13/04/12

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  Não sofremos com os nossos vícios, sofremos tão-só por não nos podermos conformar com eles. Conheci todos os sofismas da paixão, conheci também todos os sofismas da consciência. As pessoas imaginam que reprovam certos actos porque a moral se lhes opõe; na realidade, obedecem (têm a felicidade de obedecer) a repulsas instintivas. Ficava surpreendido, contra a minha vontade, pela extraordinária insignificância das nossas faltas mais graves, pelo escasso lugar que ocupariam na nossa vida, se o remorso não as prolongasse no tempo. O nosso corpo esquece como a nossa alma; talvez isso explique, nalguns de nós, renovadas inocências (...).
  Venci. À custa de recaídas miseráveis e de mais miseráveis vitórias, consegui viver um ano inteiro como teria desejado viver toda a minha vida. Minha amiga, não haveis de sorrir. Não pretendo exagerar o meu mérito: ter o mérito de se abster de uma falta é uma maneira de ser culpado. Dirigimos por vezes os nossos actos; não tanto os nossos pensamentos; não dirigimos os nossos sonhos. Tive alguns sonhos. Conheci o perigo das águas estagnadas. Como se agir nos absolvesse. Existe qualquer coisa de puro, mesmo numa acção culposa, em comparação com os pensamentos que dela fazemos. (...) Esse ano, em que não cometi, garanto-vos, nada de repreensível, foi turvado por mais fantasmas do que nenhum outro, e por fantasmas mais baixos. Dir-se-ia que essa chaga, que sarara demasiado depressa, voltara a abrir a alma e acabara por envenená-la. Ser-me-ia fácil fazer um relato dramático, mas nem vós nem eu nos interessamos por dramas - e há muitas coisas que se exprimem melhor não as dizendo. Assim, eu amara a vida. Era em nome da vida, quero dizer, do meu futuro, que me esforçara por me reconquistar a mim próprio. (...) instalei uma fechadura entre a minha demência e mim próprio.
  Tornei-me duro. Abstivera-me, até então, de julgar os outros; acabaria por tornar-me, se tivesse poder para tanto, tão impiedoso para com eles como para comigo. Não perdoava ao próximo as mais pequenas transgressões; receava que a minha indulgência para com os outros me conduzisse, frente à minha consciência, a desculpar as minhas próprias faltas. (...) Receava o imprevisto dos encontros mundanos, o perigo dos rostos humanos. Encontrei-me só. Depois a solidão meteu-me medo. Nunca se está completamente só: para nossa desgraça, estamos sempre com nós mesmos.

   Yourcenar, Marguerite. Alexis ou Tratado do Vão Combate. Lisboa: Difel Editorial, 1988, pp 65 - 67.
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