Tudo estava tranquilo. Enquanto Bifff secava o rosto e as mãos, uma brisa fez tilintar os pendentes de vidro do pagode japonês em miniatura, que estava em cima da mesa. Acordara da sua sesta e fumara o seu charuto da noite. Pensou em Blount e interrogou-se se ele já estaria muito longe. Havia um frasco de Agua Florida na prateleira da casa de banho e ele levou a tampa às têmporas. Estava a assobiar uma canção antiga e, ao descer as escadas estreitas, a melodia ia deixando um eco atrás de si. (...) O relógio da parede marcava 12h17. O rádio estava ligado e ouvia-se um debate sobre a situação que Hitler havia criado por causa de Danzing (...).
Biff atravessou a cozinha em bicos dos pés e foi à prateleira onde havia um cesto com jasmineiros-do-imperador e duas jarras cheias de zínias. (...) Começou a decorar a montra com imenso zelo. No meio do ramo encontrou uma flor esquisita: uma zínia com seis pétalas cor de bronze e duas pétalas vermelhas. A montra ficou pronta e ele saiu para o passeio, para contemplar o resultado final (...).
O céu, negro e repleto de estrelas, parecia bastante próximo do chão. Biff caminhou ao longo do passeio, parando uma vez para empurrar uma casca de laranja para a sarjeta, com o pé. No fundo da rua, dois homens estavam de braço dado. Não se via mais ninguém. O seu restaurante era a única loja aberta.
Para quê? Por que motivo tinha o restaurante aberto durante a noite, se todos os outros cafés da cidade estavam fechados? Faziam-lhe essa pergunta imensas vezes, mas nunca soubera responder. Não era por causa do dinheiro (...).
Mas ele jamais fecharia a porta à noite enquanto estivesse naquele negócio. A noite era maravilhosa. Havia pessoas que, de outro modo, ele jamais reconheceria (...).
Examinou a zínia que tinha posto de lado. Ao segurá-la na palma da mão, na claridade da luz, apercebeu-se de que a flor não era tão rara como ele supusera. Não valia a pena guardá-la. Arrancou as pétalas macias e brilhantes e, quando chegou à última, calhou-lhe "bem-me-quer". Mas quem? Quem é que ele iria amar agora? Ninguém em especial. A primeira pessoa decente que entrasse no restaurante e se sentasse durante uma hora, a tomar um copo. Mas não havia ninguém. Todos os seus amores havia desaparecido. Alice. Madeline e Gyp. Findos. Deixando-o numa situação melhor ou pior. Qual seria? Dependia da forma como se olhasse para a situação.
E Mick. Aquela que, nos últimos meses, vivera estranhamente no seu coração. Teria este amor chegado ao fim também? Sim. Findara. Agora, Mick aparecia no princípio da noite, para tomar uma bebida fria ou para comer um sundae. Tinha crescido. Perdera por completo o jeito infantil. Agora, tinha um porte elegante e delicado. (...) Ele olhava-a e já só sentia ternura. O sentimento antigo desaparecera. Durante um ano, esse amor florescera invulgarmente. Ele questionara-o inúmeras vezes, sem nunca obter esposta. E agora, como uma flor de Verão que murcha em Setembro, esse amor desaparecera. De vez.
(...) Biff estava absolutamente imóvel, absorto nos seus pensamentos. Depois, subitamente, sentiu qualquer coisa despertar dentro de si. O seu coração deu um salto e ele encostou-se ao balcão, para evitar cair. Viu a interminável passagem da humanidade através dos tempos. E viu os que trabalhavam e os que, numa só palavra, amavam. Depois, sentiu uma espécie de advertência, um poço de horror. Encontrava-se suspenso entre os dois mundos. Contemplou o seu próprio rosto reflectido no vidro do balcão à sua frente. A transpiração cintilava-lhe na testa e Biff tinha o rosto contorcido (...) fitava, incrédulo, um futuro de escuridão, de erros e ruína. Encontrava-se suspenso entre a Luz e a Escuridão. Entre a ironia e a fé. Desviou o olhar.
(...) Mas, santo Deus, ele era um homem inteligente ou não? Como é que o terror o conseguia esmagar daquela forma, quando ele nem sequer sabia o que o provocava? Iria deixar-se ficar ali parado, como um palerma completamente apavorado, ou encher-se de coragem e de juízo? Biff molhou o lenço na torneira e levou-o ao rosto tenso e cansado. Lembrou-se de que ainda não tinha recolhido o toldo. Encaminhou-se para a porta, com um passo firme. Quando voltou para dentro, já se encontrava suficientemente recobrado para esperar o romper do sol.
Carson McCullers in " O coração é um caçador solitário". Editorial Presença,
Lisboa, 2010, pp 351 - 355.
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