29/04/12

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  " Não passarão "


Não desesperes, Mãe!
O último triunfo é interdito
Aos heróis que o não são.
Lembra-te do teu grito:
Não passarão!

Não passarão!
Só mesmo se parasse o coração
Que te bate no peito.
Só mesmo se pudesse haver sentido
Entre o sangue vertido
E o sonho desfeito.

Só mesmo se a raiz bebesse em lodo
De traição e crime.
Só mesmo se não fosse o mundo todo
Que na tua tragédia se redime.

Não passarão!
Arde a seara, mas dum simples grão
Nasce o trigal de novo.
Morrem filhos e filhas da nação,
Não morre um povo!

Não passarão!
Seja qual for a fúria da agressão,
As forças que te querem jugular
Não poderão passar
Sobre a dor infinita desse não
Que a terra inteira ouviu
E repetiu:
Não passarão!

   Torga, Miguel. Poesia Completa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, p 732.
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27/04/12

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 " Plateia "


Não sei quantos seremos, mas que importa?!
Um só que fosse, e já valia a pena.
Aqui, no mundo, alguém que se condena
A não ser conivente
Na farsa do presente
Posta em cena!

Não podemos mudar a hora da chegada,
Nem talvez a mais certa,
A da partida.
Mas podemos fazer a descoberta
Do que presta
E não presta
Nesta vida.

E o que não presta é isto, esta mentira
Quotidiana.
Esta comédia desumana
E triste,
Que cobre de soturna maldição
A própria indignação
Que lhe resiste.

   Torga, Miguel. Poesia Completa. Lisboa: Publicações D. Quixote, 2000, p 626.
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26/04/12

" Biografia "


Sonho, mas não parece.
Nem quero que pareça.
É por dentro que eu gosto que aconteça
A minha vida.
Íntima, funda, como um sentimento
De que se tem pudor.

Vulcão de exterior
Tão apagado,
Que um pastor
Possa sobre ele apascentar o gado.

Mas os versos, depois,
Frutos do sonho e dessa mesma vida,
É quase à queima-roupa que os atiro
Contra a serenidade de quem passa.
Então, já não sou eu que testemunho
A graça
Da poesia:
É ela, prisioneira,
Que, vendo a porta da prisão aberta,
Como chispa que salta da fogueira,
Numa agressiva fúria se liberta.

  Torga, Miguel. Poesia Completa. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2000, p 561.

25/04/12

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Pena que as revoluções
não as façam os tiranos
se fariam bem em ordem
durariam menos anos

liberdade sairia
como verba de orçamento
e se houvesse qualquer saldo
se inventava suplemento

pagamento em dia certo
daria para isto aquilo
o que sobrasse guardado
de todo o assalto a silo

mas o que falta aos tiranos
é só imaginação
e o jeito na circunstância
é mesmo a revolução.

   Silva, Agostinho da. Uns poemas de Agostinho. Lisboa: Ulmeiro, 1997, p 86.
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23/04/12

"foi na rua das Musas/onde ainda hoje as lágrimas fabricam lama"

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( Como desde rapazinho só convivia com os meninos
finos da Foz, de vez em quando metia-me no eléctrico
e ia visitar o sítio onde nasci de pais pobres e límpidos.)

Na rua das Musas
onde nasci já aos gritos
(que nunca acordaram ninguém);

foi na rua das Musas
onde ainda hoje as lágrimas fabricam lama
nas lajes de granito
que jurei por ti, mãe,
tornar o sol menos imundo
com este grito

"Poeta,
arranca a Chama
( isto é: o Frio)
que existe no fel
das raivas sujas
- e com ele
incendeia
o mundo."

 Ferreira, José Gomes. Obras de José Gomes Ferreira, Poeta Militante - 3º Vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, pp 202 - 203.
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"enquanto se colam nos lábios dos ditadores/ mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,"

( Vejo passar gente monstruosa através
da montra do café. Pesadelo.)

 

Alguns destes monstros
já nasceram como os vejo de mordaças de pano cru,
açames de gelo,
simulacro de dentes com fome a sorrir (chora-se melhor assim),
silêncio por fora das palavras
de que ninguém já sabe o sentido
sem desterro.

Outros entraram nas escolas
de bocas ainda livres
- mas logo corriam os senhores professores com agulhas enfiadas de treva
a coserem-lhes os lábios
com teias de aranha.
E ai de quem não desaprendesse
que os números têm a cor misteriosa dos dedos
- e fechem por favor as crianças nos quartos às escuras,
ensinem-nas a sonhar
a instrução primária dos cárceres
(contanto que não sonhem alto).
Os mais velhos,
esses operam-se,
substituem-se-lhes as cordas vocais por guitarras de açúcar ardente,
enquanto se colam nos lábios dos ditadores
mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,
e pequenos aparelhos transparentes de repetir ecos.

Outras vezes encosto-me
à porta do café
à espera do Carlos ou do Fafe
contente de haver raparigas luminosas nos intervalos,
todas tão ágeis nas suas mordaças de cetim implácido,
tules de voos mentais,
filtros de véus de mel
a cheirarem tão bem a palavras lúcidas
atravessadas de risos e saliva.

De vez em quando
apetece-me quebrar os vidros do café
e perguntar aos monstros
(por gestos, visto as próprias palavras já serem mordaças):
como conseguem comer
com dentes de algodão em rama?
E onde aprenderam a sorrir assim
com as gengivas forradas de sedas de punhal
e arame farpado nos bocejos?
- como se as mordaças tornassem o mundo mais azul
e as línguas beijassem melhor
fechadas em redomas de cristal.
Agora só falta amordaçar o resto,
o vento, os pássaros, as fontes, os vulcões, o fogo,
as maçãs, os oboés, os tufões,
a desordem do sonho.

A desordem, sim. Porque a desordem já começou - informam os jornais
com alarde de tinta inquieta.
A desordem que vai destruir os tijolos do sono
nesta cidade
edificada com perfumes mortos
e materiais de luz
por arquitectos que usam principalmente a argamassa do sol
traçada de céu vivo
na construção de cofres subterrâneos dos Bancos Loucos
onde os poetas guardam o ouro das nuvens dos poentes
para as reformas na velhice.

Sim. Garantem-me e eu confirmo,
graças aos sinais secretos que aprendi para furar as mordaças
( ai dos poetas que não rasgam mordaças nem pedras!)
que já começou a desordem.

Mas uma desordem tão compassada e grave
que, pela primeira vez, não me apetece gritar
com os outros,
os que só agoram reparam nas mordaças
e deixaram de ouvir
os violinos de viverem mortos,
como quem pede desculpa de haver relâmpagos e trovões
- a falsa linguagem dos gigantes das alturas
que faz tremer o mundo
quando se torna humana.

Mas não assim, nas bocas cerradas à força com adesivos
destes pobres anões montados em sombras de burros espectrais
que apodrecem amordaçadamente dos cascos às crinas
e mesmo quando zurram não arreganham os dentes
para acordar o marasmo do pântano
onde os combates continuam e continuarão até à última caveira do Sol,
- só com furor de ecos
em busca de lâminas
nas manhãs desistentes.

  Ferreira, José Gomes. Obras de José Gomes Ferreira - Poeta Militante, 3º Vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, pp 52 - 55.
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20/04/12

17/04/12

"(...) jantar e baile anuais do clube de golfe, que muitos consideravam o acontecimento social mais elevado..."

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  Não muito tempo depois da sua chegada ao Grand-Hôtel de Cabourg, em Agosto de 1912, Proust aceitou um convite de Charles d'Alton para estar presente no jantar e baile anuais do clube de golfe, que muitos consideravam o acontecimento social mais elevado da época estival da Normandia. No dia do baile, Proust vestiu-se e saiu para o passeio da marginal onde, entre as seis e as sete, se deveria encontrar com Nahmias, que regressava de Deauville. Proust esperou durante bastante tempo, mas o jovem nunca apareceu.
  Furioso com Nahmias por o ter deixado à espera, Proust regressa ao hotel. Quando o ciúme despontava, Proust mostrava muitas vezes uma possessividade tão dominadora e irracional como a de Swann e a do Narrador nos seus piores momentos. O escritor dirigiu a sua fúria ao jovem inconsciente, começando a escrever uma carta longa e altamente crítica, dizendo-lhe que um pequeno acontecimento como a sua falha em comparecer ao encontro podia assumir uma grande importância para alguém de fraca saúde (...)
  Proust tinha feito a pior escolha possível de palavras. Nahmias, que nessa altura já conhecia bem Proust, tinha de facto, voltado a toda a pressa de Deauville, uma decisão que se viria a revelar desastrosa. Durante o caminho para chegar a tempo ao encontro com o romancista, o carro de Nahmias atropelou uma rapariguinha, matando-a. Desconhecedor destes trágicos acontecimentos, Proust pôs a carta de lado para comparecer no jantar de gala. Depois da festa, ainda enraivecido por causa da ausência de Nahmias, Proust retomou a escrita da carta e terminou a sua acusação contra o jovem irresponsável (...).
  Ao admoestar Nahmias, Proust usou uma linguagem semelhante àquela utilizada por Swann e Charlus quando enfurecidos. Os "muito profundos e genuínos sentimentos de amizade" que ele tinha por Nahmias obrigavam-no a observar que o seu jovem amigo "não era perfeito. Nem sequer és feito de uma pedra que possa ser esculpida quando tem a sorte de aparecer a um escultor (e podes perfeitamente encontrar melhores escultores do que eu, embora eu o tivesse feito com ternura); és feito de água, vulgar, impalpável, sem cor, fluída, eternamente insubstancial, correndo infinitamente para longe". Swann utiliza imagens semelhantes e igualmente diminutivas para punir Odette numa situação análoga: "Tu és uma água sem forma que correrá por qualquer inclinação que se lhe ofereça, um peixe desprovido de memória, incapaz de pensar, que toda a sua vida no aquário continuará a colidir cem vezes por dia com a parede do vidro, confundindo-a sempre com a água." Uma observação feita no final da carta sugere que Proust já tinha concebido a famosa cena em que a mais velha amiga de Swann, a duquesa de Guermantes, estando atrasada para um jantar, não tem tempo para o escutar, embora ele tenha, por insistência dela, acabado de lhe revelar que tem uma doença terminal e que morrerá em breve. "Um dia", escreveu Proust a Nahmias, "descreverei essas personagens que, mesmo de um ponto de vista vulgar, nunca compreenderão a elegância, quando uma pessoa está vestida e pronta para um baile, de desistirem dele de forma a fazerem companhia a um amigo."(in No Caminho de Swann 1:412. Cf. O lado de Guermantes 3: 816-19)
  Reconhecemos ecos do mesmo veneno de Proust numa outra passagem, quando Charlus repreende o Narrador por ter falhado um teste anterior para corresponder às expectativas da favorável opinião inicial que o barão tinha dele: "Podes dizer que encontraste inesperadamente uma amizade de primeira categoria, e que a estragaste." ( Cf. Corr. 8: 208). Tais explosões eram muitas vezes baseadas no próprio mau feitio de Proust: a sua destruição do chapéu de Bertrand de Fénelon foi transformada no estrago provocado pelo Narrador a um chapéu de Charlus, que havia feito uma proposta semelhante à que Proust fizera a Nahmias de o esculpir numa pessoa melhor ( Cf. O lado de Guermantes 3: 758-69 ). Em Deauville, naquela noite em que Nahmias não apareceu, estava muito mais em jogo do que um chapéu novo. Quando Proust soube que o carro de Nahmias, na pressa de chegar a tempo, tinha matado uma criança, sentiu-se envergonhado.

   Carter, William C. As paixões de Proust. Lisboa: Nova Vega, 2009, pp 129 - 131.
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16/04/12

" C'est un jeu dangereux parce que quelqu'un perd obligatoirement. "

( A segunda parte deste romance de Besson, que foi, aliás, a sua primeira obra obtendo de imediato o Prémio da Academia Goncourt, é toda ela epistolar. No final da presente carta Proust fala a Vincent do seu amigo Alfred Agostinelli, cuja morte prematura num acidente de aviação traria ao romancista um dos seus maiores desgostos, que o levaria mesmo a amparar até ao fim a viúva desse seu preferido.
 Besson é hoje um dos grandes romancistas da sua geração, traduzido para cerca de duas dezenas de línguas, adaptado ao cinema, publica também nalgumas das melhores Editoras europeias.)

  Je crois en effet - pardonnez-moi - que l'amour est nécessairement la cause de souffrances.
  Apprenez que l'autre est, avant tout, celui qui nous fait ou fera souffrir car il se dérobe toujours à nous, tôt ou tard, franchement ou par des voies détournées, consciemment ou inconsciemment, totalement ou partiellement. Oui, toujours il se dérobe et nous nous trouvons dans l'impossibilité de le posséder intièrement. Posséder: le vilain mot, n'est-ce pas? Je vous entend d'ici. Et, pourtant, l'amour est, qu'on le souhaite ou non, une affaire de possession à la fin des fins. M'aimes-tu? En aimes-tu un autre que moi?
  Pis: c'est précisément parce que l'autre se dérobe qu'on l'aime davantage. C'est l'obstacle qui nourrit la passion, qui la cristallise. C'est la difficulté. C'est cette nécessité permanente de séduire, de convaincre, de garder près de soi, d'empêcher de partir qui est l'aliment de l'amour. Ainsi, nous sommes dans un cercle vicieux, perdant forcément alors que nous croyions l'emporter, vaincu au final parce que nous ne pouvions pas gagner. L'amour génère sa propre destruction.
  Je veux vous dire également que, lorsque je déclare que ceux qui aiment et ceux qui ont du plaisir ne sont pas les mêmes, je signale simplement que, dans une relation amoureuse, souvent, il en est un qui donne et l'autre qui prend, un qui s'offre et l'autre qui choisit, un qui s'expose et l'autre qui se protège, un qui souffrira et l'autre qui s'en sortira. C'est un jeu cruel parce qu'il est pipé. C'est un jeu dangereux parce que quelqu'un perd obligatoirement.
  (...) Vincent, vous avez seize ans et j'en ai quarante-cinq. De nous deux, je suis celui qui sait. De nous deux, vous êtes celui qui a raison. On a toujours raison quand on a seize ans. Ce qu'on croit à l'âge de seize ans, peu importe que cela soit ou non la vérité. Ce que l'on croit à l'âge de seize ans est plus fort que toute vérité.
  (...) Et ce n'est pas assez de dire que je l'aimais, je l'adorais. Et pourtant, je ne pourrais vous affirmer avec certitude que l'affection dont j'étais l'objet était réellement sincère car il s'y mêlait une part non négligeable d'intérêt et il m'a fallu, en bien des occasions, supporter les affres d'une jalousie épuisante alimentée par sa frivolité, son inconstance, sa cruauté parfois. Voilà bien une pauvre histoire, n'est-ce pas? C'est celle de ma vie.
  (...) Écrivez-moi, mon cher petit.

    Besson, Philippe. En l'absence des hommes. Paris: Éditions Julliard, 2001, pp 164 - 166.
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15/04/12

" Bien sûr, je sais qu'il ne faut pas forcer l'écriture... "

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( Diálogo entre Marcel Proust e o adolescente Vincent )

 Écrire exige un engagement exclusif. On ne peut rien faire d'autre que cela: écrire. On ne doit être distrait par rien. On doit se consacrer entièrement au livre, lui sacrifier tout le reste. C'est un sacerdoce, une entrée en religion. Savez-vous que même lorsque je n'écris pas, j'écris tout de même? Le temps de la contemplation, celui de l'observation, celui de la mondanité, celui de l'oisiveté sont des temps qui servent l'écriture. (...) La vie dans son entièreté est dédiée à l'écriture. Je ne vis que pour l'écriture. C'est impossible de faire autrement. Et cette nécessité devient encore plus aigue quand on sent, comme moi, le terme de sa vie se rapprocher à grands pas. Il me faut finir ces livres auxquels je me consacre. Comprenez qu'il n'y a rien de plus important que de finir ces livres. J'espère qu'il me sera laissé suffisamment de temps. J'écris dans l'urgence, dans la fébrilité, dans la terreur (...)
 Écrire est le sens que je donne à mon existence. Mon existence disparaît derrière l'écriture. Ou encore je pourrais vous dire: si je n'écrivais pas, je crois bien que je serais mort.

 Il y a vos mots qui réssonnent dans l'air vicié de cette chambre d'asthmatique, dans cette atmosphère confinée, étouffante, écrasée d'étroitesse: si je n'écrivais pas, je crois bien que je serais mort. Et, alors, je vous crois. Dans cet espace improbable, dans cette furie de l'écriture, vous cherchez à survivre, à sauver votre peau. Je trouve cela tout à la fois misérable et flamboyant, pathétique et magnifique. Je ressens pour vous une tendre pitié et une intense admiration.

  Vous reprenez: écrire est un travail. Le talent, sans doute, a un peu à voir dans toute cette affaire mais, avant tout, il faut travailler, travailler d'arrache-pied, se donner une discipline de l'effort, des règles. Ainsi moi, vous l'avez compris, quand la nuit vient, je me mets à mon bureau et je fais mes pages d'écriture. J'écris jusqu'à l'épuisement, jusqu'à la victoire sur l'insomnie, ou jusqu'à la défaillance de la main (...).
  Bien sûr, je sais qu'il ne faut pas forcer l'écriture, ne pas se forcer à écrire quand on ne se trouve pas dans des dispositions à le faire. Il faut attendre que cela vienne, que cela soit là. De même, il faudrait ne pas prolonger le moment de l'écriture. Quand on sent que c'est fini, alors c'est fini. Il ne faudrait pas s'entêter. Et, pourtant, je m'entête. Je violente l'écriture. Je la fais venir. Je la pousse à se manifester. Et je repousse sans cesse l'instant où je devrais reposer la plume. Je vous l'ai dit: seul l'épuisement peut stopper mon élan.
(..) Je bâtis une église. C'est cela que je fais. J'élève un monument. (...) Et, dans cette église, on raconte l'histoire d'hommes et de femmes, on communie dans une même ferveur, on s'approche d'une forme d'universalité.

  Besson, Philippe. En l'absence des hommes. Paris: Éditions Julliard, 2001, pp 107 - 109.
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13/04/12

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  Não sofremos com os nossos vícios, sofremos tão-só por não nos podermos conformar com eles. Conheci todos os sofismas da paixão, conheci também todos os sofismas da consciência. As pessoas imaginam que reprovam certos actos porque a moral se lhes opõe; na realidade, obedecem (têm a felicidade de obedecer) a repulsas instintivas. Ficava surpreendido, contra a minha vontade, pela extraordinária insignificância das nossas faltas mais graves, pelo escasso lugar que ocupariam na nossa vida, se o remorso não as prolongasse no tempo. O nosso corpo esquece como a nossa alma; talvez isso explique, nalguns de nós, renovadas inocências (...).
  Venci. À custa de recaídas miseráveis e de mais miseráveis vitórias, consegui viver um ano inteiro como teria desejado viver toda a minha vida. Minha amiga, não haveis de sorrir. Não pretendo exagerar o meu mérito: ter o mérito de se abster de uma falta é uma maneira de ser culpado. Dirigimos por vezes os nossos actos; não tanto os nossos pensamentos; não dirigimos os nossos sonhos. Tive alguns sonhos. Conheci o perigo das águas estagnadas. Como se agir nos absolvesse. Existe qualquer coisa de puro, mesmo numa acção culposa, em comparação com os pensamentos que dela fazemos. (...) Esse ano, em que não cometi, garanto-vos, nada de repreensível, foi turvado por mais fantasmas do que nenhum outro, e por fantasmas mais baixos. Dir-se-ia que essa chaga, que sarara demasiado depressa, voltara a abrir a alma e acabara por envenená-la. Ser-me-ia fácil fazer um relato dramático, mas nem vós nem eu nos interessamos por dramas - e há muitas coisas que se exprimem melhor não as dizendo. Assim, eu amara a vida. Era em nome da vida, quero dizer, do meu futuro, que me esforçara por me reconquistar a mim próprio. (...) instalei uma fechadura entre a minha demência e mim próprio.
  Tornei-me duro. Abstivera-me, até então, de julgar os outros; acabaria por tornar-me, se tivesse poder para tanto, tão impiedoso para com eles como para comigo. Não perdoava ao próximo as mais pequenas transgressões; receava que a minha indulgência para com os outros me conduzisse, frente à minha consciência, a desculpar as minhas próprias faltas. (...) Receava o imprevisto dos encontros mundanos, o perigo dos rostos humanos. Encontrei-me só. Depois a solidão meteu-me medo. Nunca se está completamente só: para nossa desgraça, estamos sempre com nós mesmos.

   Yourcenar, Marguerite. Alexis ou Tratado do Vão Combate. Lisboa: Difel Editorial, 1988, pp 65 - 67.
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12/04/12

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  E agora, digo-vos adeus.(...) Éreis a única criatura frente à qual eu me considerava culpado, mas escrever a minha vida confirma-me em mim próprio; acabo por vos lamentar sem me condenar severamente. Atraiçoei-vos; não vos quis enganar..(...) Tendo sido incapaz de viver segundo a moral comum, procuro, pelo menos, estar de acordo com a minha: é no momento em que se rejeitam todos os princípios que convém munirmo-nos de escrúpulos. Havia tomado convosco compromissos imprudentes que a vida viria a contestar: peço-vos perdão, o mais humildemente possível, não por vos deixar, mas por ter ficado tanto tempo.

  Yourcenar, Marguerite. Alexis ou Tratado do Vão Combate. Lisboa: Difel Editorial, 1988 - p 102.
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11/04/12

" (...) ele pediu um pano que o vento mexesse, queria pintar o movimento. "

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        " Vertebrado "

  Sempre andei por esse rio sem nunca entrar nele A balsa daqui carrega mais do que a estrutura suporta. Ela é um estrado flutuante com dois tonéis cheios de ar debaixo. Transporta farinha, peixe, animais, gente, o que puder ser empilhado.
  Ondas borrifam as crianças, primeiras da fila, ficam na frente como num comício de vereador. Foi pela balsa que atravessou um estrangeiro, ele tinha um mapa da região e perguntou no posto de saúde se alguém queria servir de modelo. Não queria doente, mas tanta gente num lugar só, era mais fácil achar um corajoso. O povo riu do rapaz. Modelo vivo pra ficar parado na frente do estrangeiro e fazer o quê? Nada. E quem ia ver o que o moço ia pintar? Se nossa cara, a barriga ou o cansaço?
  Eu topei. O quadro ele guardou, eu fiquei com uma fotografia da pintura que ele mandou ampliar e botar moldura. Pendurei na sala. Fiquei pelada não, botei um vestido rodado, ele pediu um pano que o vento mexesse, queria pintar o movimento. Eu me exibi no píer do centro. Os peixeiros já haviam saído das canoas, as luzes da vila começando acender. Ele queria copiar o final do sol, eu parecia uma cebola com as cascas esvoaçantes. Atrás de mim rebolava o rio, querendo aparecer.
  No quadro, o rio se mexe mais que o tecido, mostra os dentes. Depois de mim outras quiseram um retrato, o estrangeiro foi ficando. Os maridos não deram bola, a pintura ao ar livre, todo mundo vendo o que estava na frente e atrás da tela.
  A balsa afundou há três meses, sobrou um ou outro passageiro. Por sorte, naquele dia fiquei aqui cuidando do meu serviço. Um dos sobreviventes foi o pintor, ele vinha com um pacote de tintas que mandou trazer da terra dele. Um tonel se soltou do estrado e a balsa ia tombando, mulher aos gritos, criança chorando, urro de porco. Do píer não deu pra ver o naufrágio, soubemos do acidente um dia depois pelo pintor que deu braçadas até à beira da vila vizinha, chegou aqui sem tintas. Perguntei o que tinha acontecido, ele respondeu no meio da praça. Disse que o rio não queria mais nada sobre ele, não ia carregar esse mundaréu nas costas, dali para diante que o deixássemos sozinho. Que enfiassem anzol em lago ou mar, agora só liberava o banho, que é quando ele se acalma com o calor de um corpo.
  O povo deu o pintor por doido. O estrangeiro ficou chateado, ele já tinha visto coisa pacata se rebelar. Disse que na Índia um elefante foi criado sem a mãe e ficou delinquente. O rio a mesma coisa, se corcoveou uma vez, ia corcovear de novo, não havia outra autoridade acima dele. O rio estava orfão.
  A cidade mandaria outra balsa em um mês, a prefeitura tinha interesse nesse povo daqui que ia comprar mantimento lá. Dois meses e nada. O pintor extraiu corante de raiz e fruta, ia pintar em fibra de côco, agora até pescador queria se ver torto com o rio ao fundo. Os pescadores vendiam galinha e lagarto, os peixes começaram a se desviar de toda isca, feito gente. Em pouco tempo começou a faltar mantimento, um rapaz improvisou uma jangada, precisava levar a mãe doente para o hospital e trazer farinha. Nunca mais voltaram. Outros que foram procurá-los também não.
  A balsa lá em baixo virou alojamento de lambari. A vila podia se sustentar sozinha, era só ninguém querer o progresso. Foi a exigência do rio, que sua margem não se alterasse, o deixassem livre, sem carga. O rio era um animal vertebrado que se arrastava pelo leito, não caberia tão encaixado em outro. Há muitos anos sua cabeça e barriga haviam passado por aqui, nem vila existia. Hoje o que caminha diante de nós é sua cauda, tão longa que levará tempo pra essa água toda desaparecer. Temos que esperá-lo terminar a travessia.

   Fuego, Andrea Del. Vertebrado in um rio de contos, Antologia Luso-Brasileira. Dafundo: Editorial Tágide, 2009, pp 42 - 43 (Organização de Celina Veiga de Oliveira e Victor Oliveira Mateus).
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