29/11/13

 

       "  Queixume  "


eu era o aliado do orvalho,
companheiro da generosidade,
amigo das gentes e dos espíritos.

foi minha mão direita generosa
na hora da dádiva
e letal açoite no dia do combate.
a esquerda segurava as rédeas dos corcéis
para me arrojar no meio das lanças.

hoje sou cativo,
refém da pobreza,
presa da doença,
frágil pássaro de asas rotas.
já não posso acudir aos que me gritam,
suplicando dádivas,
nem aos mendigos que me pedem pão,
conheceste-me alegre? só ficou a tristeza
das penas, desterrando a alegria.

este aspecto que ora ofende a vista
já foi deleite dos olhares argutos.


   Al-Mu'Tamid in "Al-Mu'Tamid, poeta do destino ". Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p 143.
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Nota- Poema dedicado ao filho al-Rashid e escrito aquando do desterro em Mequinez, antes de ser enviado para os calabouços de Aghmât.
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      "   'Itimad   "


Invisível a meus olhos,
     trago-te sempre no coração
Te envio um adeus feito paixão
     e lágrimas de pena com insónia.
Inventaste como possuir-me
     e eu, o indomável submisso vou ficando!
Meu desejo é estar contigo sempre.
     oxalá se realize tal vontade!
Assegura-me que o juramento que nos une
     nunca a distância o fará quebrar.
Doce é o nome que é o teu
     e que deixo escrito no poema: 'Itimad.


  Al-Mu'Tamid in "Al-Mu´Tamid, poeta do destino" de Adalberto Alves. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p 101.
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Nota - Acróstico dedicado pelo rei de Sevilha à sua esposa 'Itimad, cujo nome é, portanto, formado com a letra inicial da cada verso. De todas as esposas, amantes e concubinas 'Itimad foi aquela que o rei-poeta designou como a sua rainha e que depois viria a acompanhá-lo no desterro em Aghmât.
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28/11/13


O poeta português NUNO JÚDICE recebeu ontem, em Madrid, o PRÉMIO RAINHA SOFIA DE POESIA IBERO-AMERICANA DE 2013.
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27/11/13


  " Regresso "


foste-te, e foi contigo
o sono dos meus olhos,
regressaste, e assim mo devolveste.


quem trouxe a boa nova
pediu-me alvíssaras:
o meu coração foi o que te dei
pedindo desculpa do pouco que valia.


  Al-Mu'Tamid in  " Al-Mu'Tamid, poeta do destino" de Adalberto Alves. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p 88.
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Nota - epístola em verso dedicada pelo rei da Taifa de Sevilha ao poeta e amigo Ibn'Ammâr. Sobre este relacionamento ler: esta obra de Adalberto Alves, o romance de Ana Cristina Silva já aqui publicitado e a obra "Ibn'Ammâr, o drama de um poeta" da autoria de Adalberto Alves e Hamdane Hadjadji.
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26/11/13



                 " By disposition of angels "


Messengers much like ourselves? Explain it.
Steadfastness the darkness makes explicit?
Something heard most clearly when not near it?
        Above particularities,
these unparticularities praise cannot violate.
    One has seen, in such steadiness never deflected,
    how by darkness a star is perfected.


Star that does not ask me if I see it?
Fir that would not wish me to uproot it?
Speech that does not ask me if I hear it?
         Mysteries expound mysteries.
Steadier than steady; star dazzling me, live and elate,
    no need to say, how like some we have known; too like her,
    too like him, and a-quiver forever.


   Moore, Marianne. Poesía Reunida ( 1915 - 1951 ). Madrid: Hiperión, 1996, p 314.
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17/11/13



   " Light is speech "


One can say more of sunlight
    than of speech; but speech
    and light, each
aiding each - when French -
have not disgraced that still
unextirpated adjective.
Yes, light is speech. Free frank
impartial sunlight, moonlight,
starlight, lighthouse light,
    are language. The Creach'h
d'Ouessant light -
house on its defenseless dot of
rock, is the descendant of Voltaire

whose flaming justice reached
    a man already harmed;
    of unarmed
Montaigne whose balance,
maintained despite the bandit's
hardness, lit remorse's saving
spark; of Émile Littré,
philology's determined,
ardent eight-volume
    Hippocrates-charmed
editor: A
man of fire, a scientist of
freedoms, was firm Maximilien

Paul Émile Littré. England
    guarded by the sea,
    we, with re-enforced Bartholdi's
Liberty holding up her
torch beside the port, hear France
demand, "Tell me the truth,
especially when it is
    unpleasant. "And we
cannot but reply,
"The word France means
enfranchisemente; means one who can
'animate whoever thinks of her.' "


   Moore, Marianne. Poesía Reunida ( 1915-1951 ). Madrid: Hiperión, 1996, pp 222 - 224.
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15/11/13



             " To a prize bird "


You suit me well, for you can make me laugh
nor are you blinded by the chaff
    That every wind sends spinning from the rick.


You know to think, and what you think you speak
with much of Samson's pride and bleak
    finality, and none dare bid you stop.


Pride sits you well, so strut, colossal bird.
No barnyard makes you look absurd;
     you brazen claws are staunch against defeat.


    Moore, Marianne. Poesía Reunida ( 1915 - 1951 ). Madrid: Hiperión, 1996, p 86.
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13/11/13


(...)

confinando-se em cubos sobre cubos,
periferias cinza onde se reproduzem,
dormem e só às vezes falam.

Derretem-se de sono em lama orgânica,
olhares de cristal brilham de súbito,
apanha-os a enxurrada

à entrada do metro,

à saída do ferry,

no tráfego contínuo da avenida,
autocarros e táxis, mas não as
negras berlinas rápidas que fogem
dos novos proletários de olhar cúpido,

brilhante, nuns,
em outros conferindo
o desgaste de sonhos paranormais,
sobrolho negro que encara
rostos sem culpa,

aturdidos pelo alto muro
que ninguém saltará,
prisão de segurança máxima,

e ainda assim alguém exclama
diante do parlamento: "Olhem".
Exibe uma Kalashnikov,
triunfo oculto de África.

Apoia o queixo na boca do cano
e uma rajada leva-lhe
metade da cabeça
e o sangue de uma vida.

Junta-se cada vez mais gente,
um megafone incita-a,
a multidão ulula,
e depressa a polícia chega,
bate a esmo, destroça-a
e recolhe o cartaz em que se lê:

Não quero ser um cão selvagem
a comer das lixeiras.

Foi notícia um só dia nos jornais,
não sei se na TV a censuraram,
os vivos esqueceram-na
e não se falou mais de imolação

(...)

enquanto a piza e o hambúrger
atraem a passeios no shopping,
avenidas de luz e cor, a brisa
do ar condicionado com cheiro a maresia,

usufruto, riqueza estúpida,
o chamariz das montras proibidas,

assim este país antigo
igual a todos,
porém confuso e exausto.

Não sei de onde esta gente herdou
tamanha sujeição.


  Dempster, Nuno. Uma paisagem na web. Lisboa: &etc, 2013, pp 27 - 30.
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11/11/13



            " Achill "


Deito-me e imagino a primeira luz a raiar a baía,
Depois de mais uma noite de erosão, mais perto da tumba.
Então, levanto-me e olho pela janela, ao romper do dia,
Enquanto uma pardela rasa o ápice de uma onda prestes a rebentar,
E penso no meu filho, golfinho no Egeu,
Elfo por entre velas, brilhante como lâmina no vento sazonal,
E queria que ele aqui estivesse, onde os botes cruzam o mar,
Para apaziguar com a sua voz a solidão encarcerada dentro de mim.

Sento-me numa pedra, depois do almoço, e olho a claridade do sol
Por entre a neblina, pérola de uma lâmpada, sobriamente feroz;
Um aguaceiro escurece por momentos o xisto,
Depois afasta-se, dispersando manchas negras como abrunhos.
Croagh Patrick ergue-se, como Naxos, acima da água,
E penso na minha filha, no trabalho duro da sua arte.
Queria que ela aqui estivesse comigo, agora, entre tordo e tarambola,
Tomilho-bravo e estancadeira, para abrandar o peso do meu coração.

Os jovens sentam-se, a fumar, a rir, sobre a ponte, ao final da tarde,
Como pássaros pousados num fio de telefone, ou notas musicais numa pauta.
O silvo de uma flauta no salão. Chove de novo,
O fumo da turfa oscila, soa o vento sob a porta;
E eu deito-me, a imaginar as luzes que se ligam no porto
De Náousa, com seu casario branco, claramente definido na noite.
Queria que aqui estivesses, para me desviares do meu labor desconsolado,
Enquanto passo os olhos numas quantas páginas efémeras e apago a luz.


   Mahon, Derek. Estradas Secundárias, Doze Poetas Irlandeses. Lisboa: Artefacto, 2013, p 65 ( Selecção, Posfácio e Tradução de Hugo Pinto Santos)
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05/11/13



A poeta e jornalista Maria Augusta Silva e o romancista Pedro Foyos acabam de publicar um inédito meu no seu prestigiado site Casal das Letras . Bem-Hajam!
 
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04/11/13

 
 
 
  " Secção 2 da Parte I do Poema Gente Dois Reinos "
 
 
 
Depois foi o dia do jardim. Do templo
aberto por certeiro acaso, como dizem
todos os peritos do não destino: sábios
magnificentes do que não se sabe, nem
sequer uma única vez. Foi o dia em que
te abri o passado, para que alguém
- finalmente - o destruisse na imperiosa
urgência que um outro de mim pudesse ousar
e, destecendo finíssimo casulo, um caminho
- impoluto - me pusesse à frente sem álibis
nem veredas. Sim, era mais um dia entre o éter
e o fogo, esses dois reinos que sempre somos,
mesmo se por momentos não os vemos
ou tendenciosamente os iludimos.
 
 
Mas talvez tu não existas. Talvez tu não
sejas mais do que a projecção de mim
criança, neste mesmo templo, pela mão
de uma qualquer criada velha, assistindo,
cheio de tédio, a um rito que não entendia.
Talvez tu não estejas ali à minha frente,
a observar cuidadosamente a talha dourada,
as imagens, os retábulos. Ah, os retábulos!
Quem sabe se não és apenas uma das suas figuras
que da fixidez cromática decidiu sair para questionar
meu ser e ausência? Talvez tu não sejas tu,
e eu, de máquina em punho, e a fazer zoom
para melhor te captar, não seja mais
do que um esgar aberto sobre a vastidão do vazio.
 
 
Talvez nada de ti exista, nem tão-pouco
a tua voz agora a meio metro de mim: " sabes
que no altar-mor está o túmulo de uma filha
de D. Manuel? " Mas que poderia eu saber
quando, naquela altura, tão ao invés do corpo,
do fogo e dos sentidos? E tu a perscrutares
o templo, esse templo de que fomos
chamados a cuidar e que, em medalhados
corredores de fundo, ao fundo atiramos
sem remorso nem culpa. Tu num dos cantos
mais sombrios, entre o roxo e os espinhos,
com um Cristo a lembrar-me um poema
de Antonio Machado. E eu a fixar esse ígneo
instante, esse efémero que transbordava.
 
 
Eu a querer, mas a máquina a não obedecer:
nem filtros, nem zoons, nem luz... nada!
Apenas o negro no pequeno rectângulo
que te desolava: " Vês, perdi a aura,
não consegues a foto porque perdi a aura
e nem sequer ao pé do Cristo ela aparece "
Quis dizer-te que não, que tudo era eu:
esta inaptidão para com uma mera lente
te roubar a alma; sim, esta minha incapacidade
danificara a máquina, baralhara as perspectivas,
curtocircuitara direções... Tudo isso quis eu
dizer, mas desculpei-me com esse acaso
em que não creio. E, por fim, vi de novo
a minha infância no resplendor do templo.
 
 
Vi a pequena imagem bordada a azul
e ouro. Vi a simetria das naves, o púlpito,
os adamascados, o enorme retábulo central
para onde, aos poucos, ias recuando:
essa terrífica pintura barroca onde o excesso
de dor sempre me repugnara
no que transmitia de domesticação
e de recusa da alegria que todo o sagrado é.
Tu agora disperso na estridência das cores,
numa percepção impura, como todas;
numa relação fantasiada, como todas também.
E tudo isso para que eu atravessasse
a porta, tal como entrara: circunspecto,
perdido, só - ah, tão entranhadamente só!
 
 
   Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 19 - 21.
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                  "  O  Hospital  "


Há um ano, apaixonei-me pela funcionalidade de uma ala
De hospital: uma fila de compartimentos quadrados,
Betão, lavatórios - o desespero de qualquer amante de arte -,
Para não falar do modo como o fulano na cama ao lado ressonava.
Mas nada o amor interdita,
O comum, o banal, podem o calor dela conhecer.
O corredor conduzia a uma escadaria e, por baixo,
Ficava a imensa aventura de um pátio com gravilha.


É isto que o amor faz às coisas: a Ponte de Rialto,
O portão principal que o peso de uma carrinha amolgou,
O assento nas traseiras de uma cabana que era um foco de luz.
Nomear estas coisas é o acto de amor e a sua promessa;
Já que nos cumpre registar o mistério do amor sem desconversar,
Resgatar do tempo o passional transitório.


 Kavanagh, Patrick. Estradas Secundárias, Doze Poetas Irlandeses. Lisboa: Artefacto, 2013, p 19 ( Selecção, Posfácio e Tradução de Hugo Pinto Santos).
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03/11/13



                                XV


[ O3.00h, 3 garrafas de vinho e exaustão ] 
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B.I.:) Sou de chorar: lugares-comuns em filmes
irrelevantes; actos de heroísmo vendáveis em
múltiplos; sofrimentos com rosto; inteligências ou
sensibilidades incompreendidas; solidões;
abandonos (a mesma coisa - uma solidão, mesmo
empenhada, é sempre um abandono, muitos);
memórias irrepetíveis e os seus ecos (The way we
were, still crazy after all these years, formulações
sintéticas em cançonetas); o sexo como
entrega/ abandono/ achamento/ epifania - as
melhores lágrimas, as mais confusas, inexplicáveis,
totais. Sermos livres dá vergonha por sermos
presos. Na mesma medida em que sermos presos
dá vergonha por sermos livres. As mulheres têm
vergonha de ser homens. Os homens têm vergonha
de ser mulheres. Todos temos vergonha de sermos
pessoas. Humanos. Só. Completamente. E, lá no
fundo, digamo-nos crentes ou ateus ou tudo o que
há no meio, sabemos quem pôs em nós essa
vergonha - o sacana que não conseguimos deixar
de amar mais do que a nós mesmos. Deus. Um
nome que é toda (um)a tesão. E que, para mim, tem
o teu rosto, tuas mãos, teus pés, teus joelhos, tua
nuca, teu cuspo, tua merda, o teu olhar perdido no
horizonte, uma melodia que se apoderou dos meus
ouvidos e do meu cérebro como se vinda
ininterruptamente dos teus lábios, que me
perseguem como um cão misterioso.

Foda-se - desculpem-me - mas é a isto que se
chama Amor!


   Martins, Miguel. Cãibra. Amadora: Ediresistência, 2012, pp 31 - 32.
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                                           VII


Assim: namorar-te cheira a relva acabada de cortar
( dirias: "Foleiro. Vou ali atrás cortar os pulsos", e eu
saberia que essa possibilidade não é só pirotecnia).
Assim: ando, na carteira, com uma pequena
fotografia de uma mão e o advérbio de modo
intensamente, colagem por colar que recortaste de
um pacote de açúcar, entre desassossego e
entretém. Assim, também: quero-te tanto que te
quero como és, só tua, do mundo, comigo só nas
margens do papel, e isso parece-me tanto, tudo, um
milagre que tentarei merecer. Ainda: nunca te
magoar, não deixar que te magoem, tentar evitar
que te magoes. Tenho um metro e noventa, cento e
dez quilos, quase uma parede. Frágil (basta uma
pequena sonda para se perceber). Ainda assim,
parede. Se tiveres de investir contra o mundo, não
te contenhas - embate em mim. Marca-me. Como
me marcas de ternura.


   Martins, Miguel. Cãibra. Amadora: Ediresistência Lda., 2012, p 17.
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01/11/13




Os Prémios de Poesia atribuídos este ano pelo PEN Club foram para Hélia Correia e para Manuel de Freitas. Este Prémio, ex-aequo, visa respetivamente os livros A Terceira Miséria e Cólofon. O Júri era constituído por Maria João Cantinho, Manuel Gusmão e Teresa Martins Marques. Excelente escolha esta!!!
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