26/09/08


Nunca soube lançar o pião
como os rapazes no terreiro,
entre os contentores; aprendizes
de ladrões, de proxenetas,

arrumadores. Nunca soube
lançar o pião. Nem puxar-lhe
o cordel entre os dedos
ou içá-lo, rodopiante, na palma

da mão, acima do solo
conspurcado e mudo. Lancei
a minha vida, os meus
anseios. E foi tudo.


Victor Oliveira Mateus In "A Irresistível Voz de Ionatos", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 20 (Posfácio de Cláudio Neves e texto da contracapa de Olga Savary).

Quando foi o tempo certo que o não vi?
E se o não vi, como poderia ter sido certo;
concordância de sinais nos ondulantes
trilhos que somos? Ou até mesmo tempo?
Como poderia ter sido tempo, essa Duração
do Todo nos fugazes acenos com que nos

vestimos e nas noites de mar revolto -
julgando ser o que não somos - dançamos,
esquecemos, rimos? Quando foi o tempo
certo? Esse inapagável tempo que, apenas
imaginado, te sai da boca em gritos,
em arrastar de cadeiras, em violência

de porta cerrada ante mim aturdido,
sem gota de pensamento nem palavra
que me console? Mas quando foi?
Quando foi esse desacerto certo no
cerco que disseste ter havido? Essa
funesta e fulminante funda sobre mim

atirando, pedra atrás de pedra, palavra
atrás de palavra, em sórdida acusação.
Mas através da janela nem uma aragem
vejo. Apenas o sufoco. Uma asfixia
rude e fera. Pego numa taça de fresco
branco e deixo-a no degrau à tua espera.


Victor Oliveira Mateus In "A Irresistível Voz de Ionatos", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 29 (Posfácio de Cláudio Neves e texto da contracapa de Olga Savary).

Nunca te pedi que ficasses. Nem que uma qualquer
dádiva fingisses na irremediável mobilidade dos afectos.
Nunca te pedi um qualquer excesso. Não daqueles
que na sua vagueação assumida se tornaram essência
do que essência já não tem, mas dos outros, dos que

me enchem por dentro, quando te encostas à janela
para fumar o último cigarro, quando sorrindo me apontas
o cabriolar dos gatos nos telhados em frente, quando
me olhas sem me conseguir ver: ávido que sou de
permanência no descuidado tumulto com que te fartas.

De mim a mim há um abismo onde nem sempre cabes.
Talvez em certas noites, naquelas em que a solidão aperta
e a dúvida me corrói, até te consiga sentir perto, mas sentir
perto não é ficar. Ficar é coisa que nem à palavra vem de
forma clara e nítida. É onda a trespassar-nos o corpo. Brilho

persistente na lenta preparação do último encontro. Nunca
te pedi que ficasses. Mas ainda acalentei a esperança
que por ti o decidisses. E assim, chegado o instante que
derradeiro sabemos ser, e sem que alguém o visse, e sem
que alguém sequer o suspeitasse, a alma me arrancarias
para que eu forçosamente voltasse em novo re-canto de nós.


Victor Oliveira Mateus In "A Irresistível Voz de Ionatos", Editora Labirinto,
Fafe, 2009, p 32 (Posfácio de Cláudio Neves e texto da contracapa de Olga Savary).

22/09/08

Poetas

"Northumbria's Coastline", foto de Geoff Simpson


Devolveste-me o sem sentido original
das coisas
Devolveste-me as ruas ao natural
as ruas só por si
as ruas estoirando liberdade por todas as frestas
das pedras
as ruas em que dantes pesavas
me oprimias
as ruas que dantes eram tu
tu apenas tu em todas as esquinas
de lado a lado nas paredes
que me estreitavam até gritar
o teu nome

Devolveste-me as ruas livres
descomprometidas
as ruas sem nome sem encontros sem sentido
as ruas que se despem às estrelas
para ninguém
Devolveste-me as árvores
as árvores apenas elas mesmas
no impulso lenhoso dos seus ramos
na sua casca áspera
nas suas casuais flores
para ninguém colher

Devolveste-me o tempo fluindo sem margens
sem fronteiras
as madrugadas espantadas de existirem
as madrugadas sem ninguém à espera

Devolveste-me as noites fruto fechado sobre si
o céu sozinho

As estrelas já não se juntam
para escrever o teu nome
existem
resistem em seu lugar
de olhos muito abertos e brilhantes
sem lágrimas

Devolveste-me os Cafés
cheios de gente que afinal
existe

Devolveste-me o tampo liso das mesas
sua lúcida certeza
de estar só

Devolveste-me as algibeiras sem nada
corajosamente sem nada
só para meter as mãos

Devolveste-me o deslisar dos barcos no rio
sua orgulhosa serenidade
Não mais terás que ver
com barcos e comboios chegando
e partindo

Todos os comboios e barcos partem
e chegam
sem ti
Todos são iguais
e livres
e inúteis

Me encontro
de novo
a sós com as coisas

As mãos sem nada nas algibeiras vazias

me lanço nas ruas com furor
acamarado com sua brutal nudez
sem disfarce

Sabemos que nada temos para trocar
que existimos cada um em seu lugar
sabemos

que apenas nos podemos dar
inteiros
sem paixão
distintos

Ruas paredes pedras
árvores ruas
luas barcos mastros
te devemos
nossa solidão recuperada

Teresa Rita Lopes, Primeiro Poema do Amor Difícil
In"Os dedos os dias as palavras", Porto, Figueirinhas, 1987,
pp 81-83.


( Nota - agradecemos à Profª Teresa Rita Lopes o
ter-nos dado a conhecer alguns poemas deste seu livro.
Gostariamos de chamar a atenção para aquilo a que
podemos chamar a "complexa simplicidade" deste
texto, susceptível de ser apreendida se atendermos
aos jogos de concomitância e/ou de contradição
entre alguns dos seus nós temáticos - Exemplo:
- (o sem) sem sentido original das coisas/liberdade;
- as ruas onde as presenças pesavam/ as ruas livres, descomprometidas;
- a existência (plena dos cafés)/ a solidão; as algibeiras sem nada;
- o saber e a consciência (de nada ter para...)/a abolição da paixão
etc.
Conclusão: um livro a necessitar rápida reedição.)


18/09/08

Natália Correia com Dórdio Guimarães (foto tirada
no "Botequim" no Natal de 1991).

"A Defesa do Poeta"

Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêncio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.

Natália Correia, In "O Sol nas Noites e o
Luar nos Dias" Vol I, Projornal, s/c, 1993,
pp 443-444.

14/09/08

Poetas


Foto tirada a Malraux em Paris em 1960

"A Condição Humana"

À luz vacilante do crepúsculo,
no Château de Verrières,
André Malraux e Louise Vilmorin
falavam, pausadamente, diante de uma chávena de chá.
Inteligente, subentendida, lúcida,
a conversa era quase uma música,
quando um golpe seco no vidro da janela
- talvez um pássaro ofuscado pelas luzes -
lhe recordou certas noites de Espanha,
o ruído dos motores dos aviões,
as metralhadoras atroando o ar.
Seria em Espanha ou na China?
Um áspero cheiro de húmida vegetação,
clarões, corpos que caem junto de um rio,
estrelas impassíveis na sombra infinita.
Não, não, era na Alsácia, os tanques nazis
a arrastarem-se sobre a erva
e, de súbito, soldados e mais soldados.
Detinham-no, iam fuzilá-lo,
o matraquear final da descarga e depois nada.
Quieta e em silêncio, diante dele,
Louise via o reu rosto descomposto,
aqueles tiques, implacáveis e rápidos,
que desfiguravam as suas feições,
o tremor da sua mão na chávena de chá,
umas gotas de suor na ampla testa.
Não, também não era na Alsácia, eram os seus dois filhos
e o Alfa Romeo a 120 que se estampa
e os corpos despedaçados sobre a estrada.
- "Iam a velocidade excessiva", disse uma testemunha -.
O vazio, um gelado vazio, fez-se por um momento
na sua memória,
olhou para os móveis, para as delicadas chávenas na mesa,
para os olhos de Louise.
Com afectada expressão esboçou um sorriso,
enquanto passava o lenço pela testa.
Levantou-se, com visível esforço
gordo, inchado pelo álcool e a droga,
já não era o jovem guerreiro das fotografias -
serviu-se de um whisky e ao voltar a sentar-se
acariciou, suavemente, a cabeça de Louise.
Escutava-se o leve rumor dos móveis antigos,
lá fora, o vento do outono empurrava as folhas.
Voltou-se para ela, olhou-a outra vez nos olhos,
perguntou-lhe, com voz rouca, talvez sem esperar resposta,
"Que relação há entre um homem
e o mito que esse homem encarna?"
Escutava-se o leve rumor dos móveis antigos;
lá fora, o vento do outono empurrava as folhas.

Juan Luis Panero, In "Poemas", Relógio D'Água,
Lisboa, 2003, pp 43-45 (Trad. Joaquim Manuel
de Magalhães).

13/09/08

Poetas


"Quando ninguém olhava"
.
.
Passava os dias iluminado por uma janela
Esperando os dias seguintes
Escoando memórias inquietas
Esvaziando contornos de feridas
Abertas, sem horas nem promessas
No sossego
Quando ninguém estava a olhar.
.
Custava viver emparedado no teu silêncio
Devassado de ambições e chama
De olhos abertos, adormecidos sem lágrimas
Com as mãos mordidas, em sangue
Presas violentamente na parede.
.
Percorrer a vida no meu rasto
Pisando as minhas pegadas
Respirando os mesmos minutos
Sem trabalhos de monta
Que tudo o mais daria muito trabalho
Como falar
Como sonhar
Como inventar
Como vivermos com pressa de viver.
.
Quando ninguém olhava
Deixei de te ver
Respirei os meus minutos sozinho
Iluminado por uma janela
À beira do mundo, começando outra vez.
.
.
Daniel Costa-Lourenço, In "Furor das Noites Cheias",
Edições EC, s/cidade, 2008 (?), pp 69-70.

08/09/08

Poetas

"Corp Dévoilé", foto de Julienne Rose


Engalanada con las joyas de Subad
y con el manto púrpura, me presentaré a ti
para que lentamente tus manos me despojen.
Liberarás primero los dorados ramajes
que cercan el cabello y tus yemas las crenchas
surcarán, posándose, suaves, en los lóbulos
por desasir los aros. Del oído
enfilarán a la garganta
tejiéndose en las sartas de fuego y lapislázuli,
que hacia el pecho conducen.
Y cuando altivo el manto se desprenda
y revele los hombros satinados,
por un lino muy leve deslizarás los dedos
hasta dejar desnudo el rosicler y el nácar.
Y ya con impaciencia asentarás tu estirpe
sellando con tu lacre el rizado azabache.

Clara Janés, In "Cresciente Fértil"

(Tradução de Vergílio Alberto Vieira:

"Fragmento"

Ornada com folhas de Subad
e com o manto de púrpura,
comparecerei diante de ti
para que tuas mãos lentamente me indiciem.
Libertarás primeiro os dourados raminhos
que cercam o cabelo
e teu âmago hão-de as tranças
sulcar, expondo-se, leves, nos lóbulos
os brincos por abrir. Do ouvido
atravessarão a garganta
cruzadas por contas de fogo e lazúli
o acariciado seio.
E quando do alto se desprender o manto
e o macio ombro se mostrar,
o inefável linho atrairá os dedos
até intacto ficar o rosicler e o nácar.
E já inquieto tua estirpe descobrirás
fixando com teu lacre o anelado azeviche.)


Nota - Poema retirado da Revista "Hífen" nº 9
de Setembro de 1995, dedicada à poesia hispânica.

07/09/08



         " Tragédia "

Foi para a escola e aprendeu a ler
e as quatro operações, de cor e salteado.
Era um menino triste:
nunca brincou no largo.
Depois, foi para a loja e pôs a uso
aquilo que aprendeu
- vagaroso e sério,
sem um engano,
sem um sorriso.
Depois, o pai morreu
como estava previsto.
E o Senhor António
(tão novinho e já era "o Senhor António"!...)
ficou dono da loja e chefe da família...
Envelheceu, casou, teve meninos,
tudo como quem soma ou faz multiplicação!...
E quando o mais velhinho
já sabia contar, ler, escrever,
o Senhor António deu balanço à vida:
tinha setenta anos, um nome respeitado...
- que mais podia querer?
Por isso,
num meio-dia de Verão,
sentiu-se mal.
Decentemente abriu os braços
e disse: - Vou morrer.
E morreu!, morreu de congestão!...


Manuel da Fonseca, In "Obra Poética",
Ed. Caminho, Lisboa, 1984, pp 120-121.

04/09/08

Poetas


" A Madre da Casa da Avó" (Excerto)
.
.
havia um rasto de oliveiras
no manto estonteante
campo aberto
jorrado torrado a eito
forro de cortiça e azeitonas
padrão de oiros
campo pão
esbugalhado nos olhos
de bestas, mulas morenas
lentas.
cheiro a chão.
campo maior
do pão.
.
partiam-nos talhadas de sabor
ternuras doces verdes e vermelhas
que secavan no papel pelo ano
.
à madre da casa da avó
agarravam-se as coisas da memória:
dizer-te desse cheiro que havia
um rasto de oliveiras
e restolho
manto
estonteante manto
campo jorrado, torrado a eito
forro de cortiças e papoilas
pão esbugalhado nos punhos
de bestas
mulos à jorna
cheiro a fome do pão.
e a madre
castanha
suspira
eterna
impotente
pelos choros que não mais
- febres de incansável
pouca idade
birras de sestas enganadas
a inventar monstros
príncipes
rostos
formas aflitas nas gretas da parede
branco eterno, antigo
resguardo do abismo
pela madre,
castanha muito
madeira da memória dessa casa
à mesa
partiam-nos talhadas
barcas guardoras da magia
da família
ternuras doces
vermelhas, verdes
sementes secas
na varanda ou no sobrado
que apuravam no papel
ano adentro
até à hora de provar
a melancia
brinde da escola certinha
(lindas meninas!)
merecida
-Estado Novo
meninas lindas-
.
.
... ... ... ...
.
Maria Toscano, In "A madre da casa da avó - os nomes
infinitos do ser", Ed. Pé de Página, Coimbra, 2002, p 55.
.
.
(Nota - Este post só foi possível graças à amizade e à solidariedade
da poeta nele referida, no entanto dada a extensão do poema é-nos
completamente impossível postar, num blogue com estas características,
o texto na integra, contudo não queriamos deixar de mostrar uma
poesia que, quanto a nós, articula de forma primorosa a célebre questão
do quotidiano com todo um mundo imagético, muitas vezes inexistente
em poéticas que a si se chamam destes epítetos. Aqui o quotidiano é o
espaço dos afectos, da memória, de um certo "olhar socio-económico"
e até político - veja-se a ironia do final do excerto -, estamos a léguas
do frio quotidiano de muitas poesias.
Este post será imediatamente retirado se a Maria Toscano, ou alguém
em seu nome, nos disser que a supressão de texto atraiçoou o espírito
do poema, pois a nossa intenção era precisamente o contrário: revelar
uma poesia que merece ser mostrada.)

01/09/08

Poetas

Eunice Arruda (foto de Julho de 2008)



"MOMENTO - I "


Estou deitada em meu corpo
A vida rumoreja
recua como um mar
E o sangue circula sem saída


Eunice Arruda, In "Os Momentos", S.P. Nobel/
Secretaria de Estado da Cultura, 1981.

Poetas

"Consequência"

Em silêncio vimos o sofrimento

rio escuro
se alastrando
alagando a casa

Em silêncio respiramos

sob escombros
o peso
forçando os ombros

Metade do que éramos viveu

Eunice Arruda


(Nota - estes posts só foram possíveis graças à gentileza
e à solidariedade da poeta aqui referida.)