"Northumbria's Coastline", foto de Geoff Simpson
Devolveste-me o sem sentido original
das coisas
Devolveste-me as ruas ao natural
as ruas só por si
as ruas estoirando liberdade por todas as frestas
das pedras
as ruas em que dantes pesavas
me oprimias
as ruas que dantes eram tu
tu apenas tu em todas as esquinas
de lado a lado nas paredes
que me estreitavam até gritar
o teu nome
Devolveste-me as ruas livres
descomprometidas
as ruas sem nome sem encontros sem sentido
as ruas que se despem às estrelas
para ninguém
Devolveste-me as árvores
as árvores apenas elas mesmas
no impulso lenhoso dos seus ramos
na sua casca áspera
nas suas casuais flores
para ninguém colher
Devolveste-me o tempo fluindo sem margens
sem fronteiras
as madrugadas espantadas de existirem
as madrugadas sem ninguém à espera
Devolveste-me as noites fruto fechado sobre si
o céu sozinho
As estrelas já não se juntam
para escrever o teu nome
existem
resistem em seu lugar
de olhos muito abertos e brilhantes
sem lágrimas
Devolveste-me os Cafés
cheios de gente que afinal
existe
Devolveste-me o tampo liso das mesas
sua lúcida certeza
de estar só
Devolveste-me as algibeiras sem nada
corajosamente sem nada
só para meter as mãos
Devolveste-me o deslisar dos barcos no rio
sua orgulhosa serenidade
Não mais terás que ver
com barcos e comboios chegando
e partindo
Todos os comboios e barcos partem
e chegam
sem ti
Todos são iguais
e livres
e inúteis
Me encontro
de novo
a sós com as coisas
As mãos sem nada nas algibeiras vazias
me lanço nas ruas com furor
acamarado com sua brutal nudez
sem disfarce
Sabemos que nada temos para trocar
que existimos cada um em seu lugar
sabemos
que apenas nos podemos dar
inteiros
sem paixão
distintos
Ruas paredes pedras
árvores ruas
luas barcos mastros
te devemos
nossa solidão recuperada
Teresa Rita Lopes, Primeiro Poema do Amor Difícil
In"Os dedos os dias as palavras", Porto, Figueirinhas, 1987,
pp 81-83.
( Nota - agradecemos à Profª Teresa Rita Lopes o
ter-nos dado a conhecer alguns poemas deste seu livro.
Gostariamos de chamar a atenção para aquilo a que
podemos chamar a "complexa simplicidade" deste
texto, susceptível de ser apreendida se atendermos
aos jogos de concomitância e/ou de contradição
entre alguns dos seus nós temáticos - Exemplo:
- (o sem) sem sentido original das coisas/liberdade;
- as ruas onde as presenças pesavam/ as ruas livres, descomprometidas;
- a existência (plena dos cafés)/ a solidão; as algibeiras sem nada;
- o saber e a consciência (de nada ter para...)/a abolição da paixão
etc.
Conclusão: um livro a necessitar rápida reedição.)