31/03/10

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"Protecção"


Quem mantém o lugar intocado
regressa sempre,
ainda que a estrada seja árdua
e a distância assustadora.

Não lhe faltam as colinas fulvas,
a sombra das árvores.
Multiplicam-se as searas.

Quem nasce do que vê
alimenta-se do seu próprio caminho.
Adquire alento na cinza
de cada um dos seus passos.

Nada espera das ideias que repetem a vida,
do seu passado e do seu futuro.
Só tem a protecção do desconhecido.

Joel Henriques in "A Claridade", Editora Casa do Sul,
s/c, 2008, p 58.
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30/03/10

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"Ignorância"


Ninguém sabe o nome das ruas
que conduzem à ventura.
Ninguém recorda o endereço
da sua felicidade.

Muitos percorrem as avenidas,
sempre vazios,
satisfeitos com os nomes
que as justificam.

Onde descobririam
a sua incandescência de estuário?
Onde, o seu desígnio?

Ao fundo destas ruas, não fica o eterno,
apenas o teu rosto e verbos transitivos.

Joel Henriques in "A Claridade", Editora Casa do Sul,
s/c., 2008, p 56.
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29/03/10

" (...) e entrego um exemplo/ aos que assistem e sonham ao contrário,"

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"Trampolim de 20 Metros"

Todos aplaudem os movimentos
que executo ao voar da prancha
para a água. E creio que são merecidos.
Procurei a perfeição em longas horas
de frio e solidão. Treinei
vezes sem conta o triplo mortal,
os mortais à rectaguarda, os empranchados.
Decido como quero o meu caminho
até à água e entrego um exemplo
aos que assistem e sonham ao contrário,
lamentando o tempo perdido e a obesidade.
Rasgo o pano líquido - navalha
afiada, inteiriça, mas com medo do sangue.
Depois subo à superfície
para receber os aplausos e ouvir os elogios,
embora me mantenha atrás duma cortina.
Ninguém sabe o que se passa dentro
de água, como simulo
aí reter-me, tocar no fundo, permanecer
no fundo o máximo de tempo possível.

José Ricardo Nunes in "Versos Olímpicos", Deriva Editores,
Porto, 2009, p 25.
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28/03/10

"Não me alarmo com o rosto/ que a vertigem puxa para dentro,"

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"Controlo Anti-Doping"

Tomam comprimidos, injectam
drogas e químicos poderosos
com o desejo de superar os limites
impostos à condição humana.
A qualquer preço adquirem força,
velocidade, um corpo transformado.

Há muito que o doping alastrou
do ciclismo às demais modalidades,
corrompendo a prática desportiva
e minando o espírito olímpico.
Combatê-lo é proteger o negócio.
Vence a verdade desportiva,
uma prosa sem honra nem brilho.

Comigo nunca foi assim.
Sento-me à secretária e escrevo.
Não me alarmo com o rosto
que a vertigem puxa para dentro,
desconexo, quase irreconhecível,
adulterado pelos efeitos secundários.

José Ricardo Nunes in "Versos Olímpicos", Deriva Editores,
Porto, 2009, p 19.
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26/03/10

"Sou um homem fiel a lugares,/ como sou fiel (demais) a mim mesmo, "

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...
Eis Leicester Square, não preciso de sonhar mais.

Sou um homem fiel a lugares,
como sou fiel (demais) a mim mesmo,
como sou fiel (demais) a sentimentos,
como sou fiel (demais) a ideias e princípios,
mas os bares, como a Roundhouse, nasceram
exactamente para nos esquecermos de tudo isso
e principalmente de nós mesmos,

do lixo que trazemos
e das ideais e princípios e sentimentos que nos amarram.

Sinto-me bem e leve no meio de tanta gente,
de tantas raparigas,

aqui a vida conflui
de agora e do passado, é só uma e sem hiatos,
daí que veja Ana Bolena misturada connosco,
a beber e a vozear como os outros,

só um discurso de Churchill na rádio nos silenciaria,
hipótese que se admite possa acontecer,
na Roundhouse nada há que não suceda.

Mais do que um confessou ter visto Eliot
no passeio oposto, enquanto uma celta afirmou
ter surpreendido Robin Wood a assaltar o
Barclay's Bank com a namorada. Jurou-mo
entre gargalhadas cristalinas de desejo.

Ó tentação,

o pint de cerveja era uma ponte ideal para ambos,

ou o restaurante tailandês onde irei jantar
por recomendação de amigos, o Srim Siam,

os amigos são óptimos para dar estas indicações.

Telefonei da manhã do hotel, que continuava
o naufrágio lamentável, telefonei a reservar mesa,

e a celta tem uns dentes tão brancos que me dói
olhá-los na boca húmida, aberta em gargalhadas,

ó fauno da ibéria romana,
ó bode selvagem do Gerês,
que misturada e primitiva humanidade é a nossa?

Sob o meu fato e o vestido negro dela
ocultam-se dois ímans duros que esperam.
(...)
Não, não quero complicações sentimentais,
não é isso que Londres me exige, nem a gente que passa.

Os estados de graça requerem abstinência, senão fenecem.

Não se pode tocar no sonho, as visões oníricas do fascínio
não permitem mais do que uma participação entusiasta,
o seu entendimento, a solidariedade que embebeda.

E esse é outro amor,
tudo se sabe que irá ser possuído, e sabê-lo
é já um orgasmo que eleva.

Não quero pensar no avião que partirá.

Nuno Dempster in "Londres", &etc, Lisboa, 2010, pp 42 - 44.

(Nota - o presente texto é um poema com algumas dezenas de páginas,
portanto outras opções poderiam ter sido feitas. Assim, poder-se-á ver
igualmente algumas das principais linhas de força desta poesia (pp.
13-16), a questão da beleza numa vida que é essencialmente contradição
(pp 26 - 27), a noção de efemeridade ligada ao poder e ao amor (pp. 36-37),
a irónica relação do teatro com o metropolitano (pp 39 - 41), etc. Optei por
este excerto, mas outras escolhas eram igualmente legítimas e justificáveis...)
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25/03/10

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      "Mayeútica"


El mundo sugiere.
No espero la visita de la musa,
voy por ella, la traigo de la mano.
Los que me conocen
dicen que la mía es una vida triste.
Pretender pasar las horas con una desconocida
discutiendo, discutiendo.
No pueden imaginar cuánto prefiero
su hiriente compañia,
el argumento casi siempre contrario,
la sarcástica sonrisa triunfadora,
al complaciente parloteo de todos ellos,
mis simpáticos amigos.
Dicen también que mi figura da pena
cuando a cualquier hora y de cualquier manera
salgo a buscar la escurridiza musa,
y vuelvo sola y se me oye inventar monólogos
que imitan sin gracia al diálogo.
Pero después de cada fracaso pienso:
Mañana volveré a buscarla,
si tiengo suerte
ella traerá su arpa y entre discurso y discurso,
tocará para mí una música espléndida.

Lauren Mendinueta in "La vocación suspendida", Editorial Point de lunettes,
Sevilla, 2008, p 54.
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24/03/10



      "Luz y Raíz"


Luz encendida la de esta hora
en la que el día suelta su cuerda y
cae la oreja sangrienta del ocaso.
Detrás de las piedras amontonadas
en algún lugar de la playa, cerca,
un rostro desierto de belleza
cuenta aquello visible sobre el agua.
Hombres que regresan al puerto
solos, cansados y sin infancia,
acompañarán el grito de las gaviotas,
como han ignorado vida tras vida
la luz de bronce, pesada y ciega,
de cada tarde. Adónde escapar?
Cielo del que no tenemos memoria,
luz encendida la de esta hora,
rostro desierto de su belleza,
aliento perdido, raíz del mundo,
puerto Colombia que te niegas al consuelo,
encendida lámpara de la miseria.

Lauren Mendinueta in "La Vocación Suspendida", Editorial Point de lunettes,
Sevilla, 2008, p 35.
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23/03/10

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"Visitador secreto"


Chegaste de Atenas,
Viril dos ginásios.
Celebram avenas
Os teus olhos gázeos.

E que novas há
Do sábio Platão?
No Banquete, já
Lhe estendeste a mão?

Já despiste a túnica
Diante de Zeus?
És a b'leza única
Que merece um deus?

Serviste-lhe a copa?
Vergaste o joelho?
Preferiu-te a boca
Ao vinho vermelho?

Narciso e jacinto
Exalam, liberto,
O aroma que sinto
Ao chegares mais perto.

O mar do Estio
Vai vestir de azul
E espuma do cio
O teu corpo nu.

No Outono, as chuvas
Alagam-te o rosto
Com sangue das uvas
E álcool do mosto.

Ignorando o amor,
O teu sexo espera
Desfolhar-se em flor
Pela Primavera.

António Manuel Couto Viana in "Ainda Não", Averno, Lisboa,
2010, pp 37 - 38.
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21/03/10

"Ah, esses velhos/ poetas chineses... "

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Les poètes chinois,
ces vieux poètes chinois,
s'enivrent et lèvent les yeux,
vers les oies sauvages qui tirent
à leur suite la tristesse de l'automne.
Ou encore, contemplant
la surface de l'eau,
leur propre image mirée,
ils peignent des vers qui
parlent d'un rameau de prunier en fleurs.

Ah, ces vieux
poètes chinois qui
quintessencient l'ivresse en poésie de la vieillesse.

Zbynèk Hejda in "Valse mélancolique", Cheyne Éditeur,
Chambon-sur-Lignon, 2008, p 61 (Tradução do checo para
o francês de Erika Abrams).
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19/03/10

"Maria Toscano: a serena construção da persistência"

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Longa tem sido a marca de toda uma imagética de cariz lupino na cultura do ocidente. Na Antiguidade tanto a podemos encontrar na mitologia - como é o caso do mito da formação de Roma -, como nos textos literários, alguns deles com vincada função normativa, como por exemplo a célebre fábula "O lobo e o cordeiro" de Esopo, que mais tarde La Fontaine viria a retomar. Maria Toscano, com este seu novo livro, insere-se assim num continuum literário, onde grandes nomes se inscrevem, mas cuja simbologia ela subverte em função de intentos que se distinguem dos tradicionais. Esta sua obra apresenta-nos de imediato um heterodoxa tecedura que, obedecendo a uma lógica triádica, parece querer provocar o leitor naquilo que nele é capacidade de apreender e dar sentido a uma obra de poesia: estamos frente a um extenso poema subdividido em sete partes? Deparam-se-nos sete longos poemas articulados entre si? Apresenta-se-nos um conjunto de pequenas unidades poemáticas que, apesar de ordenadas segundo um percurso, é aleatoriamente que remetem umas para as outras? Nenhuma opção toma a poeta, e não a toma porque, numa obra onde o discurso aponta para o que é livre, também no campo formal caberá ao leitor a decisão de como quer ler, até - quem sabe? - segundo uma alternativa nem sequer ainda pensada.
Maria Toscano, neste seu texto, parte de duas noções fundamentais: a "cruel chaga" e os "lobos vivos" ("cruel chaga/ aliementa os lobos vivos" p. 3; "somos várias gerações de descendentes/ fazemos os trilhos a passo à mão a pulso./ habitamos a tenaz identidade/... da livre matilha dos lobos vivos" (p. 43). Numa constante relação dialógica com elas, um novo par de conceitos irrompe: a "impermanência" e os "trilhos" (" os lobos fazem muitos trilhos/ circunscritos à fronteira da impermanência" p. 12, cf. também pp. 1o, 18...), se os trilhos são tomados, pela poeta, na sua visão corrente, já a ideia de impermanência assume, nesta poesia, um conjunto de sentidos que tanto pode significar o devir heracliteano, como um hegeliano dizer-se na História, ou ainda a mobilidade fenoménica tal como a entende a filosofia budista. Maria Toscano, como fizera com os aspectos formais da obra, irá também construir, com exigência e mestria, toda uma filigrana poética marcada por um jogo de progressão e remissões, que nos conduz, através de um solo com um cunho igualmente antropológico, a um território onde a liberdade seja de modo indelével e absoluto: "têm matilhas de onde partem e onde voltam/ onde, um dia voltarão inteiros, vivos/ seguindo os sinais da cruel ferida aberta/ chaga mantimento mapa// a ferida ilesa que os encaminha." (p. 16); "os lobos trabalhadores (...)/ Ao trabalhar seus caminhos acenam para o longe" (p. 21).
Esta "errância" (cf. p. 36) dos vários grupos sociais como se de lobos se tratasse remete-nos imediatamente para uma obra emblemática do nosso século XX: "Sei que Vosselências ignoram-no, mas eu posso garantir-lhes: o serrano, que os senhores se propõem imolar nas aras dum pretendido progresso, é um misto de desespero, orgulho, mansidão, meio lobo, meio carneiro (...) A serra é por assim dizer a extensão universitária destas aldeias rupestres e broncas, autênticas terras do Demo" (1). Os lobos de Maria Toscano, tal como os de Aquilino (Teotónio Louvadeus, o advogado Rigoberto, etc.), pugnam pelo que é livre e autêntico, ou seja, por essas serras (ou cidades?) onde possam ressoar as copas das árvores e os uivos dos "lobos vivos", e tal como o romancista também a poeta opera uma cisão no seio do universo lupino, já que em ambos, os lobos não são apenas os que ousam ("domam rostos coloridos de casas/ domam lavas. abrigos/ pedras vizinhas." (p. 20), "dedo-a-dedo nos musgos da irreverência desenham a imprevisível escrita" p. 24, "ateiam a fronteira permanente da serena inquietude radical" p. 28), eles encarnam também instituições, normas e modelos de comportamento propagados numa sociedade onde um ditador "decretava o medo, a honra da pobreza" (p. 41) e " proibia fartura beleza canto e riso" (idem).
Estamos, pois, com Maria Toscano, frente a uma poesia que nada tem a ver com qualquer tipo de niilismo individualista, cujas invectivas acutilantes apenas possam servir ao contexto na imagem de tolerância que de si encena. Na sua poesia é precisamente o contrário que acontece: são inúmeras, e perpassam por toda a obra, as alusões à circunspecção dos seus lobos ("os artífices da espera tecedeira das estações" p. 20, "de olhar ardente/ compasso vagaroso" p. 34... e até as lobas são "tão pacientes como laboriosas" p. 32); aqui é precisamente outro o itinerário: foi pacientemente que o Estudante, o lobinho que a personagem de Aquilino criou, roeu a trela; foi com siso e reflexão que Harry Haller, o lobo das estepes de Hermann Hesse, foi corroendo o contexto em que vivia: "Porque isto era o que eu mais odiava, detestava e maldiizia principalmente no meu foro íntimo: esta auto-satisfação, esta saúde e comodidade, este cuidadoso optimismo burguês, esta bem alimentada e próspera disciplina de todo o medíocre, normal e vulgarmente aceite" (2). O estrepitoso ulular dos encarcerados não convém a estes lobos de Maria Toscano, eles são de outra cepa: há neles, paradoxalmente, algo de felino, pois sabem que a persistência se rege por um sereno, mas nunca desistente, envolvimento com a práxis. Por conseguinte, tal como em Hobbes, se - no seu Estado Natural - o homem é semelhante ao lobo e tenderá a devorar aquele que se lhe apresenta como mais fraco, a matilha terá de, cuidadosamente, instituir formas de poder, que, sem os malabarismos teóricos do filósofo inglês (3), levem a cabo formas de convivência inequivocamente justas e livres. E é citando Jorge de Sena, Camões, Natália Correia e Fernando Pessoa (p. 34), que a poeta articula sabiamente todo este legado e preocupações, não só com o seu próprio projecto poético, mas também com outras escritas que nos parecem querer acenar aqui e acolá, como por exemplo alguns textos de Manuel da Fonseca e de José Rodrigues Miguéis.
Herdeira de movimentos e registos tão diversificados como os aqui referidos, Maria Toscano de todos se demarca na edificação de uma voz que pretende nítida e singular. Específico é também o modo como articula o seu olhar sobre o social com a escorreita e envolvente descrição do mundo dos afectos (não nos podemos esquecer dos vários excertos que falam do relacionamento dos lobos com as lobas e destas com as suas crias), bem como a forma como às páginas lança os seus versos, quais ondas que, em sua cadênciada musicalidade, nos incentivam o cismar em prol de um lugar que queremos próximo e sem escolhos de qualquer tipo.
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(1) Aquilino Ribeiro in "Quando os lobos uivam", Livraria Bertrand, Lisboa, 1974, p. 69.
(2) Hermann Hesse in "El lobo estepario", Editorial Seix barral, Barcelona, 1985, pp. 24 - 25 (Tradução do autor do Prefácio).
(3) Cf. Hobbes, Leviathan, Everyman´s Library, New YorK, 1973 (Chap. XVII - Of Common Wealth-, pp 87 - 90; Chap. XXVI - Of Civill Laws -, pp. 140 - 154).
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Victor Oliveira Mateus in "Os Lobos" de Maria Toscano, Grácio Editor, Coimbra, 2010.
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18/03/10

"E... eis-nos aqui: poetas sobreviventes/ à mistura com os cães vagabundos."

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Est-il certain que nous ayons un jour été?
Ou que cela n'ait pas été trop tard?
Sur quelles plaques avons-nous donc gravé
nos images plus noires que noir?

Lessivées, lavées par les pluies du temps,
les images des blanches villes et des villages.
Et nous voilà donc: quelques poètes survivants
avec les chiens vagabonds.

Zbynèk Hejda in "Valse mélancolique", Cheyne Éditeur,
Chambon-sur-Lignon, 2008, p 17 (Tradução do checo para
o francês de Erika Abrams).
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17/03/10

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      "Esperança, Adeus!"


Descobri, numa esquina, o Encoberto.
Disse-me: "Sou Sebastião I,
Real e verdadeiro.
Mas com destino incerto.

Não venho de nenhum sepulcro aberto:
Venho do nevoeiro.
Perdi-me, derradeiro cavaleiro,
Nu, nas areias do deserto.

Estendo a mão à esmola do meu povo:
Que me dê coração, activo e novo.
Venho das trevas para ser amado."

Mostrei-lhe almas vazias:
- É o que resta de nós, na agonia dos dias,
Ó meu rei concebido sem pecado!

António Manuel Couto Viana in "Ainda Não", Averno, Lisboa, 2010, p 43.
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16/03/10

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Vieste como um barco carregado de vento, abrindo
feridas de espuma pelas ondas. Chegaste tão depressa
que nem pude aguardar-te ou prevenir-me; e só ficaste
o tempo de iludires a arquitectura fria do estaleiro

onde hoje me sentei a perguntar como foi que partiste,
se partiste,
que dentro de mim se acanham as certezas e
tu vais sempre ardendo, embora como um lume
de cera, lento e brando, que já não derrama calor.

Tenho os olhos azuis de tanto os ter lançado ao mar
o dia inteiro, como os pescadores fazem com as redes;
e não existe no mundo cegueira pior do que a minha:
o fio do horizonte começou ainda agora a oscilar,
exausto de me ver entre as mulheres que se passeiam
no cais como se transportassem no corpo o vaivém
dos barcos. Dizem-me os seus passos

que vale a pena esperar, porque as ondas acabam
sempre por quebrar-se junto das margens. Mas eu sei
que o meu mar está cercado de litorais, que é tarde
para quase tudo. Por isso, vou para casa

e aguardo os sonhos, pontuais como a noite.

Maria do Rosário Pedreira in "O Canto do Vento nos Ciprestes",
Gótica, Lisboa, 2001, p 59.
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15/03/10

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Mãe, eu quero ir-me embora - a vida não é nada
daquilo que disseste quando os meus seios começaram
a crescer. O amor foi tão parco, a solidão tão grande,
murcharam tão depressa as rosas que me deram -
se é que me deram flores, já não tenho a certeza, mas tu
deves lembrar-te porque disseste que isso ia acontecer.

Mãe, eu quero ir-me embora - os meus sonhos estão
cheios de pedras e de terra; e, quando fecho os olhos,
só vejo uns olhos parados no meu rosto e nada mais
que a escuridão por cima. Ainda por cima, matei todos
os sonhos que tiveste para mim - tenho a casa vazia,
deitei-me com mais homens do que aqueles que amei
e o que amei de verdade nunca acordou comigo.

Mãe, eu quero ir-me embora - nenhum sorriso abre
caminho no meu rosto e os beijos azedam na minha boca.
Tu sabes que não gosto de deixar-te sozinha, mas desta vez
não chames pelo meu nome, não me peças que fique -
as lágrimas impedem-me de caminhar e eu tenho de ir-me
embora, tu sabes, a tinta com que escrevo é o sangue
de uma ferida que se foi encostando ao meu peito como
uma cama se afeiçoa a um corpo que vai vendo crescer.

Mãe, eu vou-me embora - esperei a vida inteira por quem
nunca me amou e perdi tudo, até o medo de morrer. A esta
hora as ruas estão desertas e as janelas convidam à viagem.
Para ficar, bastava-me uma voz que me chamasse, mas
essa voz, tu sabes, não é a tua - a última canção sobre
o meu corpo já foi há muito tempo e desde então os dias
foram sempre tão compridos, e o amor tão parco, e a solidão
tão grande, e as rosas que disseste que um dia chegariam
virão já amanhã, mas desta vez, tu sabes, não as verei murchar.

Maria do Rosário Pedreira in " O Canto do Vento nos Ciprestes",
Gótica, Lisboa, 2001, pp 35 - 36.
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Apresentação de um livro.


MARIA TOSCANO FARÁ A APRESENTAÇÃO DO SEU OITAVO LIVRO DE POESIA -
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"OS LOBOS" NO PRÓXIMO DOMINGO, 21 DE MARÇO, DIA MUNDIAL DA POESIA,
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PELAS 17h.oo NO I.P.J. DE COIMBRA.
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A OBRA TERÁ AINDA OUTRO LANÇAMENTO, EM ABRIL, NA BIENAL DE POESIA
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DE SILVES.
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14/03/10

Jean Ferrat (26/1/1930 - 13/3/2010): "Aimer à perdre la raison", poema de Aragon.

(Nota - a tese de doutoramento "Jean Ferrat: de la fabrique aux cimes",

da autoria de Bruno Joubrel, foi reeditada em 2008 por "Les Belles Lettres" de Paris.)

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"(...) Torno a te che geli// nella mia lieve tunica di fuoco."

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È rimasta laggiù, calda, la vita,
l'aria colore dei miei occhi, il tempo
che bruciavano in fondo ad ogni vento
mani vive, cercandomi...

Rimasta à la carezza che non trovo
più se non tra due sonni, l'infinita
mia sapienza in frantumi. E tu, parola
che tramutavi il sangue in lacrime.

Nemmeno porto un viso
con me, già trapassato in altro viso
come spera nel vino e consumato
negli accesi silenzi...

Torno sola
tra due sonni laggiù, vedo l'ulivo
roseo sugli orci colmi d'acqua e luna
del lungo inverno. Torno a te che geli

nella mia lieve tunica di fuoco.

Cristina Campo in "O Passo do Adeus", Assírio & Alvim,
Lisboa, 2002, p 24.

(Tradução de José Tolentino Mendonça:

Ficou para trás, quente, a vida,
a marca colorida dos meus olhos, o tempo
em que ardiam no fundo de cada vento
mãos vivas, cercando-me...

Ficou a carícia que não encontro
senão entre dois sonos, a infinita
minha sabedoria em pedaços. E tu, palavra
que transfiguravas o sangue em lágrimas.

Nem sequer um rosto trago
comigo, já traspassado em outro rosto
como esperança no vinho e consumado
em acesos silêncios...

Volto sozinha
entre dois sonos là' trás, vejo a oliveira
rósea nas talhas cheias de água e lua
do longo inverno. Torno a ti que gelas

na minha leve túnica de fogo.

op. cit. p 25. )
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12/03/10

"e dos teus braços brancos as mãos ásperas/ que são todas as noites um voo sentido"

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"Mulher Ave"

A cada um dos meus dedos
contei o princípio do teu nome
soletrei a tua língua de areia
e os anéis da tua pele

A caminho dos teus pés
ponderei as razões das caravanas
e do vento que sobe ao teu vestido
Nas tuas pernas de veias túmidas de hena
há filigranas de paisagens
e tripulantes escuros de plumas azuis

A tua pele curtida é argamassa de gerações
de mulheres migratórias
de ruínas e linho intumescido no seio

Os teus cabelos abrem o tempo
e lembram rotas da seda e dromedários
tendas, cortinas e o frio do deserto
entre os corpos súbitos
E no teu leito repousam 15 mil homens
sucessivos e a concepção das raças

Há barcos que repousaram no teu oásis ondulante
com mastros e velas soberbas à tua passagem
peixes que te reconhecem do outro lado do mar
como na enseada do teu ventre

Recuperas das viagens e das cidades prometidas
do teu corpo inscrito no cansaço, nas pedras de sal
dos teus olhos, onde a sombra das colinas ao perto
revela ainda erupções e apelos de humidade

Os teus filhos númidas, púnicos e berberes
têm do teu rosto a recordação da disputa
e dos teus braços brancos as mãos ásperas
que são todas as noites um voo sentido
antes do acontecimento ao teu corpo

Tiago Patrício in " O Livro das Aves", Quasi Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2009, pp 15 - 16.
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11/03/10

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"Franz Schubert:
Standchen "


Os pensamentos que me assaltam nesta madrugada
fria de Setembro
não estão longe da distância dos teus lábios
e do rumor suave das tuas mãos que tocam
as insígnias de Deus sob o dorso da terra.

Se olhasses para mim verias nos meus olhos
a lancinante expressão da solidão
e a esperança sem qualquer indecisão
de que é possível o teu nome ser maior
que o céu que me vela o silêncio da noite.

Amar-te desde sempre é mais que uma forma de estar vivo
e dar expressão à divindade que trago comigo
desde que atravessei a fronteira
que entre o mar e o mar estabelece
a luz mais verdadeira.

O mais sequer é tempestade que neste coração sangra,
ou dúvida subtil ou estremecimento,
sentindo o alvoroço em que te sinto
apenas peço que sejas tu o assombro
e me devolvas enfim a harmonia.

Amadeu Baptista in " o bosque cintilante", Cosmorama Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2008, p 39.
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10/03/10

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"Balançando devagarinho"
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Mestre Antônio, por seu favor,
preciso urgente de um rapé de imburana,
a cera-de-abelha,
parece que de jandaíra,
de abelha-limão não é,
meio falsificada a cera,
os cabras são safados, botaram saburá,
talvez serragem,
mesmo assim cheirou.

Agora o barbante,
o barbante encerado,
para costurar o livro
pois o livro é puro sertão,
é puro lá-em-casa,

quando...

Minha mãe abria,
com muito cuidado,
e me mostrava a rainha,
o cortiço que eram oito,
a jandaíra da casinha alpendrada,
adredemente abelha,
adredemente alpendre,
adredemente sombra,
elas zumbiam
e ninguém tinha medo,

quando...

A garrafinha de mel,
uma xícara e o limão
(se não tinha limão, uma casca de laranja),
a colher esquentada, esfregada-na-mão,
mel e mel, que eram dois,
um da garrafa, do frio da serra, mel,
o outro, das mãos, era mais quente
e cheiros de mel & mel,

quando...

(...)
E não se esqueça, mestre Antônio,
jogar o pião não é só rebolar para frente
tem que ter um empurrar-puxar,
vai-que-vem
e unha,
bote de serpente
de vasta calmaria,
mergulho-e-tona,
algum engenho
e menino
danado,
de preferência

Costurei um a um.

Fiz.

Vinte.

Vinte,
às imburanas,
às abelhas jandaíras lá de casa,
ao mel-mel
de um pano morno,
dorme menino.

Também a uma menina
que fiava barbantes
à lamparina;
incendiavam-se
olho e coração;
amanhã, você me veja,
menino danado,
se não vai correr...
na poeira quente.

Corria.

De não parar,
todas as tardes,
de noite também corria,
em especial
de lua crescente.

Durma, meu filho.

Barbante que se dissolve ao movimento
bote de cobra-rodilha
à vista
aos ouvidos
aos outros três e aos demais
indagadores
de mais coisas
sentidos
sei que tem mais coisa
muito mais
para além de um simples giro-de-pião
quando se espatifa o giro
no estertor e pára
de borco
para além de um simples lembrar
muito além da tarde rubra.

Não existe pião.

Só giro

E sopro.

Existem.

Soares Feitosa (Salvador, o6.o5.1995)

Nota - Dado estarmos frente a um poema bastante
extenso, optamos, para já, por uma supressão de texto
a meio do poema, contudo essa falha irá, aos poucos,
sendo colmatada até ele estar postado na integra.
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09/03/10

Apresentação do livro "Quando junto às horas se ilumina um rio" de Alice Fergo...

... na Livraria Pó dos Livros no dia 6 de Março de 2010.





"Viagem pelos frutos dentro, aqui me tens! "


"Metáfora Única"

Desdobro planos. Volto às fundações. Encontro a candura floral da
polpa e, com dedos de leite, esfrego-a no corpo. Quase me supero
na sofreguidão dos aromas. Quase absorvo o fluido da metáfora
única, de repente mais fértil. Viagem pelos frutos dentro, aqui me
tens! Aqui me entrego à substância quase divina dos dias e sou
até quando.

Alice Fergo in " Quando junto às horas se ilumina um rio",
Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 26.
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"O Essencial"

Quarta-feira - dia azul exacto na casa. Repenso tudo a partir do
lótus ao espelho. Os recantos extravagantes reclamam o essencial.
Desembaraço os pontos de luz. Extermino papéis rasurados.
Minimizo frases donde ressalta algum desperdício. Tenho de
poupar nas palavras.

Alice Fergo in " Quando junto às horas se ilumina um rio ",
Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 39.
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08/03/10

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"Camões dirige-se aos seus contemporâneos"


Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós, sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.

Jorge de Sena in "Poesia - II", Moraes Editores, Lisboa, 1978, p 99.
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07/03/10

"aonde as claridades nascem pretas"

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"Lisboa"

esta é a cidade fantasma dos poetas
das portas negras onduladas
aonde as claridades nascem pretas
e as liberdades envidraçadas

esta é a cidade onde e donde
chegam e partem navios
e espreitam gatos pretos de olhos pretos
castrados frios

esta é a célebre cidade capital
e colchão de nosso nome
onde acordado
se ressona medo do medo natural

esta é a cidade onde cadáveres
dão vivas a cadáveres pelas ruas

Eduardo Olímpio in "Como Quem Leva ao Ombro a Vida Toda",
Editorial Caminho, Lisboa, 1986, 71.
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06/03/10

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"O inominado"


se eu não fizer
assim (como hei-de
dizer?) amor
sim amor contigo
muitas (meudeus!) vezes
com preguicinhas boas
tolices ao ouvido
revoadas de beijos
repentes dentes
olhares pestanejados com carinho
oh
nem terei nome
serei "o coiso" "esse aí" o "como
é que ele se chama?"
o que dorme singelo
o que ninguém ( ai ai) ama.

Alexandre O'Neill in "Entre a cortina e a vidraça", Editorial Estúdios Cor,
Lisboa, 1972, p 21.
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04/03/10

Apresentação de um livro.

A EDITORA LABIRINTO E A LIVRARIA PÓ DOS LIVROS CONVIDAM-VOS PARA O
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LANÇAMENTO DO LIVRO "QUANDO JUNTO ÀS HORAS SE ILUMINA UM RIO",
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DE ALICE FERGO.
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A SESSÃO TERÁ LUGAR NO DIA 6 DE MARÇO, PELAS 16h,30, NA LIVRARIA PÓ DOS
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LIVROS SITA NA AVª MARQUÊS TOMAR, 89 - LISBOA.
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A APRESENTAÇÃO DA OBRA SERÁ FEITA POR Victor Oliveira Mateus, AUTOR DO
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POSFÁCIO.
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Tão verdade que já estavam na vila os carros dos engenheiros e as máquinas de lavrar - informou outra voz. Vinham portanto os cães do Governo escorraçá-los da serra! Então o dia do juízo estava a amanhecer!
Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha de olho vivo. Já lhes levavam coiro e camisa em contribuições, tributos, posturas, alcavalas de vária ordem, e vinham ainda esbulhá-los da serra! Hoje a serra, amanhã, por uma razão análoga, corriam-nos de casa para fora. Ah, cachaporra dum santo! O que todos queriam era viver à custa da barba longa, mãos brancas com bons anéis, bom automóvel, amigas para o gozo e criadas para todo o serviço que vinham buscar aos viveiros da plebe, cabritos gordos que se criavam nos ferregiais, e trutas que eles serranos estavam proibidos de pescar nos seus rios. Que maiores carrascos e ladrões!?
Esta era a noção que tinham do Governo. O Governo não era formado por um corpo de homens bons e sábios, com função directiva, reguladora e distribuidora dos bens comuns, e atentos à promulgação e defesa do direito? Qual quê? Bandoleiros das encruzilhadas e gorgulhos silenciosos das arcas e larvas da carne é que eles eram!
- Morram! - rouquejava a voz irosa pelas vielas das dez aldeias.
Uma vez a correr o rumor de que o Governo ia tomar posse da serra, o problema transcendia para o terreno do assalto e roubalheira à mão armada. Em brejos e chapadas, os roçadores endireitavam a suã e, queixo por cima dos punhos, apoiados ao cabo da roçadoira, olhos em alvo, quedavam-se a considerar. Alguns amortalhavam o seu paivante. Os mais jogaram fora a enxada:
- Se me hão-de levar o mato, já não roço mais. Puta que os pariu!
Foram-se juntando e alagando os ecos com sua grita de incêndio.(...) Tudo a postos, sem que soasse o clarim! Ia-se ver quem os tinha no seu lugar. Parada da Santa era a sede do quartel general, uma vez que ali residia o mais afoito e denodado dos serranos, homem de cabeça e de pulso, o João Rebordão. Este, por fas ou por nefas, estava arvorado em caudilho. Mas ele queria e, tomando a investidura a capricho, desatou a dar ordens de alevante.
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Aquilino Ribeiro in "Quando os lobos uivam", Livraria Bertrand, Lisboa, 1974, pp 196 - 197.
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02/03/10

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Io ero un ucello
dal bianco ventre gentile,
qualcuno mi ha tagliato la gola
per riderci sopra,
non so.
Io ero un albatro grande
e volgeggiavo sui mari.
Qualcuno ha fermato il mio viaggio,
senza nessuna carità di suono.
Ma anche distesa per terra
io canto ora per te
le mie canzoni d'amore.

Alda Merini in "A Terra Santa", Edições Cotovia, Lisboa, 2004, p 38.

(Tradução de Clara Rowland:

Eu era um pássaro
com o branco ventre gentil,
alguém me cortou a garganta
para se rir,
não sei.
Eu era um grande albatroz
e pairava sobre os mares.
Alguém deteve a minha viagem,
sem qualquer caridade de som.
Mas mesmo estendida no chão
eu canto agora para ti
as minhas canções de amor.

Alda Merini, op. cit., p 39.)
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01/03/10

Mary Renault (com o cão no colo) e Julie Mullard.
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Ninguém possui os deuses. Mas há alguns que eles escolhem para mais perto de si. Não o esqueci.
Encostado a uma parede na sala de audiências em Zadracarta, observei-o numa audiência que concedeu aos macedónios(...) quando um correio entrou com mensagens da Macedónia.(...)Enquanto as abria, Heféstion aproximou-se e sentou-se a seu lado. Dei um suspiro mais forte: isto ultrapassava todos os limites. No entanto, Alexandre limitou-se a passar-lhe alguns rolos para a mão.
Não estava muito longe de mim, por isso ouvi Alexandre quando ele pegou na carta maior: "É da Mãe", e suspirou.
"Lê-a já", disse Heféstion.
Embora o odiasse, entendia porque razão as mulheres de Dario lhe prestaram honras na confusão da sua dor. Segundo os nossos cânones persas, suponho que era o mais belo; era o mais alto, com feições raiando a perfeição. Quando o seu rosto se quedava em silêncio, era de uma gravidade onde se insinuava a tristeza. O seu cabelo era de um bronze brilhante embora mais áspero do que o meu.
Alexandre abrira entretanto a carta da Rainha Olímpia. Heféstion apoiando-se no seu ombro leu-a também.
Através da minha amargura percebi que tal chocara os próprios macedónios. Os seus murmúrios chegavam até mim. "Quem é que ele pensa que é?","Claro que todos o sabemos mas não é necessário gritá-lo aos quatro ventos."(...)
Aquilo que ele possuíra, jamais voltaria a ser de outro. O seu direito era honrado; que podia ele desejar mais?(...) Nessa noite, sentia-me confuso num misto de dor e culpa. Perdi então a noção de equilíbrio e experimentei um truque que aprendera em Susa, o tipo de coisas que nunca lhe passaria pela cabeça que eu sabia...
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Mary Renault in "O Jovem Persa", Assírio & Alvim, Lisboa, 1991, pp 136 - 138.
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