14/09/08
Poetas
Foto tirada a Malraux em Paris em 1960
"A Condição Humana"
À luz vacilante do crepúsculo,
no Château de Verrières,
André Malraux e Louise Vilmorin
falavam, pausadamente, diante de uma chávena de chá.
Inteligente, subentendida, lúcida,
a conversa era quase uma música,
quando um golpe seco no vidro da janela
- talvez um pássaro ofuscado pelas luzes -
lhe recordou certas noites de Espanha,
o ruído dos motores dos aviões,
as metralhadoras atroando o ar.
Seria em Espanha ou na China?
Um áspero cheiro de húmida vegetação,
clarões, corpos que caem junto de um rio,
estrelas impassíveis na sombra infinita.
Não, não, era na Alsácia, os tanques nazis
a arrastarem-se sobre a erva
e, de súbito, soldados e mais soldados.
Detinham-no, iam fuzilá-lo,
o matraquear final da descarga e depois nada.
Quieta e em silêncio, diante dele,
Louise via o reu rosto descomposto,
aqueles tiques, implacáveis e rápidos,
que desfiguravam as suas feições,
o tremor da sua mão na chávena de chá,
umas gotas de suor na ampla testa.
Não, também não era na Alsácia, eram os seus dois filhos
e o Alfa Romeo a 120 que se estampa
e os corpos despedaçados sobre a estrada.
- "Iam a velocidade excessiva", disse uma testemunha -.
O vazio, um gelado vazio, fez-se por um momento
na sua memória,
olhou para os móveis, para as delicadas chávenas na mesa,
para os olhos de Louise.
Com afectada expressão esboçou um sorriso,
enquanto passava o lenço pela testa.
Levantou-se, com visível esforço
gordo, inchado pelo álcool e a droga,
já não era o jovem guerreiro das fotografias -
serviu-se de um whisky e ao voltar a sentar-se
acariciou, suavemente, a cabeça de Louise.
Escutava-se o leve rumor dos móveis antigos,
lá fora, o vento do outono empurrava as folhas.
Voltou-se para ela, olhou-a outra vez nos olhos,
perguntou-lhe, com voz rouca, talvez sem esperar resposta,
"Que relação há entre um homem
e o mito que esse homem encarna?"
Escutava-se o leve rumor dos móveis antigos;
lá fora, o vento do outono empurrava as folhas.
Juan Luis Panero, In "Poemas", Relógio D'Água,
Lisboa, 2003, pp 43-45 (Trad. Joaquim Manuel
de Magalhães).