19/03/10

"Maria Toscano: a serena construção da persistência"

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Longa tem sido a marca de toda uma imagética de cariz lupino na cultura do ocidente. Na Antiguidade tanto a podemos encontrar na mitologia - como é o caso do mito da formação de Roma -, como nos textos literários, alguns deles com vincada função normativa, como por exemplo a célebre fábula "O lobo e o cordeiro" de Esopo, que mais tarde La Fontaine viria a retomar. Maria Toscano, com este seu novo livro, insere-se assim num continuum literário, onde grandes nomes se inscrevem, mas cuja simbologia ela subverte em função de intentos que se distinguem dos tradicionais. Esta sua obra apresenta-nos de imediato um heterodoxa tecedura que, obedecendo a uma lógica triádica, parece querer provocar o leitor naquilo que nele é capacidade de apreender e dar sentido a uma obra de poesia: estamos frente a um extenso poema subdividido em sete partes? Deparam-se-nos sete longos poemas articulados entre si? Apresenta-se-nos um conjunto de pequenas unidades poemáticas que, apesar de ordenadas segundo um percurso, é aleatoriamente que remetem umas para as outras? Nenhuma opção toma a poeta, e não a toma porque, numa obra onde o discurso aponta para o que é livre, também no campo formal caberá ao leitor a decisão de como quer ler, até - quem sabe? - segundo uma alternativa nem sequer ainda pensada.
Maria Toscano, neste seu texto, parte de duas noções fundamentais: a "cruel chaga" e os "lobos vivos" ("cruel chaga/ aliementa os lobos vivos" p. 3; "somos várias gerações de descendentes/ fazemos os trilhos a passo à mão a pulso./ habitamos a tenaz identidade/... da livre matilha dos lobos vivos" (p. 43). Numa constante relação dialógica com elas, um novo par de conceitos irrompe: a "impermanência" e os "trilhos" (" os lobos fazem muitos trilhos/ circunscritos à fronteira da impermanência" p. 12, cf. também pp. 1o, 18...), se os trilhos são tomados, pela poeta, na sua visão corrente, já a ideia de impermanência assume, nesta poesia, um conjunto de sentidos que tanto pode significar o devir heracliteano, como um hegeliano dizer-se na História, ou ainda a mobilidade fenoménica tal como a entende a filosofia budista. Maria Toscano, como fizera com os aspectos formais da obra, irá também construir, com exigência e mestria, toda uma filigrana poética marcada por um jogo de progressão e remissões, que nos conduz, através de um solo com um cunho igualmente antropológico, a um território onde a liberdade seja de modo indelével e absoluto: "têm matilhas de onde partem e onde voltam/ onde, um dia voltarão inteiros, vivos/ seguindo os sinais da cruel ferida aberta/ chaga mantimento mapa// a ferida ilesa que os encaminha." (p. 16); "os lobos trabalhadores (...)/ Ao trabalhar seus caminhos acenam para o longe" (p. 21).
Esta "errância" (cf. p. 36) dos vários grupos sociais como se de lobos se tratasse remete-nos imediatamente para uma obra emblemática do nosso século XX: "Sei que Vosselências ignoram-no, mas eu posso garantir-lhes: o serrano, que os senhores se propõem imolar nas aras dum pretendido progresso, é um misto de desespero, orgulho, mansidão, meio lobo, meio carneiro (...) A serra é por assim dizer a extensão universitária destas aldeias rupestres e broncas, autênticas terras do Demo" (1). Os lobos de Maria Toscano, tal como os de Aquilino (Teotónio Louvadeus, o advogado Rigoberto, etc.), pugnam pelo que é livre e autêntico, ou seja, por essas serras (ou cidades?) onde possam ressoar as copas das árvores e os uivos dos "lobos vivos", e tal como o romancista também a poeta opera uma cisão no seio do universo lupino, já que em ambos, os lobos não são apenas os que ousam ("domam rostos coloridos de casas/ domam lavas. abrigos/ pedras vizinhas." (p. 20), "dedo-a-dedo nos musgos da irreverência desenham a imprevisível escrita" p. 24, "ateiam a fronteira permanente da serena inquietude radical" p. 28), eles encarnam também instituições, normas e modelos de comportamento propagados numa sociedade onde um ditador "decretava o medo, a honra da pobreza" (p. 41) e " proibia fartura beleza canto e riso" (idem).
Estamos, pois, com Maria Toscano, frente a uma poesia que nada tem a ver com qualquer tipo de niilismo individualista, cujas invectivas acutilantes apenas possam servir ao contexto na imagem de tolerância que de si encena. Na sua poesia é precisamente o contrário que acontece: são inúmeras, e perpassam por toda a obra, as alusões à circunspecção dos seus lobos ("os artífices da espera tecedeira das estações" p. 20, "de olhar ardente/ compasso vagaroso" p. 34... e até as lobas são "tão pacientes como laboriosas" p. 32); aqui é precisamente outro o itinerário: foi pacientemente que o Estudante, o lobinho que a personagem de Aquilino criou, roeu a trela; foi com siso e reflexão que Harry Haller, o lobo das estepes de Hermann Hesse, foi corroendo o contexto em que vivia: "Porque isto era o que eu mais odiava, detestava e maldiizia principalmente no meu foro íntimo: esta auto-satisfação, esta saúde e comodidade, este cuidadoso optimismo burguês, esta bem alimentada e próspera disciplina de todo o medíocre, normal e vulgarmente aceite" (2). O estrepitoso ulular dos encarcerados não convém a estes lobos de Maria Toscano, eles são de outra cepa: há neles, paradoxalmente, algo de felino, pois sabem que a persistência se rege por um sereno, mas nunca desistente, envolvimento com a práxis. Por conseguinte, tal como em Hobbes, se - no seu Estado Natural - o homem é semelhante ao lobo e tenderá a devorar aquele que se lhe apresenta como mais fraco, a matilha terá de, cuidadosamente, instituir formas de poder, que, sem os malabarismos teóricos do filósofo inglês (3), levem a cabo formas de convivência inequivocamente justas e livres. E é citando Jorge de Sena, Camões, Natália Correia e Fernando Pessoa (p. 34), que a poeta articula sabiamente todo este legado e preocupações, não só com o seu próprio projecto poético, mas também com outras escritas que nos parecem querer acenar aqui e acolá, como por exemplo alguns textos de Manuel da Fonseca e de José Rodrigues Miguéis.
Herdeira de movimentos e registos tão diversificados como os aqui referidos, Maria Toscano de todos se demarca na edificação de uma voz que pretende nítida e singular. Específico é também o modo como articula o seu olhar sobre o social com a escorreita e envolvente descrição do mundo dos afectos (não nos podemos esquecer dos vários excertos que falam do relacionamento dos lobos com as lobas e destas com as suas crias), bem como a forma como às páginas lança os seus versos, quais ondas que, em sua cadênciada musicalidade, nos incentivam o cismar em prol de um lugar que queremos próximo e sem escolhos de qualquer tipo.
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(1) Aquilino Ribeiro in "Quando os lobos uivam", Livraria Bertrand, Lisboa, 1974, p. 69.
(2) Hermann Hesse in "El lobo estepario", Editorial Seix barral, Barcelona, 1985, pp. 24 - 25 (Tradução do autor do Prefácio).
(3) Cf. Hobbes, Leviathan, Everyman´s Library, New YorK, 1973 (Chap. XVII - Of Common Wealth-, pp 87 - 90; Chap. XXVI - Of Civill Laws -, pp. 140 - 154).
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Victor Oliveira Mateus in "Os Lobos" de Maria Toscano, Grácio Editor, Coimbra, 2010.
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