30/07/12

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      " Coffee "


The only precious thing I own, this little espresso
cup. And in it a dark roast all the way
from Honduras, Guatemala, Ethiopia
where coffee was born in the 9th century
getting goat herders high, spinning like dervishes, the white blooms
cresting out of the evergreen plant, Ethiopia
where I almost lived for a moment but
then the rebels surrounded the Capital
so I stayed home. I stayed home and drank
coffee and listened to the radio
and heard how they were getting along. I would walk
down Everett Street, near the hospital
where my brother was bound
to this white bed like a human mast, where he was
getting his mind right and learning
not to hurt himself. I would walk by and be afraid  and smell
the beans being roasted inside the garage
of an old warehouse. It smelled like burnt
toast! It was everywhere in the trees. I couldn't
bear to see him. Sometimes
he would call. He wanted us
to sit across from each other, some coffee between us,
sober. Coffee can taste like grapefruit
or caramel, like tobacco, strawberry,
cinnamon, the oils being pushed
out of the grounds and floating to the top of a French Press,
the expensive kind I get
in the mail, the mailman with a pound of Sumatra
under his arm, ringing my doorbell,
walking me up from a night when all I had was tea
and watched a movie about the Queen of England when Spain was hot
for all her castles and all their ships, carved out
of fine Spanish trees, went up in flames
while back home Spaniards were growing potatoes
and coffee was making its careful way
along a giant whip
from Africa to Europe
where cafes would become famous
and people would eventually sit with their cappuccinos, the baristas
talking about the new war, a cup of sugar
on the table, a curled piece of lemon rind. A beret
on someone's head, a scarf
around their neck. A bomb in a suitcase
left beneath a small table. Right now
I'm sitting near a hospital where psychotropics are being
carried down the hall in a pink cup,
where someone is lying there and he doesn't know who
he is. I' listening
to the couple next to me
talk about their cars. I have no idea
how I got here. The world stops at the window
while I take my little spoon and slowly swirl the cream around the lip
of the cup. Once, I had a brother
who used to sit and drink his coffee black, smoke
his cigarettes and be quiet for a moment
before his brain turned its armadas against him, wanting to burn down
his cities and villages, before grief
became his capital with its one loyal flag and his face,
perhaps only his beautiful left eye, shimmered on the surface of his Americano
like a dark star.


Dickman, Matthew. The Best American Poetry. New York: Scribner Poetry, 2011, pp 23 - 24.

29/07/12


  " Sonnet (Division) "


fuck! i have two loves too, i really do:
my one is blonde, my other's hair is black,
but neither either vice nor virtue lacks
and each complete to me is fair(e) and true.

i have not held them side to side, nor wished
as with less(er) love(s) to have them: back to back.
if evil choose a place to lay its wrack
it lie(s) with "i": that stenched and (w)retched dish

( i has not seen me as they must) of self,
and if me looks i can but lose. suggest me!
take me! then back to unalike give me:
to husband, wife, then back upon my shelf:

here (this) my wicked rest: i scribes this text.
"i" blithely rhymed: fuck! all... is aural sex.

  Davis, Olena Kalytiak. The Best American Poetry. New York: Scribner Poetry, 2011, p 20.
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28/07/12

Acerca de... ( XIV )


   À mercê das tempestades que tornam ainda mais inóspitos os espaços de areia e pedras que são os desertos, estes poemas fazem-se. As mãos traçam-nos, meticulosamente. As mãos sabem que tudo é evanescente, como as dunas, que apontam direcções, mas também podem ter um efeito alucinatório para os imprudentes; talvez por isso: "os homens vagueiam (...) com desespero no tosco emaranhado das dunas. " São mãos nómadas e errantes. Mãos que resgatam as palavras, os afectos, a natureza humana, do seu carácter transitório.
   Retomando a tradição dos grandes caminhantes como Bashô - atrevo-me a afirmar que o Victor Oliveira Mateus é um leitor atento da Poesia e da Filosofia do Oriente, expressas em referências subtis como a flor de Lótus - o deserto torna-se o centro de todas as errâncias: da errância  dos nómadas e da errância que acompanha a busca espiritual. Angel Silesius desejava subir mais alto que Deus, no Deserto, para atingir a indiferenciação do princípio, mas o deserto é um signo de uma ambivalência incandescente na sua "fértil aridez", porque é o lugar da sede, do terrível e do sublime, das extensões infinitas onde nos perdemos e morremos, por isso o eu se resguarda: "O meu lugar é um minúsculo e límpido poço." O deserto é o espaço de ressonância para o grito do poeta que, embora seja o buscador ( o "aceitante") dos mistérios imperscrutáveis, vive ainda no caos infernal de um tempo iníquo - paradigmático dessa realidade é o poema 14. No entanto, não se pense que este escriba dos desertos (a conotação do deserto pluraliza-se continuamente) se superioriza em relação aos que cedem a toda a sorte de miragens - embora no poema 4 a "Senhora da morte eterna" encarne os fenómenos da máscara, ostentação e jogos mistificatórios rejeitados definitivamente pela natureza do poeta, o poema 8 é uma prece para que nunca o próprio sujeito seja um subvertor da ética: "Meu Deus, fazei com que os outros não me atraiçoem nunca e, sobretudo, que eu nunca os apunhale na sua dignidade! Dai-me a suprema lucidez do Viandante...". No poema 9, o sujeito da enunciação assinala o perigo que o abismo encerra; respira, de quase alívio, no poema 15, porque a sua voz, embora enfraquecida, "canta o outro lado do abismo"; apesar do desalento dos primeiros versos: "sei tão pouco de tudo/ tão pouco! Tantos anos gastos a pensar, para afinal descobrir a pouca importância das coisas", o eu  escreve, e cada linha do poema é um testemunho necessário para que a fertilidade aconteça, porque só a obscura transparência da palavra pode ficar como testemunho do vivido, como aprendizagem.
   Este é um livro de uma viagem iniciática, que tem por principal leit motiv o desejo erótico: o rosto do "tu" inscreve-se como uma nervura - a princípio indelével, depois mais funda, em todos os signos do desejo que afloram nas linhas do livro. O "azul desmaiado dos olhos", o corpo do outro, "essa figura sentenciosa de beduíno", as suas palavras, fazem parte do espaço - que nunca finda - do deserto. O deserto é o território do absoluto e da solidão interior - a comunhão erótica procura um mais além, "aquilo que o excede a mim entrega." A alteridade imprevisível do outro abre uma ferida no conhecimento do mesmo: uma ferida, ou uma brecha. Por essa alteridade, se acede a uma liberdade sem limites, a uma consciência mais profunda. O erotismo é uma via para aceder ao absoluto, e, como tal, também inflige provações em quem padece, tece as suas armadilhas: a princípio o olhar do tu parecia ser de escárnio, mas, aos poucos, se foi instituindo olhar de desejo, flecha apontada numa só direcção, certeira, invencível: "... e a minha fuga um pássaro degolado pelo teu corpo." (poema 11)
   No deserto, há fios invisíveis que se infiltram entre os grãos de areia e vão fendendo paulatinamente o território antigo. Fundam outro deserto. O amor é o órgão para se ver a Deus, escreve Simone Weil. O corpo é consagrado nestes poemas: "E é o teu corpo nu, exausto, branco como um templo, porque todos os corpos são um templo no solo consagrado que há." (poema 21). O rosto amado é o lugar do indizível segredo. Não há transubstanciação do eu no outro. Há comunhão, há a maravilha deste outro como eu que me ama na noite, parece ciciar-nos o poeta. Eis a primeira noite de Novalis: acolhedora e manancial de conhecimento; o corpo tem a nudez de uma pedra. O conhecimento lítico do deserto de Lucchesi. Nestes poemas, ardemos no centro do amor.
   Para Octavio Paz, o erotismo é uma metáfora do conhecimento e o corpo lido no poema (o esplendor do corpo) é um criptograma, um meio de decifração de sinais que preparam a descoberta do mundo. Cabe à palavra do poema preparar um outro sentido para o mundo. Cabe às mãos - acantonadas no deserto - serem o elemento que indica os caminhos do Erotismo e da Poesia, ainda que, como os místicos que sabem que a desvelação de um mistério nunca é completa, o sujeito hesite em atribuir um nome ao "êxtase do que pressinto": "misto de assombro e agonia, estranho dizer, talvez poesia."
   Eu bebi a água da minha sede na cintilação das areias desta escrita.

          Isabel Aguiar Barcelos in Mateus, Victor Oliveira. Pelo Deserto as Minhas Mãos. Carcavelos: Coisas de Ler Edições, 2004, pp 7 - 9.
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Acerca de... ( XIII )


                         " Il ritorno in Italia del poeta Victor Oliveira Mateus "

   Victor Oliveira Mateus, poeta portoghese di grande forza e intensità, ci regala la sua sesta raccolta, dal titolo Regresso (Editora Labirinto, Fafe, 2010). Regresso, e cioè "ritorno", é parola già di per sé carica di attese e di poesia. Presuppone un viaggio nella memoria, alla ricerca di un luogo, di una persona, di un rapporto, di un ricordo, di un'immagine, di un vissuto. Il luogo in cui si ritorna qui è Torino, città che il poeta ripercorre da solo, attento a ogni particolare, cogliendo ogni momento in un soliloquio illuminato dalla nostalgia e dal vuoto della figura amata. In realità, forse più che cercare l'amata, il poeta cerca sé stesso, certa colui che è rimasto intrappolato in un momento, in una fotografia, nei ricordi che non si cancellano e che impediscono di continuare l'esistenza. Nei versi di questa densa raccolta, di un lirismo riflessivo e filosofico, le poesie sono tappe essenziali di un viaggio interiore e paiono, più che un incontro, un doloroso e necessario commiato.
   Insieme all'io lirico, seguiamo il suo itinerario fra i luoghi del ricordo: Via Roma, Piazza San Carlo, Via Po, Piazza Vittorio Veneto e poi ancora il Palazzo Reale e altri monumenti e vialli della Torino che appassiona i visitatori di tutto il mondo. Ma non ci facciamo ingannare da quello che, solo in apparenza, è un giro turistico. Fra passanti e visitatori affrettati o chiassosi,  troviamo l'io intento a compiere una sorta di pellegrinaggio per una città che è stata, insieme, testimone e scenario di momenti che debbono essere rivissuti e ossessivamente sviscerati affinché si possa placare la sensazione di qualcosa che è rimasta incompluta:

(... ) E foi, mais ou menos
por essa altura, que eu quis voltar atrás. Voltar atrás
para encontrar a origem. Uma porta. Para começar
tudo de novo, mas de outro modo. Voltar atrás
para encontrar o princípio - e a mim através dele

(p. 18)

(...) E fu più o meno
da quel momento, che volli tornare indietro. Tornare
per trovare l'origine. Una porta. Per ricominciare
tutto di nuovo, ma in un altro modo. Tornare
per ritrovare l'inizio - e me stesso tramite esso

   Una malinconia accompagna i passi del poeta e un disincanto di chi se che il suo è un incontro a cui solo uno dei duo personaggi si presenterà. Non è un caso che egli affermi, nella poesia che apre la raccolta, che non voleva ritornare e che lo ha fatto solo per un'assoluta compunzione dell'anima:

À minha maneira tudo fiz para não voltar
aqui. Para não me expor à inútil corrosão
da memória, ao enganoso magma das
palavras. A meu modo sempre evitei estas
grades, estas árvores simetricamente

encaixotadas acenando-me ao fundo

(p. 11) 

A modo mio tutto ho fatto per non tornare
qui. Per non espormi all'inutile corrosione
della memoria, all'ingannevole magma delle
parole. A modo mio ho evitato sempre queste
grate, questi alberi simmetricamente

allineati che mi accennano in fondo

   La città è indaffarata, i passanti distratti mentre il poeta è sospeso, come fuori dal tempo (anche se non dallo spazio), alla ricerca delle stesse coordinate spazialo-temporali in cui si è compiuto un rapporto e un'esistenza: " Aqui, debruçado sobre o Pó,/ sorvendo-lhe as águas e os reflexos, digo-me finalmente/ ao que vim: procurar pegadas, retalhar acidentes..." ( Qui, affacciato sul Po/ assorbendogli le acque e i riflessi, mi dico finalmente/ perché sono venuto: cercare orme, riordinare i fatti... ) p. 14.
   In questo diario intenso i grandi temi dell'esistenza si mescolano a fatti e gesti quotidiani e la vita entra nei versi attraverso le voci della città, attraverso i dialoghi rubati che si intrecciano ai pensieri e al percorso in profondità fatto dall'autore. Tutto diventa materia di poesia, tutto viene catturato dallo sguardo attento di un io che analizza sé stesso e il mondo e che, nei momenti di più intensa nostalgia, sdrammatizza con ironia il suo stesso dolore.
   Con un eloquio chiaro e posato, con versi lunghi e regolari (quasi sempre più de dodici sillabe), egli procede al riconoscimento dei luoghi in cui è vissuto, sorpreso che nulla vi sia rimasto impresso, che la vita proceda e non lasci memoria di sé. Allora è necessario ricorrere alle fotofrafie, ricontrollare oggetti e immagini, ricercarsi in uno scatto che ha immobilizzato volti e movenze e strappato al nulla ciò che ormai vive solo nella memoria:

Na foto ela está sorridente. Ar inocente,
conseguido. Ele também, triunfante
e pose a condizer, embora presa de presa
mas sem o saber. Outros iguais nas mesas
vizinhas - esperam a hora para descer (...).
Nas foto lá estão os toldos branco-

sujo a cobrir as mesas, as cervejas, os sorrisos.
A um transeunte foi-lhe roubado o espanto,
fixado naquele pedaço de papel sem brilho.
Debruço-me para dentro da foto, mas não
me vejo. Contudo, tenho a certeza que estou

(p. 15)

Nella foto lei è sorridente. Aria innocente,
riuscita. Anche lui, trionfante
nella giusta posa, catturati uno dall'altro
mas senza saperlo. Altri identici nei tavoli
vicini - attendono l'ora di andarsene (...).
Nella foto si vedono i tendoni bianco-

sporco che coprono i tavoli, le birre, i sorrisi.
A un passante à stato rubato lo stupore,
fissato in quel pezzo di carta opaca.
Mi sporgo dentro la foto, ma non
mi vedo. Eppure sono certo che ci sono

   Ha ragione il critico e poeta brasiliano Paulo Franchetti quando afferma, nella postfazione del libro, che non si percepisce veramente un "tu" in questi versi, ma solo un "io" alla ricerca, in viaggio e in attesa. Il titolo di una delle più belle poesie del libro, " Desabitada presença " ( Disabitata presenza), nella sua ossimorica sintesi può ben riassumere il senso di questo ritorni ai luoghi disabitati da colui che si è venuto, invano, a cercare.
   Per questo, Regresso è una sorta di requiem, di canto dell'assenza. Le ultime poesie hanno, infatti, titoli che rimandano all'ambito religioso: " Vésperas, sem oração " (Vespri, senza preghiera), " Litania para um dia depois " (Litania per il giorno dopo). È il commiato che permette all'io lirico di ritornare al punto da cui era partito e di ricominciare l'esistenza che la parola e la poesia se non salvano, almeno guariscono, consolano e danno un senso al viaggio e alla vita.

         Vera Lúcia de Oliveira in " Fili D' Aquilone ", Numero 22, aprile/giugno 2011.
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Acerca de... ( XII )


(Texto acerca do poema " Num café da Via Monginevro " e do livro " Regresso" )

" Pois é, coloco-me na condição do rapaz do café observando/ lendo o poeta Victor Oliveira Mateus, com o mesmo assombro e admiração. Sua poesia, com cenas que fluem e situações que se diluem, que derivam observações desviantes, nos levam a um estado de contemplação metafísica. Viajar com ele, sem direito a regresso. "

   António Miranda in Site "Poesia de Ibero-América ".
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26/07/12

" Também parecida contigo a noite,/ O que sobra de haver constelação, "


" Praia, de madrugada "

                                                                      Aos meus filhos e sobrinhos

Praia, de madrugada, coando luz
E Madragoa, barras de amor,
A Voz de América, sacos de haxixe,
No giro nocturno da baía...

Híbridas mulheres, carros de luxo,
Cães vadios, pedintes, noctívagos,
A brisa bole, em jeito de pipa, és tu,
A capa avulsa de um Paris Match...

Também parecida contigo a noite,
O que sobra de haver constelação,
Para que a insónia se apazigúe...

Outra musa, nem por isso igual a ti,
A nua, de nudez assaz desvalida,
De como vai em lua, a tua máscara...

Elísio, Filinto. Das Frutas Serenadas. Praia ( Cabo Verde ): Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro,
 2007, p 75.
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" Pois nestas coisas do amor, o género/ É puro detalhe... "


" Soneto desviado "

Soletrava ela ou ele - não importa,
Pois nestas coisas do amor, o género
É puro detalhe -, na retina da solidão
Retirada do fino mel de mim.

E dizia, a cada momento, sua sentença
De ficar ou de partir e a viagem,
A mais dolorosa, diga-se, nesta nau
Onde são outros os azimutes de pertença.

Também outros, que não eu, caídos
À terra vermelha das coisas paradas,
Ajoelharão antes os deuses de esquina.

E saberão ( dele ou dela ) essa coisa louca,
Uma vontade de voo no improvável,
Que em mim lateja como um soneto...

Elísio, Filinto. Das Frutas Serenadas. Praia ( Cabo Verde ): Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro, 
2007, p 44.
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" Conta-me um pouco de haverem deuses, "

" Tâmaras "

Das janelas, olhávamos o abraço da baía
Os mastros entrados pelas enseadas,
O movimento dos corpos soluçantes
A exaustão das horas que se abraçam...

Olhávamos também, amor, o sol a pique
Que, das manhãs, dourava todas as frutas,
Era tua rua de infância, e estavas nua,
Molhada chuva e eu, ali, liquefeito...

Conta-me um pouco de haverem deuses,
Só um bocado desse paraíso de bocas
Fá-lo sem medo, assim como as loucas...

Toca-me, pelo fundo, amor, tão frágil
Quão poderosa, foste, num só momento,
E ter aquilo sido toda a eternidade...

Elísio, Filinto. Das Frutas Serenadas. Praia ( Cabo Verde): Instituto da Biblioteca Nacional e do Livro,
   2007, p 30.
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25/07/12

!


" Caminhais em direcção à solidão. Eu, não, eu tenho os livros. "

                                                             Marguerite Duras

serei breve: e é simples
o que tenho para dizer.

não tarda, os nós dos dedos
vão pingar do retrovisor,
e é comovente como arde
o lume sob a solidão.
eis-me aqui, sem fuga

possível, ansiosamente
antecipando a hora em
que não terei mais rosto,
daqueles que se acham
no espelho.

citas célebres filósofos,
mas não tens qualquer
vocação para a vida.
quando se esgota o dizer
abandonado pela mão em flor,

és avulso: e nem sequer
tinhas um plano para me
salvar, os lábios anódinos
deitados fora, reverberando
muito baixinho por entre as

frinchas sujas do cinema.
de súbito ilumina-se
a púrpura vez em que
me converti: dizes-me
que há talvez o agora da

eternidade nos teus olhos,
mas eu não acredito e, por isso,
vasculho em versos alheios
um fio de luz; vou, vem comigo,
aprender como se trocam as estações

talvez a morte, de ardor em ardor,
te possa tocar de mansinho,
ao mesmo tempo que nos ombros
cintila uma borboleta sem esplendor
despede-te do sol e promete-te

que, no fim de contas, virá
um segredo por enumerar

e é tudo

   Soeiro, Ricardo Gil. Espera Vigilante. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2011, pp 58 - 59.


23/07/12

" deitaste tudo fora como fazem/ as mulheres em plena queda. "

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  " Sinais "

Eu pressenti que estavas a faltar-me
quando te perguntei se gostarias
de regressar no Inverno
aos temporais da costa,
de rires como rias
por sob o guarda-chuva destroçado.
Falaste de humidade,
inventaste miasmas
trazidos pelo mar,
deitaste tudo fora como fazem
as mulheres em plena queda.
E eu então, que era louco por tormentas,
esqueci-as, não fosses tu fugir.
Mas de que valeu?
Hoje encerro em palavras
a chuva, a ventania, a confusão do mar
numa folha de carta
com velhas cercaduras negras
que um dia trouxe
de casa de meus pais.

  Dempster, Nuno. Elegias de Cronos. Lisboa: Ed. Artefacto, 2012, p 62.
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"(...) em seus círculos de caça,/ para depois deixar tudo e partir,/(...) rumo a nenhum lado, "

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  " O Tempo Imediato "

Este céu onde as nuvens vão passando
e são veleiros brancos que suscitam
a antiga paz nas ondas, rumo a praias
distantes de qualquer sinal urbano,
e a lembrança de amar a Terra a dois,
os rebanhos, as árvores na crista
da serra ao vento, as duas águias lá
no alto céu, em seus círculos de caça,
para depois deixar tudo e partir,
galgando a estrada, rumo a nenhum lado,
sem guardar a ilusão de que o futuro
seja algo mais que o tempo imediato,
e o tempo imediato é quanto resta,
dia por dia, um dia a seguir a outro,
o carro pela noite durante horas,
o volante, as mudanças, os pedais
que fazem uma vida limitada
consumir-se, incolor, dura e a gasóleo.

  Dempster, Nuno. Elegias de Cronos. Lisboa: Ed. Artefacto, 2012, p 16.
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22/07/12

"(...) abominável/ objecto de vaidades múltiplas, imagem negra... "

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  " Excerto da secção I do poema A Viagem "
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...    ...   ...

Será este, o meu porto seguro?... Teria que encontrar-te
de novo, oh musa perdida, tu que comigo ao agro
foste escutar, a fresca erva crescendo...

A verde planície, sua ausência de espelhos, abominável
objecto de vaidades múltiplas, imagem negra, no pós
Outono da vida, rugas no coração... homens na
plástica, olhos rasgados orbitando sem brilho, e a
morte que nunca avisa, quando vem jantar...

Bandeiras, estandartes, suásticas, soldados, guerreiros
marchando, gritam ao tirano: ( Ave César!...
morituri te salutant ) ... bestas teleguiados, colocando
ovos no útero do Mundo, selvas ardendo, mães sem
sorriso, águias apunhaladas no voo do poeta...

Mas o poeta, igual ao pássaro, que renasce das cinzas,
inventa palavras, iluminam-se livros, estes templos
sagrados de divina sabedoria...

Mãos ardendo, fogo na aurora, nasce a palavra,
longos dias, eternas noites... sussurrando, pergunto:
São verdes, os teus olhos, ou, são azuis, como a fina
linha do mar, que vem dar à costa, dos meus sonhos?...

...   ...   ...

  Figueira, Tchalé. A Viagem ( Poemas ). Mindelo, Cabo Verde: Ed. do autor, 2012, pp 12 - 13.
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A natureza, as máscaras e o possível.


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O premiadíssimo Steven Soderbergh realizou em 1989 um "dos meus filmes": "Sexo, mentiras e vídeo" com Andie MacDowell e James Spader. A película era uma atenta e minuciosa reflexão sobre a natureza humana e a sexualidade com a sua dupla vertente de autenticidade e jogo. Em 1991 depois de ver o seu "Kafka", que detestei, cortei relações com a obra deste autor, sobretudo para manter a imagem que tinha do filme de 89,  
mas " Magic Mike" trouxe-me de novo ao Soderbergh inicial: Mike (Channing Tatum) stripper num clube feminino conhece Kid ( Alex Pettyfer) e acaba por o introduzir nos shows... mas eis que a (verdadeira) natureza humana nem sempre está à superfície: Mike, que nos parecia perverso e astuto, apenas quer conseguir dinheiro para vir a montar a sua empresa, enquanto que o antes ingénuo Kid, precisava apenas de um ligeiro abanão para que a sua verdadeira natureza viesse à tona, isto é, um deslumbrado com o dinheiro fácil e capaz de vender a mãe se lucrar algo com isso... Por entre corpos, sexo, pastilhas e álcool, tudo se complica com o aparecimento de Brook ( Cody Horn ) a lúcida e segura irmã de Kid. O mundo onde navega Mike e Kid cruza-se com o de Brook, mas ela nunca deixa que eles se misturem... De que modo revelarão estas personagens quem, e como, são?
 Esta ideia de que a natureza humana precisa apenas de um ligeiro sopro para que se mostre tal como é surge em várias cenas do filme, como por exemplo a da psicóloga (bissexual) amiga de Mike que com ele anda pelas noites, bares e discotecas, muitas vezes envolvendo-se ambos com a mesma mulher, contudo, mal a sua situação profissional fica resolvida, coisa que ela vê como subida de estatuto, logo se distancia do seu passado, ou seja, logo mostra a sua natureza, "indicando" a Mike o fosso que os separa, todavia - e porque a vida tem sempre a sua ironia - é essa ruptura com o ex-stripper que acaba por trazer a este algo bem mais importante do que "os monstros" da véspera.
Excelente direção de atores. Excelentes desempenhos (apesar de não ter gostado de Matthew McConaughey). Fecho bem estruturado e algo salvífico como em "Sexo, mentiras e vídeo ". Narrativa bem delineada e com encaixes muito bem feitos.
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11/07/12

"(...) as produções automáticas depressivas são reforçadas pelo próprio... "


A psicoterapia sistemática inicial no doente depressivo agudo desenvolve-se com a técnica da psicoterapia cognitivo-comportamental, quase a única forma de psicoterapia sistemática possível. Trata-se, antes de tudo, de corrigir as cognições erradas (ideias, informações e atitudes) do doente sobre si mesmo. A depressão auto-alimenta-se enquanto for fonte de pensamentos e atitudes negativas em torno do eu, do vínculo com o mundo exterior e daquilo que o futuro lhe possa trazer. Assim abundam afirmações deste cariz: "eu sou um inútil", "não conto com ninguém para ajudar-me", " a doença é incurável e o sofrimento não terá fim". O doente automortifica-se pelas três vias seguintes: escassa satisfação de si mesmo, subestimação dos reforços positivos recebidos do exterior e convicção de um futuro fechado.
  Para Greden (2003), a terapia cognitiva assenta na terapia da aprendizagem, e é, certamente, um tipo de aprendizagem, na qual há que corrigir os pensamentos distorcidos para normalizar os comportamentos associados à depressão.
  A tarefa psicoterapêutica não é fácil nem simples perante este panorama, porque as produções automáticas depressivas são reforçadas pelo próprio doente com raciocínios errados sobretudo na forma de generalizações abusivas, absolutizações ilógicas (vê tudo como definitivo), ampliações ou minimizações pouco razoáveis (avaliações por excesso ou por defeito), pensamento dicotómico ou maniqueísta (divisão das experiências em duas categorias opostas: bom ou mau, falso ou verdadeiro, etc.); personalizações excessivas (estabelecimento de uma relação entre o acontecimento externo negativo e a própria pessoa sem uma base suficiente para isso).
  A acção da psicoterapia cognitiva trata de substituir os pensamentos negros sobre o "eu", o ambiente e o futuro por imagens agradáveis e ao mesmo tempo modificar os raciocínios distorcidos. Por isso, o psicoterapeuta cognitivista empenha-se em contribuir para oferecer ao paciente uma informação realista e bem elaborada, preparando-o para não aceitar os pensamentos automáticos (...)
   O próprio fundador da terapia cognitiva Aaron Beck (2005), conclui agora, 30 anos depois da sua criação, e apoiando-se na própria experiência e na meta-análise do método, que a terapia cognitivo-comportamental é eficaz nos doentes depressivos para reduzir os sintomas e evitar as recaídas.
  À medida que o doente vai recuperando dos seus sintomas, sobretudo quando a acção do medicamento se torna mais activa (...) a psicoterapia adquire um maior êxito (...) na medida em que o terapeuta se encontra com um doente mais propenso a colaborar e a estabelecer conexões com o que o rodeia.

      Alonzo-Fernández, Francisco. As quatro dimensões do doente depressivo. Lisboa: Gradiva, 2010, pp  213 - 216.

Nota - A psicoterapia interliga-se com a farmacoterapia, que nesta obra pode ser consultada nas páginas 185 - 209.

09/07/12

" Por aqui se deduz que o estado neuroquímico é influenciado pelas próprias decisões da pessoa... "


  A síndrome depressiva está em princípio determinada pela interacção de factores genéticos e ambientais, mais ou menos isolados, mais ou menos formando uma constelação ou associação. Existe frequentemente um factor genético de vulnerabilidade, o que permite afirmar que em certo sentido todas as depressões são endógenas, embora, na sua maioria, sejam endógenas impuras. Esta observação tem o seu contraponto: as depressões endógenas estritas ou puras são muitas vezes mobilizadas ou precipitadas por estímulos stressantes.
No que se refere à identidade do facto etiológico ou causal fundamental, estabeleci - inspirando-me no sistema nosográfico do psiquiatra suiço Eugen Bleuler - a sectorização do círculo sindromático depressivo nestas quatro unidades nosológicas ou categorias de doença: a depressão endógena, a depressão situativa, a depressão psicógena e a depressão somatógena. Cada uma delas define-se em função da sua causa fundamental (Depressão endógena ou genética/ hereditariedade; depressão  psicógena ou neurótica/ conflito intrapsíquico; depressão situativa ou sociógena/ situação na vida; depressão somatógena/ transtorno corporal ). 
  É frequente a intervenção de uma causalidade mista, o que permite falar por exemplo de depressão endo-situativa e de modalidades análogas.
   Na origem de cada depressão, terá sempre de se contar com a possível intervenção dos quatro sistemas: o genoma, a situação de vida, o estado psíquico e o estado somático (...)
   A chave unitária da síndrome vital depressiva reside na patogenia da depressão. As quatro espécies de causas que distinguimos convergem na produção de um profundo desequilíbrio do substrato cerebral da vitalidade, que se encontra nos núcleos hipotalâmicos, em especial nos núcleos supraquiasmáticos do hipotálamo anterior, na proximidade da epífise (...)
  Trata-se de um mecanismo patogénico de dinâmica muito rica, que, uma vez iniciado por um distúrbio neuroquímico dos neurotransmissores ao nível hipotalâmico, se propaga em cascata como um distúrbio neuroendócrino múltiplo e um decréscimo da actividade do sitema neuroimunológico, e culmina num distúrbio neurofisiológico que altera a estrutura e a função de grupos de neurónios situados em pontos estratégicos do cérebro.
(...) o cérebro é um sistema químico dotado de ampla abertura. A conduta humana organiza-se dentro de uma espécie de laboratório químico cerebral de extraordinária complexidade, cuja regulação é partilhada pelos genes, as condições ambientais, as vivências e o funcionamento do organismo. Por aqui se deduz que o estado neuroquímico é influenciado pelas próprias decisões da pessoa, confirmando-se neste ponto de vista o nosso grande potencial de liberdade como um património específico do ser humano.

  Alonzo-Fernández, Francisco. As quatro dimensões do doente depressivo. Lisboa: Gradiva, 2010, pp 89 - 91.
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08/07/12

" Há falta de entendimento recíproco, como se estivessem - e estão - em mundos distintos. "


A sintonização com o outro alcança a sua figuração máxima na empatia (...), uma espécie de ressonância recíproca, verificando-se sob a forma de um intercâmbio de estímulos e respostas, ou seja, emissão e recepção de mensagens, canalizadas nas três espécies de linguagem humana: linguagem verbal, paraverbal e corporal.
  A redução da intercomunicação individual verbal, paraverbal e corporal, ou seja, mediante a palavra falada ou escrita, os sinais verbais concomitantes e os gestos corporais, estende-se, nos doentes depressivos assintónicos às funções de receptor e emissor, que protagonizam o processo circular definido como um intercâmbio de conteúdos significativos distribuídos em unidades ou mensagens. A comunicação é circular precisamente porque as duas partes alternam entre si nos papéis de emitir e receber. Pois bem, o núcleo da descomunicação depressiva está integrado pela redução simultânea do receber e emitir, do falar e escutar, do gesticular e observar.
(...) A assintonia pessoal conduz irremediavelmente ao bloqueio total ou parcial da intercomunicação humana. (...)O depressivo assintónico fala pouco, muitas vezes espontaneamente quase nada, responde com brevidade ou com monossílabos, e, ao mesmo tempo, tem muita dificuldade em escutar os outros. O diálogo torna-se impossível e tudo o mais que se consegue é uma espécie de "relação de surdos" (...) A linguagem paraverbal, um compêndio das manifestações concomitantes da linguagem falada, mostra-se aparatosamente afectada: o tom de voz mais débil do que suave, às vezes em forma de cochicho; a fluência do discurso, lento ou vacilante e salpicado por pausas de silêncio ou locuções repetidas (...)
A pobreza comunicacional do depressivo, carente da devida sintonia vital, conduz inexoravelmente a uma metacomunicação impregnada de equívocos de ambas as partes, sob a forma de significados enganosos, contraditórios ou simplesmente errados. Há falta de entendimento recíproco, como se estivessem - e estão - em mundos distintos.
(...) A distorção comunicacional induzida pelo pessimismo que invade o mundo depressivo é um dos exemplos mais demonstrativos de um fenómeno muito frequente na sociedade conhecido como catatimia.
  A tendência para se alhear dos amigos e dos familiares, inclusivamente das pessoas mais íntimas, deve-se não só ao propósito de evitar o diálogo impossível, mas também à tentativa de procurar o isolamento espacial. É que a desconexão ambiental do depressivo refere-se também à espacialidade.(...) Deixa-se levar assim por um comportamento global de retraimento social e de refúgio espacial, como se fosse um inimigo mortal do "ruído mundano" (...) O doente depressivo despojado da capacidade de sintonia ambiental ou atmosférica e interpessoal sente-se como um estranho, profundamente isolado e só, possuído por um sentimento de solidão radical e profunda, todavia desejado, como se fosse um refúgio sem entrada nem saída possível. "O depressivo diz Eismann (1984), "sente-se mais só e sofre mais com a sua solidão do que as outras pessoas." Os outros não podem entrar no seu mundo porque não o compreendem e ele renuncia a sair de si mesmo para não se ver acometido por novos sofrimentos.

   Alonso-Fernández, Francisco. As Quatro Dimensões do Doente Depressivo. Lisboa: Gradiva, 2010, pp 48 - 52.
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05/07/12

"E é precisamente o reconhecimento desta idealização deformante que abre o caminho à (...)libertação desse mundo de fantasmas "


O objecto do depressivo é ainda, e em regra, uma personagem altamente masoquista (tenhamos bem presente as características habituais das mães dos depressivos) e exibindo o seu estatuto e condição de vítima, de tal forma que a separação do sujeito, se comporta o seu salvamento, comporta também a recusa de se solidarizar com o trágico destino do objecto, abandonando-o de certo modo à sua sorte. Ora, tal conduta não é fácil de tomar; exige segurança e agressividade e desperta culpa. Por isso a separação tão difícil é; mas se se atinge é o sentimento de triunfo do sujeito que conseguiu libertar-se de uma relação mortificante e destruidora; e assim se compreende que a rotura se acompanhe, muitas vezes, de uma certa elação hipomaníaca. No decurso do trabalho analítico este processo de separação-individuação, acompanhado do luto do objecto primário, passa pela análise interpretativa da ligação masoquista do analisando, libertando a pulsão agressiva inflectida sobre o Self para actividades construtivas e sublimadas.
Outro traço característico do objecto do depressivo é a sua ambivalência: uma atitude de protecção e afecto contrastando com sentimentos de saturação relacional e rejeição, impondo ao investimento do sujeito um esgotante estado de tensão e retenção - "anda à trela" do objecto. (...) e só tendo em atenção estes dois tipos do processo transferencial - o movimento regrediente e repetitivo ( a repetição transferencial, que nos permite reconstruir o passado vivido) e o movimento progrediente e resolutivo (que costumamos designar por retomada da evolução suspensa, e no qual assenta precisamente a mudança de tipo e estilo de relação objectal( - podemos levar a bom termo a análise de um depressivo.
(...) Assim, o mundo interno do indivíduo está ocupado por objectos na realidade perdidos, mas que preenchem o espaço da ilusão. O indivíduo vive com esses introjectos, obviamente insatisfatórios; e bloqueantes da deflexão da líbido sobre o mundo exterior, os objectos da presença e da actualidade - do quotidiano - como bloqueantes ainda da expansão da personalidade. O caminho da cura passa então pela desidealização desses objectos internos.
Há uma certa tendência a valorizar ou fazer jogar aqui a pulsão agressiva: expulsar tais objectos internos pelo desbloquear da agressividade a eles ligada mas inflectida sobre o próprio e/ou transferida para objectos da circunstância. (...) frequentemente trata-se sobretudo do efeito retentivo de uma relação de idealização - relação densa, ocupante, expansiva e inflacionária, que está bem longe de corresponder às características reais  dos objectos introjectados. E é precisamente o reconhecimento desta idealização deformante que abre o caminho à necessária ruptura dos laços afectivos enquistados, com a libertação desse mundo de fantasmas (conscientes e inconscientes) do passado.

  Matos, António Coimbra de. A Depressão. Lisboa; Climepsi Editores, 2007, pp 54 - 55.
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04/07/12

" A Disposição Depressiva "


O que encontramos na condição ou disposição depressiva é a desistência dos interesses próprios (egoístas) em favor da manutenção do amor do objecto.
O que não é o mesmo - entenda-se bem - que o altruísmo ou o amor desinteressado do objecto. O depressivo ama para ser amado e admirado, pois que é pobre em sentimentos de auto-estima e autovalorização (a não ser quando intervém a defesa maníaca e emerge uma auto-imagem de grandiosidade). No verdadeiro altruísmo o indivíduo ama os outros porque tem capacidade de amar; na condição depressiva, por dependência afectiva - porque precisa do amor do outro.
Existem também certas diferenças com o masoquismo, embora este seja uma situação próxima e frequentemente entrelaçada com a depressão. No masoquismo o indivíduo vai mais longe: sofre (na relação com o objecto) para ter jus a ser amado, captar e manter o amor (do objecto) e ser admirado pela sua capacidade de sacrifício e sofrimento, ao mesmo tempo que sabe (em regra inconscientemente) estar a satisfazer a necessidade sádica do objecto, e com isso segurá-lo; mas, enquanto no masoquismo a relação de complementaridade do indivíduo com o objecto se processa na base da satisfação do sadismo do outro, na depressividade faz-se na base da satisfação do narcisismo do objecto.
A depressão e a defesa maníaca (o Self grandioso, megalómano; a negação da melancolia) andam em regra associadas. E, assim, as personalidades depressivas (não propriamente as pessoas que estão deprimidas - que manifestam o sintoma de abatimento e tristeza -, mas sim os indivíduos que são depressivos  que têm tendência a deprimir-se) apreciam não só poder queixar-se, quando encontram ressonância no ouvinte ou ouvintes (...) como também poder exibir algumas facetas da sua grandiosidade, que o interlocutor admire e aclame (o que tempera ou alivia o seu afecto depressivo). Mas esta última atitude - exibicionista (e de passividade do Eu) - em nada modifica a estrutura depressiva; apenas aligeira o peso do sentimento de não realização.
Na sua conduta diária, estes indivíduos repetem a relação, primária de objecto - em que foram amados na desgraça (no desamparo, na indefesa e na doença), por pena ou piedade, e admirados nas qualidades que interessavam ao objecto; e não, propriamente, aceites nas realizações autónomas e que lhes davam prazer a eles mesmos. Isto é: organizaram uma relação de objecto (a qual define a estrutura depressiva) na esteira de não terem sido considerados como sujeitos de um autêntico ser, com uma verdadeira identidade: mas sim objectos de desejos (...) dos seus próprios objectos: o paradigma é a mãe que investe narcisicamente o filho.
A saída desta condição depressiva faz-se - no curso da análise - pela luta contra o introjecto (objecto interno) externalizado no analista. Objecto-analista que, não destruído pela agressividade do analisando, será reintrojectado como objecto seguro, sólido e efectiva e efectivamente bom: e, precisamente por isso, tolerante, aberto e estimulante: que aprecia e mesmo solicita o desenvolvimento e realização livres e específicos do próprio. E com esta mudança se salda a cura analítica do depressivo: pela autonomia, e não pela cópia de mais um modelo.
(...) Por aqui vemos, também, que o tratamento analítico do depressivo passa pela transposição da passividade para a actividade; o que comporta certos riscos - quase inevitáveis - de passagem ao acto em transferência lateral. E o psicanalista que aceita ocupar-se de um doente narcísico terá de saber e poder suportar que se expõe, ou irá sofrer, certos incómodos relacionados com as reacções da entourage do analisando a vicissitudes do seu comportamento, nem sempre agradáveis (...).
O sentimento de falha e o medo de falhar, o sentimento de incapacidade, é um dos mais característicos nas pessoas depressivas; sentimento, não só ligado com o defeito do Eu, como também com a exigência do Ideal do Eu; e sentimento que se agrava em condições de existência excessivamente competitivas. Aqui se aponta, então, para as causas originais e de manutenção da disposição depressiva - a depressão sendo, como Edward Bibring o afirmou em 1953, o efeito da paralisia do Eu " porque se descobre incapaz de fazer face ao perigo", enquanto a ansiedade ou angústia é um sinal que mobiliza o Eu para o combate ou fuga.

  Matos, António Coimbra de. A Depressão. Lisboa: Climepsi Editores, 2007, pp 41 - 43.
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03/07/12

" estão mas não aparecem/ e podem levar anos nisso "


Duas aranhas esperam a mosca
com radiadores ventiladores rosa-chá
passagem ao estado de amora
alguns coupons
e várias teses de combate moderno

A mosca
passa
ou não passa
é um pouco como todas as coisas
estão mas não aparecem
e podem levar anos nisso

Mas duas aranhas esperam a mosca
com serviço de Turismo Dlão
lume aceso
página de sentença judiciária

Ao fundo
o galo enerva-se e quebra a mobília
numa grande convivência francesa
co'a mosca que foge espavorida no vento

Agora à luz das baratas e dos apetrechos para campo
duas aranhas esperam a aranha
e esta é que não escapa
às honras amarelas
à ligeira tremura de ter vindo
pois nenhuma aranha escapou jamais às aranhas
nenhuma não sendo mosca fugiu
ao que mandam os deuses

   Cesariny, Mário. Manual de Prestidigitação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, pp 93 - 94.
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" De um rapaz louro que finda/(na alameda) uma novela perturbada "


 " manhã fresca "

Manhã fresca, reclinada
pela primavera crescente.
O mais pequenino nada
está como se fora gente

De um rapaz louro que finda
(na alameda) uma novela perturbada
uma mulher ainda linda
esperou mas não foi olhada

E no folhagem também
certo desencontro corre:
a primavera que vem
na trovoada que morre

   Cesariny, Mário. Manual de Prestidigitação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p 71.
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02/07/12

" ela/ que parte/ vira/ para o que abandona/ um olhar de brancura "


suave
a vela abre
e principia
o dia

ela
que pelo azul
que corta
considera e chama
outras velas irmãs para o claro rio
e enquanto
o cais
é um enorme navio
que se nega
e no entanto cumpre
a mais estranha viagem

ela
que parte
vira
para o que abandona
um olhar de brancura
que é toda a matemática
singela
da manhã que a inspira

  Cesariny, Mário. Manual de Prestidigitação. Lisboa: Assírio & Alvim, 2005, p 47.
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01/07/12



       " A Sua Origem "



O cumprimento do seu prazer à margem da lei
teve lugar. Levantaram-se do colchão
e sem falarem vestem-se apressados.
Saem da casa separadamente, às escondidas; e enquanto
caminham algo preocupados pela rua, parece
que suspeitam de que neles qualquer coisa revela
em que género de leito caíram há pouco.

Mas como ganhou a vida do artífice.
Amanhã, depois de amanhã, ou com o tempo serão dados
à escrita os fortes versos que tiveram aqui a sua origem.

  Kavafis, Konstandinos. Os Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2005, p 273 ( Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis).
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                " À Espera dos Bárbaros "



- Que esperamos na ágora congregados?

    Os bárbaros hão-de chegar hoje.

- Porquê tanta inactividade no Senado?
  Porque estão lá os Senadores e não legislam?

    Porque os bárbaros chegarão hoje.
    Que leis irão fazer já os Senadores?
    Os bárbaros quando vierem legislarão.

- Porque se levantou tão cedo o nosso imperador,
  e está sentado à maior porta da cidade
  no seu trono, solene, de coroa?

    Porque os bárbaros chegarão hoje.
    E o imperador espera para receber
    o seu chefe. Até preparou
    para lhe dar um pergaminho. Aí
    escreveu-lhe muitos títulos e nomes.

- Porque os nossos dois cônsules e os pretores
  saíram hoje com as suas togas vermelhas, as bordadas;
  porque levaram pulseiras com tantas ametistas,
  e anéis com esmeraldas esplêndidas, brilhantes;
  porque terão pegado hoje em báculos preciosos
  com pratas e adornos de ouro extraordinariamente cinzelados?

    Porque os bárbaros chegarão hoje;
    e tais coisas deslumbram os bárbaros.

- E porque não vêm os valiosos oradores como sempre
   para fazerem os seus discursos, dizerem das suas coisas?

    Porque os bárbaros chegarão hoje;
    e eles aborrecem-se com eloquências e orações políticas.

- Porque terá começado de repente este desassossego
  e confusão. (Como se tornaram sérios os rostos.)
  Porque se esvaziam rapidamente as ruas e as praças,
  e todos regressam às suas casas muito pensativos?

   Porque anoiteceu e os bárbaros não vieram.
   E chegaram alguns das fronteiras,
   e disseram que já não há bárbaros.

E agora que vai ser de nós sem bárbaros.
Esta gente era alguma solução.

  Kavafis, Konstandinos. Os Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2005, pp 221 - 223 ( Tradução de Joaquim Manuel Magalhães e Nikos Pratsinis).
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