético, ou melhor, esta lucidez, não é mais do que a coragem de, no tempo, "junto às horas", procurar os momentos em que "se ilumina um rio"; viver e contar esses instantes-fulgor em que nosso solo matricial e dador de sentido afinal se deixa entrever.
Neste seu périplo poético vários são os estados de alma que podem ser encontrados na autora: a imprecação (cf. p. 13); a estranheza, "Dou corpo a enigmas. Recebo-os como se viessem à boca certa." (p. 29), "Estou a pontos de descobrir o que escondo, algures..." (p. 32); a nostalgia (cf. p. 16); o desalento e o desencanto: "... nua até ao infinito. Só." (p. 17), "O que poderá o futuro contra este exílio..." (p. 37), "Junto à lareira, nada que desarme as horas das suas armadilhas. Já tudo foi vivido pelos salteadores." (p. 66); a ironia amarga: "... aqui, a intriga, segundo o evangelho de Brutus." (p. 25), "Tudo me é familiar até ao fundo do prato." (p. 40); mas encontramos também momentos em que uma luminosa candura aflora: "Viagem pelos frutos dentro, aqui me tens! Aqui me entrego à substância quase divina dos dias e sou até quando." (p. 26); "Avó beija-flor - endiabrada voadora - se não te guardo, o futuro desmerece as asas do teu estro (...) Deixa que tudo arrefeça e volta noutro livro, devagarinho. Como as santas." (p. 33).
Se a narratividade se nos apresenta como um "cântico cercado" (cf. p. 63) e a busca empreendida por Alice Fergo nos aparece marcada essencialmente pelo desalento, já que os salteadores de tudo parece terem-se apoderado, dir-se-ia estarmos frente a uma poética marcada por um cepticismo radical. Mas é então que, exímia no manejo da arte poética, a poeta nos lança um último poema de cariz epigramático: "Sol. Corpo sideral em cima da mesa, a que vens?", reabrindo assim o leque de possíveis nessa dialéctica de desalento e persistência que afinal sempre houvera e que uma leitura outra facilmente recupera: "... ninguém duvidará da semente que absorve os pântanos e emerge à procura de um nome: nenúfar ou anjo ressurgido, assim nós" (p. 47). É como se a clarividência e a extrema mestria poética de Alice Fergo nos tivesse querido dizer, nesta sua conseguida obra: naquilo que em nós, e fora de nós, é, fundamentalmente desalento, talvez o sol ainda... Ou, como o título livro tão bem enfatiza: ainda aqui e ali, junto às horas, e apesar de tanta coisa acontecida, é possível que se ilumine esse rio que somos e onde somos chamados a estar.
A tese acima avançada remete-nos para o último nó temático deste texto-posfácio: o diálogo que este livro vem sempre mantendo com outros autores e áreas do saber. São várias as pontes estabelecidas com a História e a Mitologia. Quanto a autores existem situações de intertextualidade com Stendhal: "... por quem morres de morte serpentina entre a paixão do negro e do vermelho" (p. 27), de diálogo com a obra "As Cidades Invisíveis" de Italo Calvino (cf. p. 53). Mas é sobretudo com o discurso cinematográfico que essa forma de diálogo é mais nítida desde títulos de filmes tomados como referentes: "Johnny Guitar" (p. 41), "O Sabor da Cereja" (p. 51), passando pelos referidos momentos de intertextualidade, como o que é mantido com a pelicula "A Guerra das Rosas": " Talvez convalescenças da guerra das rosas e de outras lanças" (p. 46) e no poema "A palavra" com o filme homónimo de Carl Dreyer, "Agora, ela quer Deus, quer a sua palavra: quer o átomo da seda, o algodão doce, a música das árvores. Coisas assim, abençoadas, fáceis." (p. 62). Alice Fergo, que em vários dos seus poemas alude ao léxico cinematográfico ("The End" p. 4, "Ecrã a negro" p. 48...), diz-nos mesmo: "Quem lê, divaga, filma." (p. 31), "Filmo. Não legendo. Filmo. Absorvo a imagem e estimulo as fontes" (p. 42). Perante a radicalidade desta pretensão percebe-se o fascínio da poeta pela obra de Abbas Kiarostami, onde também um homem marcado pelo desalento e pelo desencanto acaba por reaprender a virtude da persistência ("Sei do sabor da cereja- almas de cerejeira são pecados encerados de sol." p. 54), aprendizagem essa mediatizada por uma figura anunciadora, que, após um ritual quase iniciático, lhe (re)ensina a olhar as estrelas. Em Kiarostami, como em Alice Fergo, quando tudo parecia absoluta esterilidade e anunciada desolação, eis que algo, rasgando o tão conhecido cenário, irrompe como "Visitação": "Sol. Corpo sideral em cima da mesa, a que vens?"
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Victor Oliveira Mateus in "Quando junto às horas se ilumina um rio" de Alice Fergo, Editora Labirinto, Fafe, 2009, pp 69 - 74.
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09/02/10

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C'est deux jours après cette lettre retrouvée que vous m'avez télèphonè, ici, aux Roches Noires, pour me dire que vous allez venir me voir.
Votre voix ao télèphone était légèrement altérèe comme par la peur, intimidée. Je ne la reconnaissais plus. C'était... je ne sais pas le dire, oui, c'est ça, c'était la voix de vos lettres que j' inventais justement, moi, quand vous aviez télèphoné.
Vous aviez dit: Je vais venir.
J'ai demandé porquoi venir.
Vous avez dit: Pour se connaìtre.
À ce moment-là de ma vie, que l'on vienne me voir ainsi, de loin, c'était un événement effrayant. Je n'ai jamais parlé, c'est vrai, jamais de ma solitude à ce moment-là de ma vie.(...)
Vous m'aviez dit qu'après ce coup de téléphone vous m'aviez téléphoné plusieurs jours d'affilée, que je n'étais pas là.(...)
Je vous ai encore demandé: Venir pourquoi? (...)
J'ai demandé quand vous arriviez. Vous avez dit: Demain dans la matinée, le car arrive à dix heures et demie, je serai chez vous à onze heures.
C'est du balcon de ma chambre que je vous ai attendu. Vous avez traversé la cour des Roches Noires.
J'avais oublié l'homme de India Song.
Vous étiez une sorte de Breton grand et maigre. Vous étiez élégant me semblait-il, très discrètement, vous ne saviez pas que vous l'étiez, ça ce voit toujours. (...)
C'était donc onze heures du matin, au début du mois de juillet.
C'était l'été 80. L' été du vent et de la pluie. L' été de Gdansk. Celui de l'enfant qui pleurait. Celui de cette jeune monitrice. Celui de notre histoire. Celui de l'histoire ici racontée, celle du premiére été 1980, l'histoire entre le très jeune Yann Andréa Steiner et cette femme qui faisait des livres et qui, elle, était vieille et seule comme lui dans cet été grand à lui seul comme une Europe.
Je vous avais dit comment trouver mon appartement, l'étage, le couloir, la porte.(...)
Et puis ça a été les coups à la porte et puis votre voix: C'est moi, c'est Yann.(...)Vous avez répété: C'est moi Yann. Avec la même douceur, le même calme.(...)
J'ai ouvert.
On ne connaît jamais l'histoire avant qu'elle soit écrite.(...)
On a parlé pendant plusieurs heures.
Toujours des livres on a parlé. Toujours, pendant plusieurs heures.(...)
Et puis le soir est venu. Je vous ai dit: Vous pouvez rester là, vous pouvez dormir dans la chambre de mon fils, qu'elle donnait sur la mer, que le lit était fait.(...)
Le premier soir vous avez dormi dans la chambre qui donne sur la mer. Aucun bruit n'est venu de cette chambre comme quand j'étais seule.(...)
Il y avait votre voix. La voix d'une incroyable douceur, distante, intimidante, comme à peine dite, à peine perceptible, comme toujours un peu distraite, étrangère à ce qu'elle disait, séparée. Encore maintenant, douze ans après, j'entends cette voix que vous aviez. Elle est coulée dans mon corps. Elle n'a pas d'image. Elle parle de choses sans importance. Elle se fait aussi.(...)
Vous vous êtes assis de nouveau face à moi et vous avez dit:
- Vous n'écrirez jamais l'histoire de Théodora?
J'ai dit que je n'étais jamais sûre de rien quand à ce que j'allais ou non écrire.(...)
Vous avez eu des larmes dans les yeux.(...)
On s'est couchés avec la lune dans le ciel sombre et bleu. C'est le lendemain qu'on a fait l'amour.
Vous êtes venu me rejoindre dans ma chambre. Nous n'avons pas dit un mot.
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Marguerite Duras in "Yann Andréa Steiner", Gallimard, Paris, 1992, pp 13 - 26.
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Sei o som dos passos
com que regressas a casa.
No quarto virado a norte,
a prevenir-nos de todos os invernos,
aguardo que prolongues em mim
a tua sombra intacta.
De frutos doces me enfeito.
Uma luz quase clandestina
inunda minhas margens
e deixa-me um rio no vinco da cintura.
O teu desejo terrivelmente puro!

Graça Pires in " O silêncio: lugar habitado", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 28.
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08/02/10

"não, não tragas a alma,/ animal sempre volátil"

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deixarei as luzes acesas
para que saibas o caminho
de regresso ao meu corpo,
não, não tragas a alma,
animal sempre volátil,
perfume fútil.
sacrifica antes uma onda
antes da noite,
um milagre para migrar
com outras aves daninhas,
vem, dá-me o fruto e a semente,
aquele lugar no corpo
onde a fonte cresce ao ar
e a nudez se faz mais pura.

João de Mancelos in "Línguas de Fogo", MinervaCoimbra,
Coimbra, 2001, p 50.
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"O meu compromisso não é contigo "

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O meu compromisso não é com a memória
com os pedaços de pele
que deixei na boca dos cães
com a inquietação das ondas
que me temperaram de sal e tempestade

O meu compromisso não é com o riso
nem com os gritos nem com as lágrimas
O meu compromisso não é com os olhares
com os murmúrios com o vento

O meu compromisso não é contigo
por mais que eu te ame
e sejas o voo da minha liberdade

O meu compromisso místico e solene
é com o corpo exacto fugidio sedutor
equívoco imperativo do não dito

O meu compromisso
é com as palavras.

Rosa Lobato de Faria In "Poemas Escolhidos e Dispersos", Roma Editora,
Lisboa, 1997, p 78.
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07/02/10

"o teu nome entrelaçado/ nos meus dedos..."

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"prece do mareante à estrela aldebaran"

aldebaran, ilha de luz,
peixe voador à entrada da noite,
bendita sejas entre as aves incendiadas
e abençoado o naufrágio do teu lume.
como o sal foi feito para os lábios,
como o oceano teme a terra,
como um rio regressa à estrela,
é dentro de ti, aldebaran,
que eu atravesso o fim da noite.
e cego, cego de tanto mar,
eu, ulisses, adormeço,
uma gaivota morta em pleno voo,
o teu nome entrelaçado
nos meus dedos, aldebaran,
sonhando ilhas por dizer.

João de Mancelos in "Línguas de Fogo", MinervaCoimbra, Coimbra, 2001, p 28.
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06/02/10

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Aqui, olhando as pessoas ao acaso,
vêm-me à lembrança aqueles dias
em que os nossos olhos se ajustavam
e tu lias, em voz alta, os autores
da nossa preferência.
Recordo isto, como um tempo
em que os pássaros vinham,
em grandes círculos, sobrevoar
a imprevisível alegria,
tecida por nossas mãos,
para iluminar, sobre a mesa,
as flores tardias de maio.

Graça Pires In "O silêncio: lugar habitado", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 11.
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05/02/10

"Esta alma, que sedenta em si não coube "

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Meu ser evaporei na lida insana
Do tropel de paixões, que me arrastava.
Ah! Cego eu cria, ah! mísero eu sonhava
Em mim quase imortal a essência humana.

De que inúmeros sóis a mente ufana
Existência falaz me não dourava!
Mas eis sucumbe Natureza escrava
Ao mal, que a vida em sua origem dana.

Prazeres, sócios meus e meus tiranos!
Esta alma, que sedenta em si não coube,
No abismo vos sumiu dos desenganos.

Deus, oh Deus!... Quando a morte à luz me roube
Ganhe um momento o que perderam anos,
Saiba morrer o que viver não soube.

Bocage In "Poesias", Círculo dos Leitores, s/c, s/d, p 98.
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04/02/10

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Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das Naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas e gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera da maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-o a toda a força,
Clamam todos à uma: "Agôra! agôra! agôra!"
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!

Olha, acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!

(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Calluda!
Sêmos probes!
Senhor dos ramos!
Istrella do mar!
Cá bamos.

Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!

Parece o Farol...

Maim de Jesus!

É tal-qual ela, se lhe dá o Sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!

Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matuzinhos!

Os mestres ainda são os mesmos d'antes:
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vascos da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Martyr São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!

Ó lanchas, Deus nos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes
"As armas e os varões assinalados..."

Lá vai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira...
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!

Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...

Adeus! adeus! adeus!

António Nobre In "Só", Publicações D. Quixote, 2009, pp 35 - 37.
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03/02/10

" que não saber voar/ foi sempre a minha lei."

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Se eu morrer de manhã
abre a janela devagar
e olha com rigor o dia que não tenho.

Não me lamentes. Eu não me entristeço:
ter tido a noite é mais do que mereço
se nem conheço a noite de que venho.

Deixa entrar pela casa um pouco de ar
e um pedaço de céu
- o único que sei.

Talvez um pássaro me estenda a asa
que não saber voar
foi sempre a minha lei.

Não busques o meu hálito no espelho.
Não chames o meu nome que eu não venho
e do mistério nada te direi.

Diz que não estou se alguém bater à porta.
Deixa que eu faça o meu papel de morta
pois não estar é da morte quanto sei.

Rosa Lobato de Faria In " Poemas Escolhidos e Dispersos",
Roma Editora, Lisboa, 1997, p 27.
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02/02/10



ATÉ BREVE !!!
(Durante dois anos habitámos o mesmo prédio. Aquele no topo da rua. Agora com a fachada já esfacelada. Eu e a Ana alugaramos o quarto andar, ela vivia num outro, mais abaixo. Depois os anos passaram... Reencontrei-a através de uma amiga comum, já ela era enorme, apesar da muita inveja que a cercava. Houve episódios originais, como aquele em que eu troquei um livro e, passados dias, o telefone tocou:
- Ó Victor Mateus...
- Como está R.?
- É só para lhe dizer que não me chamo Júlio Cunha!
- Ah, troquei os livros! - Ria eu - R., faça-me um favor: leve o livro para o seu lançamento e trocamos lá... - Creio que o meu ar desajeitado e perdido a desarmava. Gostava dela... sem precisar de lhe falar de uma antiga vizinhança.)
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01/02/10

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Doente, desmamado à força aos nove meses, a febre e o embrutecimento impediram-me de sentir a última tesourada que corta os laços entre a mãe e o filho; mergulhei num mundo confuso, povoado de alucinações simples e de frustes ídolos. À morte de meu pai, Anne-Marie e eu despertámos de um pesadelo comum: sarei. Mas ambos éramos vítimas de um mal-entendido: ela reencontrava com amor um filho que jamais abandonara realmente; eu voltava a mim no regaço de uma estranha.
Sem dinheiro nem profissão, Anne-Marie decidiu regressar a casa dos pais. Mas o insolente passamento de meu pai desgostara os Schweitzer: assemelhava-se demais a um repúdio. Por não ter sabido prevê-lo nem preveni-lo, minha mãe foi tida como culpada; tomara, tontamente, um marido que não durarara.(...) meu avô, que tinha pedido a reforma, retomou o serviço sem uma palavra de censura; minha avó, por sua vez, mostrou discreto triunfo. No entanto, Anne-Marie, gelada de gratidão, adivinhava o vitupério sob a capa dos bons procedimentos: as famílias, sem dúvida, preferem as viúvas às mães solteiras, mas por pouco. A fim de lograr o perdão, Anne-Marie gastou-se sem medida, dirigiu a casa dos pais, em Meudon e depois em Paris, fez-se governanta, enfermeira, mordomo, dama de companhia, criada, sem conseguir desarmar o mudo agastamento de mãe.(...) Louise começou a sentir ciúmes da filha. Pobre Anne-Marie: passiva, teria sido acusada de constituir um fardo; activa, era suspeita de querer mandar na casa. Para evitar o primeiro escolho, precisou de toda a coragem; para evitar o segundo, de toda a humildade. Não passou muito tempo até que a jovem viúva regressasse à menoridade: uma virgem maculada. Não lhe recusavam o dinheiro miúdo: esqueciam-se de lho dar; usou o seu guarda roupa até ao fio sem que o meu avô se lembrasse de o renovar. Mal toleravam que saísse sozinha.(...)Os convites rarearam e minha mãe desgostou-se de prazeres tão custosos.
A morte de Jean-Baptiste foi o grande acontecimento da minha vida: devolveu minha mãe aos seus grilhões e deu-me, a mim, a liberdade.
Não há bom pai, é a regra; que não se faça disso agravo aos homens, mas ao laço de paternidade que apodreceu. Fazer filhos, não há coisa melhor; tê-los, que iniquidade! Houvesse vivido, meu pai ter-se-ia deitado sobre mim a todo o comprimento e ter-me-ia esmagado. Por sorte, morreu jovem(...); deixei atrás de mim um jovem morto que não teve tempo de ser meu pai e que bem poderia ser, hoje, meu filho. Foi um mal? Um bem? Não sei; mas subscrevo de bom grado o veredicto de um eminente psicanalista: não tenho Superego.
(...) Meu pai tivera a gentileza de morrer erradamente: minha avó repetia que ele se furtara às suas obrigações; meu avô, justamente orgulhoso da longevidade Schweitzer, não admitia que alguém desaparecesse aos trinta anos; à luz desse óbito suspeito, acabou por duvidar que o genro tivesse alguma vez existido e, por fim, esqueceu-o. Nem precisei sequer de o esquecer: despedindo-se à francesa, Jean-Baptiste recusara-me o prazer de o conhecer. Ainda hoje me espanto do pouco que sei a seu respeito(...) Mas em relação a esse homem, ninguém, na minha família, soube tornar-me curioso.(...) Mais do que filho de um morto, deram-me a entender que eu era filho do milagre. Daí provém, sem dúvida alguma, a minha incrível leviandade. Não sou um chefe, nem aspiro a sê-lo. Comandar e obedecer dão no mesmo. O mais autoritário comanda em nome de outro, de um parasita sagrado - seu pai -, e transmite as abstractas violências de que padece. Nunca na minha vida dei ordens sem rir, sem fazer rir; é que não estou roído pelo cancro do poder; não me ensinaram a obediência.
A quem obedeceria eu? Mostram-me uma jovem gigante e dizem-me que é a minha mãe(...): Amo-a: mas como havia de a respeitar, se ninguém a respeita?
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Jean-Paul Sartre In "As Palavras", Livª Bertrand, Amadora, s/d, pp 17 - 21.
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