31/10/11

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 " Naufrágios "

    ( para Victor Oliveira Mateus )


Às margens do Tejo
naufrago o tédio de existir

À beira do meu tédio
um Tejo que me recolhe

Caos à deriva,
dissidente embarcação apascentando delírios,
meu olhar medieval navega numa solidão atlântica

Nau sem bússola
desconhecendo a legenda dos mares
desembarco numa infância pagã
ancorada num cais sem metafísica

No dorso veloz do passado
não posso mais cavalgar

  Ronaldo Cagiano in " O sol nas feridas ", Dobra Editorial, São Paulo, 2011, p 135.
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30/10/11

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 "Génese "


Busco na palavra sua unção,
labirinto de paradoxos
onde mergulho
feito escafandrista num garimpo de im
possibilidades

Território de invenções,
ela me estende a ponte entre o sagrado
e o profano

Em cada manhã
rompe com sua insistência de rio
e sua pontualidade solar.

Meticuloso engenho do verbo
que se faz silêncio
ou boato

Rumino sua nudez
ou desvelo suas rugas.

Entre a fuga
e os deslizes
o poema vinga

rosa intimorata perfurando o asfalto

Nutre-me do que é míngua
recicla-me do que é sangue.

 Ronaldo Cagiano in " O sol nas feridas ", Dobra Editorial, São Paulo, 2011, p 15.
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28/10/11

" São todos já os mesmos clones Dolly, "

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As barracas do Dia da Leitura
invadiram a praça e a banda estoura,
vomita decibéis e, quanto mais
potentes as colunas, mais se orgulham
aqueles fabricantes de ruído
que o alcaide iliterato de Alcobaça
contratou para a frente do mosteiro.
São todos já os mesmos clones Dolly,
e um grupo de turistas, com a guia
mais a sua agitada bandeirinha,
parece estar feliz com o barulho
que ressoa e suprime as naves góticas.
Pedro e Inês agonizam sem remédio.
Não sei como escrevi que ambos fugiam
em dois cavalos brancos. Disparate.
Isso não é real. Real hoje é
os livros nas barracas
e a banda que profana, retumbante.
Há dois séculos foram os franceses,
e amanhã nem os nomes Pedro e Inês
os filhos desta gente hão-de saber.

 Nuno Dempster in "Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo", Edições Sempre-Em-Pé,
Águas Santas, 2011, p 61.
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27/10/11

" Pedro e Inês estão vivos e caminham/ pelas ruas urbanas, são a imagem/ que salva da tristeza quem não vive "

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Daqueles que chegaram de Alcobaça
no autocarro que os trouxe, emudecidos,
de regresso à cidade e ao dia-a-dia,
em quantos se projectam Pedro e Inês?
Não é lenda, é um mito antigo, deuses
substitutos do amor que, humanos, se
foram mudando em deuses, lado a lado
com o Cristo da igreja, que também,
dizem, terá amado, e hoje é a cruz
do nosso tempo, casta e melancólica.
Nada é o que parece. Não se sabe
a vida dos divinos, a mais íntima,
a mais real, que foi e já não é,
quando uniam os corpos com furor.
Dos deuses tão-só isto atrai. Assim,
Pedro e Inês estão vivos e caminham
pelas ruas urbanas, são a imagem
que salva da tristeza quem não vive
como eles se entregaram: doidamente.

 Nuno Dempster in "Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo ", Edições Sempre-Em-Pé,
Águas Santas, 2011, p 30 "
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26/10/11

" Inês sempre doada e Pedro, que foi/ príncipe e rei, com gestos obscuros "

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Seiscentos e cinquenta anos passados,
tudo pode mudar-se, se pensarmos
que Inês, mais do que Pedro, foi filtrada
por tanta gente, tantos corações
e tão ocultamente que o mito abre
fissuras nas estátuas do mosteiro,
Inês sempre doada e Pedro, que foi
príncipe e rei, com gestos obscuros
que somente o cronista testemunha
em datas e entrelinhas, cauteloso.

 Nuno Dempster in " Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo ", Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas,
2011, p 25.
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25/10/11

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 " Compromisso "


Pertence-te
ser homem, afirmar
todos os dias que tens
um compromisso: ser claro
e brando como a luz
e, como ela,
necessário. E não deixar
crescer à tua porta
ervas daninhas.

 Albano Martins in " Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000 ", Campo das Letras, Porto, 2000, p 411.
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24/10/11

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     " Canários "


Eles são verdes, amarelos, castanhos,
vermelhos: de todas as cores do arco-íris.
Eles são um arco-íris com asas. E eu, que amo
a liberdade a qualquer preço, apaixonei-me
por um, certa vez, e meti-o numa gaiola.
Desse acto perverso me havia de arrepender
depois. Tratei-o com desvelo, dei-lhe um
lugar arejado e luminoso (conspícuo, como
diria Garrett) e assim me fez companhia por
algum tempo. Morreu semanas depois, de
saudades ou de solidão, ninguém sabe, ou
foi guilhotinado pelo descuido da empregada
doméstica, durante a minha ausência no
Brasil. Tinha morrido, ou fora morto, ou
suicidara-se. Quando voltei, encontrei a
gaiola vazia, sem o mínimo sinal ou aviso -
um bilhete sequer, de despedida.
E nunca mais houve pássaros engaiolados
cá em casa. Minto. Que os houve, sim,
mas em trânsito para o Brasil, onde tenho
um amigo que a essa profissão - não única
ou exclusiva, todavia - se dedica. Tenho-me
esforçado por convencê-lo de que também
os pássaros têm direito à liberdade. Responde-me
que os canários são aves de cativeiro, como se
alguém (e alguém são, naturalmente, as aves)
já nascesse prisioneiro. (Reconsidero: todos
nascemos prisioneiros, sim, mas de outras
prisões, de outras gaiolas mais sofisticadas,
de grades metafísicas, embora dessas e de
outras filosofias não cuide aqui.) E com ele
insisto, sem sofismas (...): mas quem nasceu
com as asas recebeu-as para voar, e não
como adorno ou instrumento de eventual
serventia (...).
Não. Se os canários são aves de cativeiro
e objecto de duvidosas experiências de
laboratório e ourivesarias ornitológicas,
para gáudio de coleccionadores e ladrões
da liberdade alheia, foram os homens que
as tornaram cativas. A eles compete, pois,
devolver-lhes a liberdade roubada. Porque
de multiplos cativeiros está cheia a história
dos homens. Todos injustos. Todos afectando
inocentes. O homem é assim: usa a fragilida-
de alheia para afirmar a sua força e impor
o seu poder. Mas todas as masmoras um dia
se abrem e nelas encontram guarida os seus
construtores. O despotismo, a que alguns
chamaram iluminado, é próprio do reino das
sombras, não da luz. E a luz não pode ser encar-
cerada. Melhor: a luz não se deixa encarcerar.
Por mais submissa que se mostre ou ordeira
que se apresente.

  Albano Martins in "Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto, 2000, pp 319 - 321.
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23/10/11

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Não sei medir-te de outro modo:
te dispo e visto o tempo todo.

Albano Martins in "Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto, 2000, p 241.
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Vamos na órbita dos ciclos que geram
a inocência. Ciclopes amarrados à visão
desprendida, nítida, das origens. Como
quando, outra vez descalços, colhíamos as
amoras e os morangos silvestres nas
tapadas onde o vento era azul, azul o
sangue. Quando eram verdes os lençóis e a
noite crescia dentro da manhã. Como cres-
cem as crianças.

E olhas em redor. Este é o círculo
perfeito onde o olhar dorido se demora e
descansa. A planície contornada por uma
vegetação rasteira e incólume. Distante
mora o fósforo dos incêndios. Em sua
cabeça exangue ardem ameaças e terrores
que adivinhas somente. Sê vigilante e subtil.
Não durmas. Ou dorme sobre o lado direito,
sem pisar o coração, que vela de olhos
fechados, mas acesos. Como um clarão, uma
medalha de ouro iluminada, um punho
inflamado erguido sem revolta. Ou dorme,
sim, como dormem os aloendros, vertical e
secreto, em teus rizomas de aço e de ternura.

E desciam então dos eucaliptos as
rolas atreladas ao carro do canto. E suplan-
tavas em agilidade, na corrida desordenada,
os galgos e as lebres. E bebias a água do
açude com teu bico de cegonha, o coração
de azevinho. Pastor de ovelhas tresma-
lhadas, dum rebanho de cabras silvestres.
Essa a tua escola verdadeira. Na cartilha
maternal das borboletas aprendeste a voar,
e ali escreveste, nas ardósia do vento, os
primeiros poemas.

 Albano Martins in "Assim são algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto,
2000, pp 199 - 201.
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21/10/11

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*

De meu e teu que resta
entre os ramos e o voo
das andorinhas?
Podes
convocar as palavras, adicionar
à voz o espanto, a ira, esgrimir
com as mais ásperas
vogais. Da morte
e seus juízos imutáveis
não há reccurso.

*
Pondero a têmpera, a feição
dos novos, ingénuos
utensílios, avalio
a transparência mineral dos gestos
mais antigos e das lágrimas
defuntas, agora calcinadas.
Cedo
ao mármore a insalubre vocação do silêncio.

*
Outros
foram os dados, outra
a mesa. O jogo,
não. A mesma
lâmina esgrime
entre a sutura
e o álcool.

*
Dêem-me um arco e recriarei a infância,
os tordos sob a neve,
o rio sob as águas.

Dêem-me a chuva e a gávea
duma figueira,
a flor dos eucaliptos,
um agapanto de água.

*
Levo comigo as árvores,
os lagos,
o vento - as suas cestas
de merenda e volúpia.
À beira
dos relâmpagos planto
uma araucária, uma raiz
de espadas flutuantes ou adagas
floridas - o crepúsculo,
talvez, cinzenta
espuma volátil
de beijos e de lágrimas.

(...)

*
De novo disporás
a lenha
sobre a pedra. Seco
e rente, nela
repousarás.

Ou no discurso
irredutível ao
som das moles
águas crepusculares.

*
Devolvo
à nascente o fluxo, ao mar a indomável
surpresa da corrente.
Posso
agora olhar
ileso os poros, repousar
a cabeça entre os líquenes - substância
minha austera, meu
chão de larvas e fadiga.

*
Chegam no dorso do verão, como asas
mortas de estorninhos lentamente desfolhadas.
Um marco geodésico de sombras e desen-
contros.
A maresia da noite.

 Albano Martins in "Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto,
2000, pp 165 - 169.
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 "Mar de Verão "


No verão cinzento,
cinzenta era a alegria,
azul a cor
da melancolia.

Quem me prometia o mar,
se dar-mo não podia?

 Albano Martins in "Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto, 2000, p 42.
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19/10/11

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No DSM IV, manual internacional de classificação das doenças mentais, não encontramos a perversão narcísica entre as doenças da personalidade. Considera-se apenas aí as perversões sexuais, na rubrica das perturbações sexuais, ou nas perturbações da personalidade.
A personalidade narcísica é descrita do seguinte modo ( e tem de apresentar pelo menos cinco das manifestações que se seguem):
- o indivíduo tem uma convicção grandiosa da sua importância própria,
- está absorvido por fantasias de sucesso ilimitado, de poder,
- pensa ser "especial" e único,
- tem uma excessiva necessidade de ser admirado,
- pensa que tudo lhe é devido,
- explora o outro ao nível das relações interpessoais,
- falta de empatia,
- inveja com frequência os outros,
- assume atitudes e comportamentos arrogantes.
A descrição feita por Otto Kernberg, em 1975, da patologia narcísica está muito próxima daquela que actualmente se toma como perversão narcísica: " As principais características destas personalidades narcísicas são um sentimento de grandeza, um egocentrismo extremo, uma ausência total de empatia pelos outros, apesar de serem ávidos de obter a admiração e aprovação deles. Estes pacientes sentem uma inveja muito intensa relativamente àqueles que eles julgam possuir coisas que eles não têm ou que, simplesmente, parecem tirar prazer das suas vidas. A estes indivíduos não só falta profundidade afectiva como não chegam nunca a compreender as emoções complexas dos outros, e os seus sentimentos, não sendo modelados, conhecem rápidas erupções logo seguidas de dispersão. Eles ignoram, especificamente, os verdadeiros sentimentos de tristeza e de pesar; esta incapacidade para experienciar reações depressivas é um traço fundamental da sua personalidade. Quando se sentem abandonados ou decepcionados, podem mostrar-se aparentemente deprimidos, mas ante uma análise atenta, percebemos tratar-se de cólera ou de ressentimento com desejos de vingança e não de uma verdadeira tristeza pela perda de uma pessoa que eles apreciavam."
Um Narciso, no sentido do Narciso de Ovídio, é alguém que acredita encontrar-se olhando-se ao espelho. A sua vida consiste na procura do seu reflexo no olhar dos outros. O outro não existe enquanto sujeito mas apenas enquanto espelho. Um Narciso é uma casca vazia que não tem existência própria; é um "pseudo", que procura provocar ilusões para mascarar o seu vazio. O seu destino é uma tentativa para evitar a morte. É alguém que jamais foi reconhecido como ser humano e que foi forçado a construir um jogo de espelhos para conceder a si próprio a ilusão de existir. Como um caleidoscópio, esse jogo de espelhos tende a repetir-se e a multiplicar-se: este indivíduo permanece edificado sobre o vazio.
O Narciso, não tendo substância, vai-se "debruçar" sobre o outro e, como uma sanguessuga, tenta aspirar a vida deste. Sendo incapaz de uma verdadeira relação, ele apenas a pode levar a cabo num registo "perverso", de malignidade destrutiva. Incontestavelmente, os perversos sentem um gozo extremo, vital, ante o sofrimento e as dúvidas do outro, assim como sentem um prazer intenso em subjugar e humilhar.
Tudo se inicia e se explica pelo Narciso vazio, construção em reflexo, no lugar de si-próprio e nada no interior, tal como um robot foi feito para imitar a vida, ter todas as aparências e sucessos da vida, mas sem essa mesma vida. O seu desregramento sexual e a sua maldade não são mais do que consequências inelutáveis desta estrutura vazia. Como os vampiros, o Narciso vazio tem necessidade de se alimentar da substância do outro. Como não tem vida, ele tem de a sugar onde ela existe ou, se isso for impossível, de a destruir para que não haja vida em lugar algum.
(...) Daí a sensação que têm as vítimas de lhes ter sido negada a sua individualidade. A vítima não é um sujeito-outro, mas apenas um reflexo. Tudo o que possa colocar em questão este sistema de espelhos que mascaram o vazio, apenas pode desencadear uma reação em cadeia de furor destrutivo. Os perversos narcísicos não passam de máquinas de reflexos que buscam em vão a sua própria imagem no espelho que é os outros.
Eles são insensíveis, sem afecto. Como poderia uma máquina de reflexos ser sensível? Por conseguinte, são incapazes de sofrimento. Sofrer pressupõe ser de carne e osso, ter uma existência. Eles não têm história já que são coisas ausentes e apenas os seres presentes no mundo podem possuir uma história (...).
Os perversos narcísicos são indivíduos megalómanos que se colocam como referentes, como medida do bem e do mal, da verdade. Encenam, frequentemente, um ar moralizador, superior, distante. Mesmo quando não dizem nada (...) eles traduzem a malevolência humana.
Apresentam uma ausência total de interesse e empatia pelos outros, contudo desejam que esses outros se interessem por eles. Tudo lhes é devido! Criticam toda a gente e não admitem nenhuma reprovação nem nenhum pôr em causa. (...) Apontar as falhas dos outros é um modo de não ver as suas, de se defender contra uma angústia da ordem do psicótico.
Os perversos estabelecem uma relação com os outros para os seduzir. São descritos, geralmente, como pessoas sedutoras e brilhantes. Uma vez apanhado o peixe, basta apenas mantê-lo na distância necessária (...).
A sedução perversa não comporta nenhuma afectividade, pois o próprio princípio do funcionamento perverso é de evitar todo e qualquer afecto (...) A força dos perverso vem-lhe da sua insensibilidade. Eles não conhecem nenhum escrúpulo de ordem moral. Jamais sofrem. Atacam com toda a impunidade (...)
Os perversos podem apaixonar-se por uma pessoa, uma actividade ou ideia, mas esse flamejar é sempre superficial, já que ignoram os verdadeiros sentimentos (...) A eficácia dos seus ataques deve-se ao facto que tanto a vítima como um observador exterior jamais imaginar que se possa ser a tal ponto desprovido de solicitude ou de compaixão frente ao sofrimento do outro.
(...) Os perversos alimentam-se da energia daqueles que sofrem o seu charme (...). Sendo incapazes de amar, eles tentam destruir, através do seu cinismo, a simplicidade de uma relação natural.
Para se aceitarem, os perversos narcísicos têm de triunfar e destruir qualquer um que julguem superior. Alegram-se com o sofrimento alheio. Para se afirmarem, precisam de destruir.
Há neles uma exacerbaçao da função crítica que faz com que passem a vida criticar tudo e todos. Assim, eles conservam a sua omnipotência: " Se os outros são nulos, eu sou forçosamente melhor do que eles!"
(...) A inveja é neles um sentimento de cobiça, de irritação odienta frente à felicidade ou às vantagens do outro. Trata-se de uma mentalidade, de conjunto, agressiva que se fundamenta na percepção daquilo que o outro possui e de que ele é desprovido. Esta percepção é subjectiva e pode mesmo ser delirante.
(...) Eles impõem aos outros a sua visão pejorativa do mundo e a sua insatisfação crónica relativamente à vida. Destroiem todo o entusiasmo à volta deles, procuram sobretudo demonstrar que o mundo não presta, que os outros são maus e que o parceiro(a) é igualmente mau.(...) É por isso que procuram, com frequência, as sua vítimas no seio dos que possuem bastante energia e/ou que têm gosto pela vida(...)
Os perversos agridem o outro para sairem da condição de vítima que experienciaram na infância. (...) Aquando das rupturas, os perversos colocam-se na situação de vítimas abandonadas, o que lhes concede um belo papel e lhes permite seduzir um outro parceiro, consolador.
(...) Atirar com a falha para cima do outro, difamá-lo fazendo-o passar por mau, permite-lhe não só fazer a catarse, mas também autobranquear-se: se não são responsáveis, não são culpados, logo, tudo o que corre mal é culpa do outro! Defendem-se assim através de mecanismos de projecção: atirar para cima do outro todas as dificuldades e todos os fracassos sem se colocarem a si próprios em causa. Defendem-se igualmente pelo princípio de negação da realidade. Escamoteiam a dor psíquica que transformam em negatividade (...) O sofrimento é excluído, a dúvida igualmente. Devem, portanto, ser suportados pelos outros e agredi-los é assim o meio de evitar a dor, o pesar, a depressão.
(...) Os perversos narcísicos tendem a apresentar-se como moralizadores: dão lições de rectidão aos outros, e nisto aproximam-se das personalidades paranóicas.
A personalidade paranóica caracteriza-se por:
- hipertrofia do eu: orgulho, sentimento de superioridade;
- psicorrigidez: obstinação, intolerância, racionalidade fria, dificuldade em demonstrar as emoções positivas, desprezo pelo outro;
- desconfiança: temor exagerado da agressividade do outro, sentimento de ser vítima da malevolência do outro, ciúme, suspeição;
- inexactidão do juízo: interpreta os acontecimentos neutros como sendo dirigidos a ela.
Contudo, diferentemente do paranóico, o perverso, quando conhece bem as leis e as regras da vida em sociedade, joga-as bem para melhor as contornar, e com júbilo. O específico do perverso é a desconfiança dessas mesmas regras, o seu objectivo é derrotar o interlocutor (...).
O alcançar do poder dos paranóicos é feito através da força ao passo que o dos perversos faz-se pela sedução - mas quando a sedução não funciona mais, eles podem recorrer à força. A fase da violência é ela própria um processo de descompensação paranóico: o outro deve ser destruido porque é perigoso, portanto, urge atacar antes de ser ele mesmo atacado.
(...) O mundo deles está dividido em bom e mau. Projectar tudo o que é mau sobre qualquer um permite-lhes estar melhor na vida e assegura-lhes uma relativa estabilidade. Porque no fundo se sentem impotentes, os perversos temem a omnipotência que imaginam nos outros. Neste registo quase delirante, desconfiam desses outros, atribuem-lhes uma maldade que não é mais do uma projecção da sua própria maldade.
(...) não é raro que os perversos tentem recolher a aprovação tácita de testemunhas que eles, antes, tinham já desestabilizado e mais ou menos convencido.
O próprio de um ataque perverso é de visar as partes vulneráveis do outro, no local onde exista uma falha ou uma patologia. Cada um de nós apresenta um ponto fraco que se transforma para o perverso num ponto de atrelagem (...). Eles têm uma intuição enorme para os pontos fracos dos outros, já que é exactamente aí que estes podem ser magoados e destruidos.

  Marie-France Hirigoyen in " Le harcèlement moral, la violence perverse au quotidien ",
Éditions La Découverte et Syros, Paris, 1998, pp 152 - 167 (1).
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(1) Tradução minha feita em simultâneo e que se preocupou apenas com o rigor científico, não com a literariedade do texto!!!
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18/10/11

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tão só
não diga isso, mãe, se é que percebi que nesta casa se sente só. Mas que poderia eu fazer, senão pô-la aqui, onde há todo o conforto de que precisa, onde há enfermeiras e uma cama apropriada ao seu estado? Mãe, não me queira mal, não fique assim, de boca fechada, numa obstinação, essa boca, pressinto-a cheia de palavras que a sua teimosia, o seu rancor não deixam que eu as ouça, Mãe, apetece-me abrir-lhe a boca, à força, com os dedos, enfiá-los por baixo dos lábios e depois com as unhas forçar uma brecha nos dentes, senti-los a abanar, arrancar algum, esses dentes tortos como os de uma caveira, que foram tão lindos, tão lindos, o esmalte tão branco e tão alinhados que pareciam artificiais, parecer artificial era para ti o cúmulo da beleza, o sorriso de uma dentadura postiça. Quando alguém te perguntava: são verdadeiros? Tu ficavas toda contente e dizias: sim, são verdadeiros, e batias com a unha nos incisivos, o som tão saudável desses teus dentes, sim, são verdadeiros: repetias, toda eu sou verdadeira, não só os dentes mas também o corpo. Só te faltava pedir-lhes: toquem-me  aqui, nos braços, nas ancas, nas pernas, vejam como é rija a minha carne, intensa, cheia dos olhares dos homens, vejam como esta carne seduz

vejo-te, minha filha, a inventar-me, e nessa invenção te inventas, e quanto mais me inventas, mais me desconheces. Somos sempre a invenção dos outros e ficamos estranhos na imagem que fazem de nós. Cada um que chegava a mim, inventava-me com o pouco que eu deixava transparecer, pouco da minha alma, que o corpo, esse, era coisa exposta, mas o desejo dos homens afastava-me deles sem eles o saberem, e apagava-me a alma. Há muito não dizia esta palavra, alma, ou melhor, não a pensava. Há assim palavras que ressurgem na nossa pobreza, vêm de longe, com o fascínio de um reencontro, e estremecem os lábios como se as soletrássemos pela primeira vez.

inventamos João, que inventa Maria, que inventa Pedro, que inventa Manuel que inventa, até o círculo se fechar e não sermos mais do que invenções, até a realidade desaparecer, a minha, a tua, a daquele, a nossa tristeza, a dor, o riso, o desejo. São sempre os outros que nos inventam e por isso estamos sempre sós, não podemos estar de outro modo, na clausura dessa invenção, percebi-o muito cedo, quando me queixava: dói-me o estômago, e me respondiam: isso não é nada, mas o pior não é inventarem-nos, é agarrerem-nos no braço e dizerem: faz isto, e acrescentarem: quero que faças isto; o pior é passarem por nós e perguntarem: querida, a que horas é o almoço? ou: volte-se, e sentirmos nas costas a camisola de flanela, o bafo húmido no pescoço

(...) Estou exausta e vou deitar-me no meu lado da cama, à esquerda, desamparada pelo espaço vazio à minha direita. Tenho medo de adormecer. Tenho medo de acordar, perto do homem, sentado no colchão, a descalçar os sapatos. Vejo-lhe os ombros, o cocuruto da cabeça em desalinho, a alça direita dos suspensórios a escorregar-lhe para o braço e a camisa arrepanhada nas costas. Fala, fala, fala. Um sussurro ininterrupto. Fala para ninguém, curvado sobre os joelhos. Parece muito pobre, no abandono de um qualquer futuro. Tanto lhe faz o futuro. Ou o presente. Está para ali, a tentar desfazer o nó dos atacadores, a língua entre os dentes, numa aplicação de criança infeliz, ouço-o respirar, todo o quarto respira, e eu respiro também ao mesmo ritmo, muito quieta, como se nunca mais me fosse mexer (...). Gemo. E ele cala-se, volta-se para mim e pergunta: você está a dormir? Apetece-me responder-lhe: estou e começar a rir. Você está a dormir?: repete. E encolhe os ombros (...). E as mãos voltam às calças, empurram-nas para baixo, vencem a resistência, e deixam-nas numa trouxa sobre os pés. Vai assim de futuro em futuro. Pequeninos e opacos, os seus futuros. Dá um passo, tenta dar um passo: diz a mulher. E o homem dá um passo minúsculo, peado pelas calças. Vá, outro passo: diz a mulher: um passo maiorzinho. E o homem quer dar um passo maiorzinho. E tropeça nos pés. Desequilibra-se. Leva a mão esquerda à fotografia sobre a cómoda. A do seu casamento. (...) mas ela sabe que homem é este, há tantos anos: é um estranho, ou melhor, um desconhecido: é o meu desconhecido, como sua avó dizia de alguns pobres: são os meus pobres. E a mulher riu-se,
e o homem perguntou-lhe: de que se está a rir?
E a mulher disse-lhe, a rir: de ti,

 Rui Nunes in " Os Olhos de Himmler ", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2009, pp 50 - 53.
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17/10/11

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os que sabem, fugiram. Ou dispersaram-se, acolhidos no ódio do que sabem. Dele. Do que ele não sabe. Sabem falar do que ouviram, do que leram. E escrevem um longo comentário rancoroso, atados a palavras que não lhes pertencem. Sabem o trilho mais simples de uma palavra, o que ela diz para esconder todos os outros caminhos, que vão ficando para trás, até se tornarem indecifráveis. Eles não sabem que uma palavra é a história de múltiplos desvios. Ouviram o homem dizer: neve. Porque às vezes o homem diz: neve. E perguntam-lhe: de que neve fala? Tudo está a mudar. Tudo: disse ele. E afastou-se. Tropeçava nas pedras, virava-se para trás e via-os, espantados, na grande incompreensão de uma palavra tão simples. É sempre a mesma paisagem: diziam: não consegue ver isso? E o homem pensava: parece sempre a mesma paisagem. Porque uma paisagem é a história dos olhos que a vêem. Esta árvore, por exemplo, qual o seu nome? qual o seu nome? Não interessa. Esta árvore percorreu a minha vida: subi por ela aos seis anos, balancei-me num dos seus troncos aos dez, apanhei aos onze no seu cocuruto o ninho de uma rola, sentei-me à sua sombra aos quinze, e encostado ao seu tronco toquei pela primeira vez os olhos de Sigmar. E senti-os tremer, sob as pálpebras, contra os meus dedos. E ouvi Sigmar dizer. E ouvi Sigmar dizer. Mas não me lembro do que disse. Sigmar. Sigmar falava. E o que eu ouvia era Sigmar a falar, não o que ele dizia. Aos vinte anos, esta árvore pesada de neve passava na janela do comboio, contra o branco da neve, era outro branco mais escuro, um branco que se erguia e chicoteava o branco. Um cenário de branco. E o som por onde fugíamos, por onde tudo fugia. A árvore, esqueleto do branco. A meu lado murmuravam: quase não se vêem as árvores, e eu pensava: como se vêem!(...) Há qualquer coisa de incerto nesses objectos: comem a luz, são borrões de alvaiade, criam sombras imprecisas, em decomposição. A morte do gesso é a cor dos olhos de Himmler que contaminaram tantos olhos, até os meus. Quando me vejo ao espelho, não são os meus olhos que vejo, mas os de Himmler, uns olhos que começaram a ser os de Himmler, depois de os ter visto pela primeira vez. Ele semeava, semeava-os por tudo o que olhava: outros olhos. Perdi-me, estou sempre a perder-me, cheguei aos olhos de Himmler e não sei porquê, de onde vim, onde se iniciou este caminho, ou todos os caminhos, os meus, os dos outros, vão dar aos olhos de Himmler?

(...) estas árvores onde o mundo se agarrra, manchas de silêncio, e entre elas o sussurro constante, monótono, das vozes. Quer ver as pessoas, mas quando as fixa, elas esbatem-se, e ficam indecifráveis. Tudo o que quer ver se torna mancha. Que é um desejo de luz. E na sua periferia, a nitidez inatingível. De vez em quando dizem-lhe: veja onde põe os pés. E empurram-no. Ele dá um passo em frente, ou recua, ou bate com o ombro numa parede, ou num candeeiro, ou desequilibra-se e fica sentado num banco, enquanto a mancha devora quem passa. O seu branco esfomeado. A neve. Os olhos de Himmler. Ás vezes agarram-lhe no braço e levam-no dali, puxam-no e ele acompanha quem o puxa. Obediente. Tenha cautela: vão-lhe dizendo: onde está a sua família? a mulher? os filhos? os netos? fale, fazia-lhe bem falar. Sente-se aqui. E empurram-no um pouco para trás. E ele senta-se num banco de pedra.
Um cheiro a laranja.

A mancha é o mundo, que o esqueceu, a falta onde os seus olhos descansam da visão insuportável. E alastra pelo tempo, cria os grandes espaços lacunares contra os quais se encarniça o que resta do mundo, espaços que interrompem as palavras, devoram os rios, e enevoam os bosques, espaços-mordaça, os do homem que se move repetindo, repetindo-se, a cada passo, com a violência dos que esqueceram. Cada passo é o último, cada passo acaba o percurso de um passo, e desloca um pouco do mundo, mas esse pouco torna o mundo insuportável. Tenho medo: diz. De mover pelo mundo a sua mancha e de o atirar para a periferia. Tem medo da fluidez dessa mancha que é o mundo a acompanhá-lo com a sua cegueira.


 Rui Nunes in " Os Olhos de Himmler ", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2009, pp 95 - 97.
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16/10/11

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Lorenzaccio, meu irmão, meu gémeo, meu arquétipo, somos os fundadores duma classe onomástica com os pés no inferno, o espírito no impossível paraíso e o cérebro rasgado na confusão das trevas terrestres. Somos realmente os gigantes da angústia perplexa, megalómanos do sonho irrealizado.
Sei, desde essa altura, porque me chamo Lourenço, e uma tal ciência é importante, embora só relativamente: fiquei a saber-me e agora é impossível determinar, com uma apreciável aproximação, os motivos do meu deslumbramento pela Maria Emília, no dia em que a conheci. Acontece, porém, que se me põe uma alternativa de dois motivos que reciprocamente se eliminam: a "página em branco" permitia-me a re-criação da vida numa base de pureza ou a "página em branco" desencadeava em mim os brios de devasso à procura dum campo ideal, pronto a acolher a seiva dum pervertido perversor? A questão não é fácil de decidir, pois, ao tempo, ainda os meus instintos de devasso, tal como os meus pruridos de pureza, eram mais potenciais que efectivos. (Ao escolher-me o nome de Lourenço, a minha mãe, que era ledora de clássicos, saberia porventura ao que me expunha? Mal a conheci, nunca pude perguntar-lhe.)
Tudo isto é muito vago, ou melhor: era muito vago até há alguns tempos atrás. Agora deixou de ter importância, deixou de ter importância que seja ou não vago, deixou de ter importância que eu saiba ou não que era ou não vago. Importante, sim (mas seria?), era o que eu sentia, deitado ao lado de Matilde, repousando do amor e conversando, não sobre nós, antes sobre cada um de nós, cada um de si, entenda-se. Havia uma identidade própria que, no momento oportuno, não receava qualquer alienação, talvez porque, subjacentemente (ou suprajacentemente?), existíamos egoistamente, sabendo que o desejo que sentíamos um pelo outro era  a única forma de descansarmos de nós próprios - e ansiávamos por esse relaxe que em nada nos comprometia. Os nossos primitivos encontros na casa da serra ainda estavam carregados de ressentimentos e dúvidas, nós não sabíamos o verdadeiro motivo por que estávamos ali e fantasiávamos razões, vagamente inquietantes, subsidiárias dum trunfo ainda convencional, o dum amor burguês que, aliás, nenhum de nós sentia pelo outro. O Paulo deixara-lhe esse amargo de alma e ela encontrava-se numa encruzilhada de caminhos arejada por todos os ventos, tentando, muito confusa e dorida, definir-se por inteiro numa das direcções. O dilema era não saber por qual. Adoptar o dilema e passeá-lo como um cãozinho de estimação, adiando sempre uma decisão definitiva, deixando-se, entretanto, refrescar pelo vento mais oportuno - tal foi, penso eu, a sábia provisoriedade que Matilde deu à sua vida amorosa.

  Fernanda Botelho in " Lourenço é nome de jogral ", Contexto Editora, Lisboa, 1991, pp 83 - 85.
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15/10/11

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- Estou realmente a perder qualidades. Essas e outras.
- Tem juízo! - exclama Matilde, engasgada com um bocadinho de bolo. E depois: - O que te prejudicou foi a ortodoxia da situação.
Faço um apelo mudo, muito mastigado, a uma explanação mais vasta, e ela prossegue:
- Há algo de deprimente nas situações ortodoxas.
- Ortodoxas?
- Claro, meu querido! Queres coisas mais ortodoxas que um estilo de vida burguês temperado por uma literatura decadente? A tua Anne é... digamos, stendhaliana. Uma stendhaliana dos nossos dias. Conheço o género. Ela sentir-se-ia perfeitamente frustrada, des-classificada, se não fosse as suas facadinhas no matrimónio. A classe a que ela pertence exige-lhe essa desenvoltura secreta, mas secreta só até certo ponto. Quando ela passa, gosta de ouvir uns zunzuns. São os comentários do seu êxito social. São eles que a confirmam "classificada". Ela também os faz por conta de outras. Intercâmbio de maledicência, mas com boas intenções. É preciso explorar esses zunzuns, tirar deles todo o partido, pelo menos até ao sinal encarnado, que é o ponto em que a respeitabilidade se ressentiria, e ela, em vez de adivinhar zunzuns à sua passagem, começasse a defrontar olhares inequívocos de menosprezo. O que poderia significar uma " des-classificação ". É preciso conhecer a medida certa. Enquanto a tua Anne não deitar por fora, a classe a que ela pertence...
- A classe a que ela pertence!... - repito, com a sensação de um martelar doloroso algures na minha cabeça.
Matilde reclina-se. Fechou os olhos e conclui, já semialheada do meu problema, que o não é.
- Oh! É tudo tão ortodoxo! Não me obrigues a explicar-te mais. Estou, afinal, a falar de coisas que não conheço, duma classe a que não pertenço, dum mundo onde não existo. É como fazer o inventário do Palácio de Versalhes sem nunca lá ter posto os pés.

 Fernanda Botelho in " Lourenço é nome de jogral ", Contexto Editora, Lisboa, 1991, pp 160 - 161.
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02/10/11

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Américo não quer olhar, mas não consegue não olhar, e o filho acorda aos berros.
" Vou já... "
O miúdo não para.
" Vou já, caramba! "
Mas Joaquim grita-lhe de volta e Américo levanta-se. Para tentar acalmar a criança, trá-la para a sala, senta-a ao colo e liga a televisão no canal do futebol. Veem o Lichtenstein-Malta. Um jogo amigável (...).
Joana chega ao fim da tarde, muito cansada mas a desbobinar discursos infindos que Américo faz os possíveis por esquecer na hora, monólogos cheios de voltas e voltinhas sobre " os problemas surreais da concretização do plano de controle da qualidade do azeite neste país ". Mal conseguem deitar o Joaquim, jantam umas coisas congeladas, pré-cozinhadas, almôndegas e um misterioso paralelepípedo verde que, na embalagem, se anuncia otimisticamente como " concentrado de legumes ". Veem um concurso na televisão e depois ela ainda trabalha um tempo no computador. Durante essa meia horita, Américo põe a loiça na máquina.
É a coisa que mais odeia no mundo. Pegar nos pratos empastados de puré e molho, com restos de carne ou peixe ou vegetais (...). Os restos de comida nos pratos empilhados lembram-lhe sempre o Pai doente e paralisado no hotel-clínica Descanso Feliz ali para os lados de Sintra. Quem vai no IC-19 vê o letreiro grande à direita, um grande anúncio com dois velhos sorridentes e as letras " Descanso Feliz " como que escritas à mão (...). O pai de Américo é o homem de cabelo branco junto da mesa onde se joga à bisca e à sueca. Está sentado naquela cadeira-de-rodas há quatro anos já. Um acidente numa quarta-feira em que levava o televisor novo para casa. Um Plasma Hayku Flash 3.0 de última geração com dois comandos incluídos. Escorregou nos degraus do centro comercial, a caminho do elevador para o parque de estacionamento. Primeiro não parecia nada de muito grave, depois deixou de se poder mexer e, por fim, começou a ter " alterações de personalidade ". Berrava, insultava desconhecidos sem razão, chorava e gargalhava a despropósito, passava horas sem dizer uma palavra, de olhos fixos num pormenor sem importância nenhuma, uma mancha na parede, uma mosca, um resto de pó na cabeça do Santo António da sala de estar. Era professor de Antropologia Cultural. Talvez por isso, o seu insulto preferido, nesses meses a seguir ao acidente, fosse: " Pigmeus de merda! " Usava a expressão a torto e a direito, metralhando com ela o mundo todo, como se o mundo fosse culpado da tragédia. Quando a mãe de Américo se separou dele e a família o deixou no Descanso Feliz, foi um alívio para todos. Américo acredita que também para o Pai. E, no entanto, claro, são coisas que marcam.
(...) Quando regressa à cama, Joana pergunta-lhe se está tudo bem. Américo diz que sim. Despe-se devagar, põe o pijama às riscas que a empregada deixou dobrado debaixo da almofada. Uma moldava alta e simpática que o intimida um pouco. Chama-se Ada. Escrever-se-á assim, um nome em capicua? Deitado, com os lençóis puxados até ao queixo, tenta imaginar alguma coisa divertida como de tarde.
A Ada como enfermeira perversa. Não é por nada, só para se entreter um bocado enquanto não adormece. Ele é uma espécie de herói-doente-de-guerra e está numa cama de hospital a fingir que dorme mas na verdade atento, concentrado, ouvindo-a aproximar-se. O som dos tacões no chão hipotético. Américo começa a ficar contente, cada vez mais contente, antecipando, imaginando. Ada, Ada. E ele vira-se e abraça-a, mas já sem a loucura de há pouco porque percebe que não é, claro, a Ada mascarada de enfermeira perversa, é a sua mulher, a legítima Joana, com vontade de cumprir calendário e mostrar o quanto gosta dele e como são felizes, quão normal e bonito é o postalinho de casal perfeito dentro do qual vivem.
Enquanto se mexem, e ela lhe sussurra ao ouvido uma lengalenga monocórdica sobre "visualizá-lo" de visita ao trabalho dos azeites daqui a uns anos, para a comer no gabinete de Subdiretora, com os colegas e chefes do lado de lá da parede a carimbar relatórios e circulares e documentos oficiais de chacha sem suspeitarem de nada, ele fica de olhos abertos, virado para a parede. Diz que sim, pois sim, àquela fantasia tão frouxa, e fixa um risco preto na parede branca, um detalhe insignificante (...). E depois ela dá um gritinho e ele deixa-se ir, ah. Acaba tudo, vão dormir.
" Meu amor ", diz ela.
" Minha querida ", diz ele.
Mas continua sem sono. Espera: conta até cem, para dentro. Espera mais um pouco. A respiração da Joana soa diferente, mais lenta e ritmada, já dorme, de certeza.
Américo levanta-se, calça as pantufas, desliza melancolicamente até à cozinha. (...) Nada. Não há. Acabou o chocolate, como é que é possível? (...) Sente um vazio horrível. Devia comer alguma coisa que lhe acalmasse este mal-estar sem nome, que lhe alimentasse diretamente a parte feliz da cabeça, mas o quê, porra?
(...) De regresso ao quarto, apanha um susto danado.
" O quê? " pergunta-lhe Joana, muito alto.
" Nada. Tudo bem, querida... Fui só à casa de banho. "
Joana não faz mais nenhuma pergunta, ele fica calado também. Espera meio minuto no escuro sem se mexer, e deita-se. Depois sustém a respiração, espreita-lhe a cara. Parece ter voltado a adormecer. Ou talvez não tenha chegado a acordar, afinal, talvez tenha dito aquilo dentro de um sonho qualquer. Talvez esteja a sonhar que está a dormir e que alguém entrou na cama dela. Pois, a cama dela. É isso que Américo odeia naquela casa. É tudo dela ali, a cama e tudo, tanta tralha inútil e nada realmente dele.
Esta noite, nem luzinhas no teto.
Vira-se para fora, para o lado contrário ao da mulher, fecha os olhos. Agora é a sério, é mesmo para dormir, silêncio total. Como diz o Surdo na cena final do Auto da Pura Retórica, a famosa farsa atribuida a um mestre da corte de D. Sebastião, " Oh Silêncio, não fôsseis vós tão tagarela e as cousas do mundo falariam realíssimos mistérios... " Foda-se, o que ele não dava por um daqueles chocolates de 70% cacau.

 Jacinto Lucas Pires in " O verdadeiro ator ", Edições Cotovia, Lisboa, 2011, pp 38 - 45.
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01/10/11

" E tu,/ estático ao sol/ a humanizar o metal "

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 " Estátua de Drummond "

Daí,
de teus olhos duros,
de pupilas de bronze,
poeta,
perscrutas opacas
estruturas do mundo.

Metal
de costas para o mar,
teu corpo - estátua sentada no ar.
( o banco de cimento se esfarinha
num ruir de areia. Tua vida,
rocha marinha.)

Passam turistas
em teu olhar imóvel.
Automóveis. Pernas de moças.
A graça cotidiana.
Um velho mundo futurista.

E tu,
estático ao sol
a humanizar o metal
- banhista da brisa
numa praia inelutável -
O bronze franzido de tua fronte
desbota-se.

  Edmar Guimarães in " Águas de Claudel ", Editora UFG, Goiás, 2011, p 24.
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"(...) o abismo/ raso, gasto/ por uso impreciso. "

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 " O volume do vazio "

O nada anda sem força.
Há em seu fosso
tanta coisa.

Mesmo o abismo
raso, gasto
por uso impreciso.

O que fundo
é de fato
não acha mais azo
neste vocábulo nulo.

Se não se ouve,
um eco de sim
ausculta-se. Daí,
repetir não, NÃO
para afirmar o que é fim.

( Ah, palavras desafinadas
pela própria língua que as engasta!)

 Edmar Guimarães in " Águas de Claudel ", Editora UFG, Goiás, 2011, p 52.
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