30/06/09


A actriz americana Candice Bergen e o realizador francês Louis Malle (uma das relações mais conseguidas na História do Cinema) aquando do seu casamento em 1980, Lugagnac - França.
A foto é da célebre fotógrafa de vedetas - Mary Ellen Mark.
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às vezes
estou num ponto da casa,
e sei, e sinto, que tu estás algures
noutro ponto
da mesma casa.
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e sinto, e penso:
demos mais um passo
para a vida eterna.
cada um de nós deu mais
um passo
em direcção à sua morte.
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e perdemos mais este momento
em que podíamos ter falado,
ou entretecido bocas
e olhares.
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tomámos, em diferentes
sítios da casa,
diferentes caminhos;
iniciámos trajectos
discordantes
em direcção ao nosso
desaparecimento
na noite do espaço/tempo.
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quando nos depedirmos,
o que diremos?
até onde, até quando?
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será possível termos
partilhados tanto,
e partir assim sem aviso,
como se tivéssemos sido privados
de toda a história anterior?
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por isso, peço:
quando estiveres para morrer
noutro ponto da casa,
por favor diz primeiro.
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combina comigo,
para eu ver se tenho tempo
de ir morrer lá também.
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Vítor Oliveira Jorge In "Pequeno Livro de Aforismos seguido de Algumas Alumiações,
Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2008, pp 68-69.
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29/06/09

Convite de lançamento.



A "Editora Trinta Por Uma Linha" lança, no dia 4 de Julho, pelas 17h,00, o livro

"Verso a Verso - Antologia Poética", da autoria de Amadeu Baptista, Francisco Duarte Mangas,

João Manuel Ribeiro, Luísa Ducla Soares, Nuno Higino, José António Franco e

Vergílio Alberto Vieira. As ilustrações são de João Concha.

A apresentação será feita por Sérgio Almeida ( jornalista do J.N.) e ocorrerá na

"Tropelias & Companhia" (à Rua Calouste Gulbenkian, 201, no Mota Galiza, PORTO ).
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28/06/09

"Gato sem sorriso" foto de Jerzy Urban (2008)


desconfia sempre de alguém
que se justifica com a falta de tempo.

nós temos sempre tempo
para aquilo que realmente queremos.

uma pessoa que deixou
de ter tempo para ti
foi uma pessoa que te elidiu
para sempre da sua vida.


Vitor Oliveira Jorge In "Pequeno Livro de Aforismos seguido de
Algumas Alumiações", Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2008, p 16.
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26/06/09

"quando a alma confirma o deserto - "


À l'eau sombre qui là-bas recueille
le vert ferment d'une aube sur terre -
à l'eau qui va riant dans les pierres
dissiper la ferveur des images -
à la goutte d'eau claire dans mon oeil
mémoire d'une aveugle fraîcheur
quand l'âme vérifie le désert -

À ce qui me dit indivis et fluide
chante levé dans l'essor du chant
essaim de lueurs que rien n'interrompt
mots et gestes brefs tissés dans l'ouvert -

Sur la rive rêche et endolorie
fruits tombés que décompose la mer
lambeaux de brumes, pansements jetés.

Lorand Gaspar In "Patmos et autres poèmes", Poésie Gallimard,
Paris, 2004, p 81.

Nota - Lorand Gaspar nasceu em 1925 duma família húngara, em Marosvásárhely na Transilvânia oriental, hoje parte da Roménia. Fez aí o ensino secundário, sendo depois admitido no Instituto Politécnico de Budapeste em 1943, mas foi mobilizado meses mais tarde.
Em 1944, após o fracasso de uma paz separada seguido da imposição de um governo nazi na Hungria, Lorand Gaspar é deportado para um "campo" na Suabo-Francónia, de onde consegue fugir em Março de 1945 e apresentar-se a uma unidade francesa que se encontrava situada perto de Pfullendorf.
Estudou medicina em Paris e veio depois a ser cirurgião em vários hospitais franceses.
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25/06/09

Nota -(...) Séculos mais tarde( a Eurípides, Séneca e Ovídio) Corneille (1606-1684) retomou o tema na sua peça "Medeia". Para ele, Jasão é um homem ambicioso, não heróico, que faz do relacionamento amoroso apenas um instrumento para alcançar os seus objectivos (...) O poeta austríaco Franz Grillparzer (1791-1872) dedica uma trilogia à lenda do "Tosão de Ouro".(...) Jean Anouih (1910-1987 ) também aborda o tema, embora utilizando uma linguagem moderna: Medeia é uma cigana e a sua humilhação não está no abandono, mas na piedade do homem que a deixou. Seu orgulho fere-se porque ela deseja amor e não um tratamento compassivo. Para Pier Paolo Pasolini ( 1922 -1975 ), Medeia aparece como vinda de um país bárbaro onde se sacrificam vidas humanas. Ela tudo abandona por amor de Jasão, inclusive a sua magia, mas quando se vê traída, utiliza os seus dons para se vingar. Entretanto, na Medeia de Pasolini entrelaçam-se presente e passado, e ela parece muito mais próxima da mulher moderna que comete um crime passional do que de uma feiticeira da Antiguidade. De todos estes autores, para o meu modestíssimo poema, apenas me interessaram Corneille e Pasolini.
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" Medeia e os Outros Tempos"

Vista daqui a terra não tem a importância que julga
ter. Vista daqui até a cidade, teia de empestada glória
e ridículas imagens, a ostentação recusa. Vista daqui,
ó odiosa Corinto, não passas de uma puta velha
a cirandar pela praia, no alcance de afectos jamais
refeitos ou de memórias à deriva, por entre marinheros,
sidra, bárbaros dizeres, que nunca entendeste nem a isso
chamada foste. Vista daqui apenas eu coincido comigo:
princesa cólquida, dona de insondáveis talentos e artes,
arrebatada, crédula nas palavras dos homens, implacável
se com essas mesmas palavras eles atraiçoam os pactos,
a solidariedade generosa, a mais resplandecente entrega

quando enorme e até mesmo sagrada. Por tudo isto te vi
eu cair, ó verme! Ao ver-me de tal modo afastada
da tua cama, do teu corpo que tão bem montava como a potro
selvagem nas planícies da Tessália, da tua boca quase sempre
em lume, gume em mim esventrada do já ciúme, nesse cume
de coisa pouca, que em nada transformei com minha fúria
e vingação de fêmea atraiçoada, quase louca. Acaso pensaste
que, impune, te deixaria partir, para lá do tudo que havíamos
partilhado? Acaso supunhas que te daria um aberto caminho
para de novo assaltares tronos e troféus? Eu, que traí uma linhagem,
um povo; eu que dispersei os pedaços de Apsirto (o miserável!),
que me vinha dar caça, como o costume prediz a guerreiro macho

e irmão. Ai, pobre Jasão, que das mulheres nada sabias!
Sobretudo daquelas para quem a honra não é negociável,
nem a dignidade se troca na ágora, por entre potes
de azeitonas, galinhas poedeiras ou as mais raras especiarias
vindas do oriente. Vê (desgraçado) ao que te levou a cupidez
sem freio, a vida onde o ter e o parecer apenas bastavam,
espezinhando tudo o que os outros são, esperam, sonham.
Restam-te hoje os unguentos que não cheguei a usar,
os estiletes envenenados, as funestas sementes que a pressa
nem me deixou triturar. Restam-te as convulsões de Glauce,
tão culpada quanto os outros, o cadáver já frio de Creonte
com seus lábios de Cera, seus olhos baços, como costumavam

ficar quando de ambição cheios, tal como os teus, seus gémeos
e herdeiros. Restam-te os corpos inocentes de teus filhos,
lapidados pelos coríntios em fúria, que, ao quererem atingir a mãe.
o pai castigaram com raiva nunca antes vista por estas paragens.
O que de ti ficou ( infeliz), por tal ganância e soberba desenfreada,
é nada - absolutamente nada! Mas não te iludas Medeia, os homens
deste tipo raramente mudam: levantam-se após a dor encenada e,
estropiados, retomam sua antiga crueldade, bem mais crueldade
porque primeira e não resposta; levantam-se e, quais loureiros
persistentes, sugam as húmidas vertentes, os frondosos bosques.
Sossega Medeia! Acalma essa cabeça de teus crimes talvez inúteis.
Aguarda. Quem poderá saber o desenlace de tão horrenda história?


Victor Oliveira Mateus In "Revista Inútil" Nº 1 Out. 09, p 98.
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24/06/09


" Poema 6 de Os Dentes Cor de Rosa do Ilusor (1)"
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Eu, que muito mal consigo ser quem sou,
bato-me com este eu mais forte que eu mesmo
e perco. E digo-me: é preciso
jogar tudo pro ar, é preciso esquecer,
o sol está tão límpido tão lindo, como
permanecer imerso nas dobras de si mesmo? Esquecer.
A vida rudimentar te atormenta, o choro
das crianças, as contas do mercado, a torneira pingando,
essa indolência essa revolta essa indolência
o mundo aí, gratuito, a palmilhar e não
e não e não, o sono vem, vem o vazio, amar
é um ato frustro - e que significa?
Esquecer.
Esquecer sobretudo que é fraco, é sozinho
- mas não somos todos sozinhos? nos perguntam,
e o existir não passa da mentira
de nos dizermos fortes e adultos? nos
perguntam, e cada qual em seu canto não há que sofrer
seu tanto? nos perguntam, e a vida inteira
de um homem
não é pura e pura e pura
ilusão?
Esquecer.
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Antonio Brasileiro In "Antologia Poética", Ed, Fundação Casa de Jorge Amado,
Salvador, 1996, p 68.
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."Tudo que somos"
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Tudo que somos,
pouco sabemos.
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Um poço imenso,
cheio de sonos.
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Quando choramos,
não nos perdemos.
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Viver é um sonho,
não esqueçamos.
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Viver é a sombra,
o assombro, o apenas.
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/Tão frágeis somos!
Frágeis e imensos.
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Antonio Brasileiro In "Antologia Poética 1968-1996", Ed. Fundação Casa de Jorge Amado,
Salvador, 1996, p 17
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23/06/09

"entre o mar e o céu"

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Est-ce lui? est-ce la mer? ou le ciel?
la morsure du poignard dans le jour
la blessure de l'épervier jeté
lacis de nerfs dans l'eau allumé -
miroir et lumière aussitôt guéris.
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Et quelle aisance, quelle précision!
Elles gouvernent remous et courbures
de l'eau, de l'air, de la nage et du vol
le sol raviné, les ardeurs du vert
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verts et bleus
âme ou aile
déplient la haute étendue -
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Lorand Gaspar In "Patmos et autres poèmes", Poésie Gallimard, Paris, 2004, p49.
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"ode do fim da paixão"


agora que a paixão se demoveu de ti
são poucas as notícias que te trago.

as palavras bem podem ser
pequenos papéis atirados ao chão.
se o vento as levantar é porque ainda
haverá um livro de poemas
nas pontas dos dedos a ferir o espaço
para um último batimento.

deixaste-me assim com a paixão rápida
o funeral e os pássaros nos ramos
a aprender asneiras e as marchas de séculos
anteriores. recusaste um coração
a cercania das mãos
a destapar o rosto oculto.

agora é tarde
os poemas são vedações de florestas
que não podem crescer mais.
sem árvores o vento não sopra
e é pouco o que chega até ti.


ana salomé In " Odes", Ed. Canto Escuro, s/c, 2008, p 94.
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21/06/09

Inocência Mata escreve sobre Arménio Vieira.

Arménio Vieira é um escritor que sempre me intrigou. Lembro-me de o ter visto pela primeira vez - não conhecido, pois nunca fomos apresentados - numas férias em Cabo Verde. Estava com a minha amiga e anfitriã, Evelina Santos, e entrámos num bar-restaurante da Prainha. Lá estava ele, imerso no seu jogo, beberricando a sua cerveja, e ela apontou-mo: aquele é o Arménio Vieira, mas não tenho relações com ele por isso não to apresento... Entendi, por isso, que não seria gente de grandes aberturas com quem não conhece. Ademais, parecia completamente alheado de tudo, apenas concentrado no seu jogo.
Era, à altura, autor de apenas dois livros de poesia. Poemas (1981, que seria reeditado em 1998) e O Eleito do Sol (romance, 1990) - um livro em todos os títulos original. Seguir-se-iam, para além da reedição de Poemas, No Inferno (romance, 1999) e MITOgrafias (poesia, 2006).
Apesar de ser por causa do Prémio Camões que Arménio Vieira salta para a ribalta, não serve este apontamento para falar da pertinência do prémio e da sua justeza. Nem da justiça (finalmente feita!) a Cabo Verde - como já ouvi. Julgo que este Prémio, que não deveria ser político (apesar de o ser, pelas afirmações de pessoas responsáveis), distingue o escritor e, através dele, o sistema nacional em que se insere o escrito - não o contrário: não se distingue o sistema elegendo um escrito, mas distingue-se aquele escritor e, por implicação, aquela literatura! Além de que o mais alto galardão literário da língua portuguesa, língua oficial de oito países, é uma criação de... apenas dois países! Claro que haverá quem diga logo que o Prémio Cervantes é criação de um só país, mas não acredito em argumentos de "jurisprudência" nestes casos...
Falemos, pois, da originalidade da obra do santiaguense Arménio Vieira, escritor já distinguido no seu país, pela Associação de Escritores Caboverdianos, é um escritor inclassificável mesmo no panorama literário cabo-verdiano. Pertencendo, se assim se pode dizer, à geração da folha Seló- Página dos Novíssimos (suplemento literário do jornal Notícias de Cabo Verde, cujos dois únicos números são de 1962), Arménio Vieira pontua ao lado de nomes porventura injustamente pouco estudados pela/na academia: Maria Margarida Mascarenhas, Jorge Miranda Alfama, Mário Fonseca e Osvaldo Osório (além de Rolando Vera-Cruz Martins, que acabou por não integrar a galeria do registo autoral da literatura cabo-verdiana).
Conheci a poesia de Arménio Vieira pela mão do meu eterno mestre Manuel Ferreira. Uma poesia (ainda) intensamente telúrica mas simultaneamente metafísica, estranhamente narrativa mas substancialmente lírica, feita de ressonâncias deslocalizadas culturalmente mas também localmente cabo-verdiana. Potenciaria essa pulverização de "contaminações" culturais em MITOgrafias, livro feito de poemas construídos a partir de referências de leituras e de afectos literários, revelando excentricidades de influências, geografias e temas: literatura, filosofia, história, teologia, condição humana.
Porém, apesar de No Inferno ser porventura a obra mais insólita da literatura cabo-verdiana, pela singularidade genológica que caracteriza a urdidura romanesca (estilhaçamento sintáctico e de vozes narrativas e ausência de uma intriga que conduza o fio da narrativa), O Eleito do Sol é mais desafiante na sua inserção no sistema.
O Eleito do Sol começa por estilhaçar a caboverdianidade "tradicional", feita de marcas de insularidade geográfica, ambiental, sociocultural, ideológica e psicológica, criando uma história que se passa no Egipto antigo, protagonizada por um escriba pícaro que, pela subtileza de espírito, pelo saber e pela astúcia, consegue vencer um faraó - personificação do poder político instituído, inerte e incompetente, adverso a qualquer ideia de mudança e confrontação de pontos de vista. É, aliás, esta bizarria romanesca que faz deste romance um caso singular na literatura cabo-verdiana: socorrendo-se de um discurso alegórico, uma realidade política codificada, para dissimular a sua inscrição no domínio político, através da feição (pseudo-)histórica da sua ontologia, a construção de imagens daí decorrente vai dando forma a ideias cuja interpretação só parece fazer sentido dentro do próprio texto, sem qualquer ligação com o contexto sociocultural e político. Daí muitas vezes surgir o cómico pelo desfasamento entre o que é dito (que nem sempre faz sentido) e aquilo para o qual remete: o poder destituído de saber, vivendo numa inactividade conservadora e que aos poucos vai sucumbindo a uma nova topia (espácio-temporal) protagonizada por alguém que, "como herói de certas histórias", se safa sempre na hora H. Desse labor astucioso resultam um novo regime democrátrico, uma nova forma de fazer política, a destruição de categorias sociais ditadas pela vinculação a uma "dinastia".
Alguma ligação com o Cabo Verde a sair do monopartidarismo por estas alturas, 1990? Apenas se desconsiderarmos a remoticidade da fábula fazendo com que o assunto adquira actualidade no capítulo das relações de poder.
Já se disse do Prémio Camões que preferia a ficção à poesia - apesar de Miguel Torga (1989), João Cabral de Mello Neto (1990), José Craveirinha (1991), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999) e Eugénio de Andrade (2001). Na sua 20ª edição o Prémio Camões distingue um escritor que é poeta e romancista. Talvez por isso grande parte de notícias se refira a Arménio Vieira como poeta. Porém, para mim, surprende-me mais a imaginação do ficcionista.
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Inocência Mata In "J.L. de 17 a 30 de Junho, p 10.
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19/06/09



" a viola toca meu silêncio"
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dolentemente
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re
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spiro
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minhas
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fantasias
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solitárias
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ladeando o
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silêncio
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António Cardoso Pinto (Inédito)
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Notas:
- o verso "spiro" não segue a ordenação gráfica dos outros versos, já que não se integra na escala musical que o poeta pretende evocar. Infelizmente foi-me impossível ,a nível informático, manter tal rigor
- António Cardoso Pinto, que tem poesia sua espalhada por diversas publicações e livros, e que gravou recentemente um CD com poesia de José Agostinho Baptista, acaba de criar um
"sítio" de Poesia:
António's Site
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18/06/09

"O Estrangulador dos Bonecos de Neve", novo livro de Carlos Vaz.

O cuidado, essa derivação não científica de outras categorias como a de rigor, parece-me ser uma das vertentes fundamentais da escrita de Carlos Vaz; tipo de depuração que nem sempre se nos apresenta do mesmo modo: rondando a musicalidade onde a estrutura narrativa é secundarizada ante o fulgor do dito, como em Gabriela Llansol, em "Capricho 43"; o burilar da linguagem que, sem perder uma certa poeticidade, opta agora por uma mensagem directa bem ao jeito de escritores como Mário Henrique Leiria, em "O Estrangulador dos Bonecos de Neve".
Este cuidado, ou melhor, este medir forças com a palavra recusando todo o tipo de estatismo sintáctico - que também pode ser encontrado na poesia da Carlos Vaz - faz-nos ver a escrita deste autor como um organismo que incessantemente se reformula e (re)enuncia nessa procura que a si própria se impõe: a de um persuasivo resplendor que, armadilhando o leitor num jogo de encantamento e sentidos vários, nunca cede na construção de novos paradigmas do dizer, que, contudo, jamais se afastam do real concreto nem de múltiplas inquietações de cariz existencial e histórico-social.
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Victor Oliveira Mateus
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Lisboa, 18 de Junho de 2009.
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Novo livro de José Agostinho Baptista


" O Pai, a Mãe e o Silêncio dos Irmãos" é o novo livro de José Agostinho Baptista
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a sessão de lançamento será no dia 4 de Julho (sábado), pelas 18 horas, no Restaurante
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Many, na Fajã da Areia, São Vicente (entre São Vicente e Ponta Delgada)
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(Informação via "Porosidade Etérea". Um grande obrigado à Inês Ramos. )
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17/06/09




Ode da liberdade II


devíamos criar uma cidade nova
livre
desde as pontas dos dedos
as estradas
à polpa das palmas das mãos
as muralhas
até ao centro histórico
para nela vivermos séculos sem fim
e mergulharmos nos rios as linhas do destino.

devíamos criar uma cidade livre
nova
desde o vulcão
o nosso repouso em labaredas
para um primeiro beijo
fora do território nacional
até à lonjura da maior viagem
dormirmos na pousada
que abriga tectos em estrelas
com os olhos fechados
trocados
numa nova cidade
até sermos ilha.

quando regressássemos
morávamos
na nossa grande casa da árvore
cravejados de folhas
pássaros e beijos
as mãos um do outro
polpa de maçã
só à espera de ver nascer
a madrugada debaixo dos braços
para o último arrepio
de todos os tempos

amarmo-nos.


ana salomé In "odes", Editora Canto Escuro, s/c, 2008, pp 64-65.
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16/06/09


DIA 19 DE JUNHO, PELAS 19 HORAS, A EDITORA 101 NOITES APRESENTARÁ
O AUDIOLIVRO "O BANQUEIRO ANARQUISTA" DE FERNANDO PESSOA LIDO
POR FILIPE VARGAS.
O EVENTO TERÁ LUGAR NO GOETHE INSTITUT, NO CAMPO DOS MÁRTIRES
DA PÁTRIA, 37 EM LISBOA.
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"Da Terra à Luz"



"Os Escribas"

Nunca senti por eles grande entusiasmo.
Se eram excelentes eram também petulantes
e de um trato tão espinhoso como o azevinho
de que extraíam a tinta.
E se nunca fui um deles também é certo
que nunca me puderam negar o meu lugar.

Na quietude do scriptorium
crescia neles a todo o tempo uma pérola negra
como o velho coágulo seco por dentro das penas.
À margem de textos laudatórios
arranhavam, esgadanhavam.
Rosnavam se o dia estava escuro
ou se giz a mais amolecera o vellum
ou giz a menos o deixara oleoso.

Sob os dorsos da caligrafia
arrebanhavam rancores míopes.
Sementes de ressentimento ponteavam-lhes
as espirais de fetos das maiúsculas.

De vez em quando eu tinha um sobressalto
a milhas de distância, e via na minha ausência
o cursivo inclinado de cada dorso, e sentia-os
a aperfeiçoarem-se contra mim, página a página.

Que se recordem deste contributo não desprezível
para a sua arte de invejas.


Seamus Heaney In "Da Terra à Luz - poemas 1966-1987 ",
Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1997, p. 333, (trad. Rui Carvalho Homem).
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14/06/09



"Effigy"

If you come to find me affable
And build a replica for me
Would the idea to you be laughable
Of a pale facsimile

So when you come to burn an effigy
It should keep the flies away
When you learn to burn this effigy
Il should be
For the hours that slip away

It could be you, it could be me
Working the door, drinking for free
Carrying on with your conspiracies
Filling the room with a sense of unease
Fake conversations on a nonexistent telephone
Like the words of a man who's spent a little too much time alone
When one has spent too much time alone...

So if you come to burn my effigy
It should keep the flies away
When you learn to burn an effigy it should be
Of a man who's lost his way, slips away


Andrew Bird, do C.D. "Noble Beart", Wegawam Music Co., E.U., 2009.
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.Nota - As sardinhas só vieram hoje...Naquele terraço de corte mediterrânico entravamos e
saíamos. Lembrei-me dos pavões a quem o A. cortara as asas e as raposas devoraram num fim-de-semana. Alguém veio cá abaixo bater estridentemente palmas... "Para espantar os gaios - explicaram-me depois -, os cabrões dão cabo de tudo!". A música continuava a sair pelas janelas escancaradas. Eu e a H. protestavamos do exagerado volume do som.
Ninguém nos dava ouvidos. Felizmente! Porque foi assim que dei com um C.D. que me tinha escapado.
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12/06/09

Dois poemas de um livro a sair em breve ...


MUSA
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1.
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Vem, ó Mouça, vem logo com teu charme,~
traz inteiro o teu nome e teu segredo:
eu preciso de ti, vem encontrar-me
que te direi de cor o "Amor e medo".
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Nem o amor se disfarça em pesadelo
nem o medo remói o sentimento,
o sinal da baliza a inscrevê-lo
num beijo, noutro beijo, noutro intento,
nisto que a vida pôs nesta alegria,
nesta canção de amor no fim do dia.
.
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2.


Nem é preciso vir, manda o teu nome
e com ele virão a tua imagem,
a vida, o amor e o tempo que se some
na busca do melhor como linguagem.


Mas é preciso ir, inominado
e simples como o acaso me permite:
buscando sempre esse teu lado alado
que se oculta sem tempo nem limite.


Aí teu corpo é mais que corpo - a essência
do melhor, do mais belo, do mais puro,
da vida desdobrada e sem carência
navegando em si mesma no futuro.


Gilberto Mendonça Teles In " Linear G." (No prelo)



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10/06/09

"meu mundo é do outro lado"



"marginal"

não sou poeta de dentro
vivo na periferia
onde aprendo ao relento
os sinais da poesia

sem outro mestre ou sebenta
outros meios auxiliares
que a alma nua e atenta
às evidências singulares

não vou às festas galantes
onde se bebe do fino
com papagaios falantes
num linguajar de cretino

(mas de cretino laureado
com imarcescíveis lauréis)
meu mundo é do outro lado
entre plebeus menestréis

marginal mas livre e limpo
de certas quedas na lama
com que se sobe ao olimpo
da torpe festa da fama


Cláudio Lima In "Itinerarium III", Opera Omnia Ed., Guimarães, 2006, p 40.
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oiço-te a respiração; é leve como a
de um pássaro em sono descuidado

os olhos, fechados, guardam a luz
perene, intensa, com que acendes
as auroras do mundo

o peito, num arfar ritmado de serenidade,
é o escrínio inviolado dos meus afectos
vigilantes

o umbigo assinala
um viveiro de pérolas cativas

a noite é longa na alvura do linho
onde repousas

nada é urgente ou repetido,
nenhum relógio tange os ponteiros agressivos
do dever

olho-te em silêncio e sou feliz


Cláudio Lima In " Maçã pra Dois", Ed. Tartaruga, Chaves, 2001, p 14.
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05/06/09

Foto de autoria do polaco Oiko Petersen. Este trabalho pertence
ao ciclo "Downtown Collection".


O AUTOR CONSTRÓI UM MODELO DO UNIVERSO QUE
OBEDECE APENAS À PRESENÇA VOLÁTIL DA AMADA


não há muito mais a fazer sobre o chão depois de se ter olhado
o mar cheirado a terra assistido ao verão incorrer
feroz no lugar das têmporas e ter
apontado decifrado a sujidade derramada sobre o planeta
sob a mudez das flores
porquanto eu admito haver ainda tanto a fazer e a desfazer
no mundo
rodar um complicado jogo de esferas mapear o
insondável lugar do amor
democratizar o perfume das populosas pétalas do gerânio
e da papoila vermelha tão próximas pétalas de um rosto
de natureza mais que babilónica
regresso sempre ao modelo geocêntrico do universo
centrado na amada
tudo gira em volta desse rosto lírio entre os cardos
esqueço a coperniciana construção do mundo amiúde imundo
muitas vezes hei-de voltar à mulher
como as ondas voltam num rigor de espuma aos versos de ruy belo
e desenho na aliterada elegância da paronomásia
o arquétipo da letra - minha ortografia copiada dos
extractos mensais do céu
que é o mesmo que dizer: resumi sempre os mistérios cósmicos
à deslumbrante assiduidade dessa face
anterior à graduação musical pitagórica pouco coeva destes pássaros
que crescem alheios a bach na folhagem e caem para o céu
contrários insurgentes sublevados às propostas de isaac newton
a quem começaram primeiro por obedecer as maçãs
e agora todo o universo se convencionou
julgo dizer nestes versos que nunca amei tão alto nesta cidade
que nunca os antigos pensadores da ásia ousaram de tanta liberdade
moral e estética que ninguém foi tão silencioso e inútil
frente ao mar do estoril onde esta tarde ateei dez cigarros dez
fortíssimos por causa das coisas
que nunca abri tanto o tórax que nem nunca os velhos pintores
mongóis do século dezasseis
saberiam copiar tão bem o entono de amamte amplo
frente ao mar de um mês frio de um ano bissexto
a balbuciar: amo-te todo o ano e neste fevereiro
ainda mais um dia
esperando nas palmas do século na miséria estíptica do país
o acelerar do degelo dos pólos para que o mar lave e leve de vez
esta terra que sempre publicitou a sua vocação para o mar
não há nada a fazer neste mundo a não ser o gesto de
circunscrever a amada entre as demais mulheres
pensar determinar métodos ficar em casa a escrever princípios
de exclusão e equivalência
tratados enigmáticos
que definam e representem num rigor alcoólico
um sistema livre de tudo o que não obedeça ao aferro
da amada


Miguel-Manso In "Quando Escreve Descalça-se", Ed. Trama Livª,
Lisboa, 2008, pp 16-17.
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03/06/09

PRÉMIO CAMÕES 2009


O júri do Prémio Camões 2009 decidiu atribuir o galardão ao poeta cabo-verdiano
Arménio Adroaldo Vieira e Silva.
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"Canto Final ou Agonia duma Noite Infecunda"
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Como a flor cortada rente e desfolhada
ou os olhos vazados da criança
e o seu fio de pranto ténue e impotente
assim a noite caminha com os astros todos em vertigem
até que se atinge o ponto da mudez
a pesada mó triturando a sílaba
a garganta com as cordas dilaceradas
e uma lêmina ácida e pontiaguda enterrada ao nível da carótida
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Entenda-se isto como noite e o seu transe derradeiro
tanto assim que a flor desfeita
não embala o coração do poeta
oh não
porque a flor defunta
se voa
não sobre nunca
e só dura
o espaço breve duma nota
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Assim o canto se detém imóvel
como se da flauta
falhando súbito
na boca do poeta
ficasse o hiato
ou a saliva
de um tempo devassado por insectos cor de cinza
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A voz suspensa e negada
cede a vez à letra amorfa
inscrita no silêncio
com seu peso
de chumbo e olvido
acaba o poema
e um ponto final selando tudo.
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Arménio Vieira In "Vozes Poéticas da Lusofonia", Ed. Câmara
Mun. de Sintra, 1999.
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"Cantiga do Batelão"



Se me visses morrer
os milhões de vezes que nasci

Se me visses chorar
os milhões de vezes que te riste...

Se me visses gritar
os milhões de vezes que me calei...

Se me visses cantar
os milhões de vezes que morri
e sangrei...

Digo-te irmão europeu
havias de nascer
havias de chorar
havias de cantar
havias de gritar

E havias de sofrer
a sangrar vivo
milhões de mortes como Eu !!!


José Craveirinha In "Xigubo", Edições 70,
Lisboa, 1980, p 36.
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