30/09/13



         " Vazio "


vazio
construção imaginada e transparente
que ocupa espaço e sufoca
matéria etérea que vagueia entre
os dedos da saudade
e o corpo do desejo.
coisa nenhuma que enche a alma
devora o sorriso e
passeia-se pelo espaço onde ontem
tu estavas.
vazio
o corpo que habitualmente se enche pela manhã
o som dos teus passos pela casa
o cheiro do lençol onde adormeces...
vazio
é o nome do monstro que me mata


   Guimarães, Nuno. rio que corre indiferente. Coimbra: Temas Originais, 2009, p 41.
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29/09/13



  " Flor re-inventada "


à espera de um sinal
de uma estrela cadente
de um anúncio de jornal
de um toque diferente
de um sussurrar ao ouvido
de um beijo escondido
com sabor doce a jasmim
que me fez sentir perdido
por senti-lo só p'ra mim

à espera de um sinal
de um poema perdido
de um livro ancestral
do meu doce preferido
de uma escolha acertada
de uma história encantada
que um dia escrevi
sobre uma flor inventada
hoje colhida p'ra ti...   


   Guimarães, Nuno. rio que corre indiferente. Coimbra: Temas Originais, 2009, p 18.
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27/09/13


 
 
 
                   "  Poema 7. "
 
 
 
Com tuas mãos falantes é que me anunciavas
o piar das andorinhas e dizias o desenho
do relógio de sol. Como se eu entendesse
as tuas viagens nos passos em redor da sala.
Foi preciso ver as asas saindo dos teus dedos
e a sombra da haste no declínio do dia.
Nessa hora os teus passos fecharam a viagem.
As tuas mãos perfeitas se fizeram arco
e eu pude divisar a rua que viveste
com cuidados maternos a afagar as ervas.
Para lá do arco, disseram os teus olhos,
eu havia de ter a minha luz e as pedras
brilhariam a iluminar esquinas e veredas
e a amplidão dos mares e a solidão dos versos
e sempre e sempre as andorinhas haviam de voltar
porque é nas tuas mãos que começam as aves.
 
 
   Quitério, Licínia. Os Sítios. S/c.: Ed. Autor, 2012, p 14.
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26/09/13



           "  Poema 22. "


Tudo é possível no balcão dos sonhos.
Podes vir de mansinho, com outro rosto,
e eu, sem nada me pesar, dizer - Há muito
espero por ti, Dirk - e a bandeja na mão,
a bandeja do Rick que passou a ser tua,
e o piano vermelho a flutuar naquela rua
de Veneza. Não, não era um canal, era
uma rua, ou talvez não fosse Veneza
e o teu sorriso dorido de café e gin
igualzinho ao do Dirk porque, eu sei,
também o teu estava a sofrer. Há um
tempo assim de tudo doer, e digo mesmo
tudo, a bandeja, o piano, a rua, a cidade
inteira. É uma dor informe. Talvez a vida
seja isso, um tempo de doer e fugir para
o balcão dos sonhos a preto e branco.
Há quem diga que são a cores os sonhos
das pessoas tristes. Há quem fale de uma luz
que faz vermelhos os pianos que flutuam.
Quanto a mim, fico à tua espera, Dirk.
Podes estar em Lisboa ou em Casablanca,
podes até não vir. Sei o sonho de cor.


   Quitério, Licínia. Os Sítios. S/c. : Ed. Autor, 2012, pp 33 - 34.
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Espumante gelado foi a causa da morte de uma aluna
Na Holanda, devido a paragem cardíaca.
A loura tímida, gozada vezes sem conta pela
 
Barriga gorda das pernas, participou num concurso
Sob pressão da turma. Num clube nocturno de Amesterdão,
Duas dúzias de raparigas incendiadas pelo aplauso competiam
Pelo mais belo par de mamas perante o olhar dum júri.
 
Sob as luzes da ribalta, muito despida numa T-Shirt molhada,
Ganharia o teste-das-tetas a que se mostrasse mais sensual,
Banhada em espuma de champanhe e de mamas arrebitadas
 
A atiçar o animal que há no homem. Qual o choque porém,
Quando desta vez a aclamada não mais se levantou.
Antes que a ambulância chegasse, já Miss Sweet-sweet-Tits estava morta.
 
O julgamento de Páris foi macabro, desta vez. O troféu dourado,
Um cálice meio falo e meio tulipa, mais o prémio em dinheiro,
Foram fraca consolação para os familiares da rapariga.
 
 
  
  Grünbein, Durs. Aos queridos mortos. Coimbra: Angelus Novus, 2003, p 37 ( Tradução de Fernando Matos Oliveira).
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25/09/13



Num ataque súbito de ciúmes, aliviada da vontade de viver,
Na manhã de Ano Novo uma mulher em Chicago
Atirou-se para a rua pela janela do duplex,

De quase cinquenta andares de altura.

Porque o namorado, preso por acaso no elevador
A sós com a melhor amiga, devido a avaria,
Na agitação de uma noite de Ano Novo, quem sabe, bêbedo

A poderia... ter... eventualmente... enganado,- desistiu

No fim de tão longo condicional. Os psicólogos
Tinham-na entre as vítimas de raptus. Uma amiga
Via nisto uma mistura de boato e tragédia. Ao namorado

A coisa parecia mais o efeito de uma gramática mortal. O cadáver

Encontrava-se exactamente antes de um cruzamento, na faixa esquerda,
Onde do alto de podia ler, como pedaços soltos de uma tela de salvação,
A inscrição ONLY.


Grünbein, Durs. Aos queridos mortos. Coimbra: Angelus Novus, 2003, p 27 (Tradução de Fernando Matos Oliveira).
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                       "Yeti"

 

 
Comme tout ce qui marche ici... eh bien, toi aussi, tu
passeras vite comme si tu n'avais jamais été.
Une fois compris en route, que toi aussi tu t'arrêtes,
ce parcours de la réflexion n'aura pas de suite.
À peine passée l'arrivée, un saut, déjà l'aveuglement
te guette derrière les lignes oú dans la neige tu t'égares.
De la neige des mots il ne reste qu'un espace entre ces traces
qui seront effacées tôt par prudence. Un essaim de rumeurs
te colle aux tempes, tenace, aveugle, une tache.
Des pensées, ces affections terribles, tu n'en as cure.
Seul un O.K...
pour chaque faux pas, faute et échec.
Ce qui perce par des mots arides à travers l'oubli
s'oubliera lui-même à la fin. Perdue en chemin, persiste
la mémoire, vide. Inscrite dans l'étroite bande des fréquences,
ta mort émet des signes au programme de nuit,
quand, en sommeil, sur le qui-vive, ton corps se cabre.
Tibet. Un homme des neiges. La trace de sa fuite. Blanc sur blanc.

 

Grünbein, Durs. Après l'est et l' ouest. Paris: Éditions Textuel,
 2001, p 173 ( traduit par Silke Schauder).

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  " Monte Baixo "


En días de hospital,
noites
tronzadas,
ríos,
sabugueiros sen folla
festas do leite,
bichos tan azuis,
como se fai
un bosque?
As miñas mans son
rápidas.
Non dan.
Ódiovos,
montes suaves.
A lúa sempre
mingua.
O contrario do amor
é o desprezo.
O odio,
con outras
mans.
Pero os dous
edifican
monte baixo
e quedan
formalmente
expulsados
de aquí.
E para que
así conste, asino
este contrato
nos teus labios
pero despois
rompémolo:
este é un amor
sen casa,
non se pode
gardar.
O vento sopra
louco, di algo
que non vemos
fai voar os papeis,
fainos saber
dun golpe
que nós
non precisamos
testemuños.


  Cebreiro, María do. Non son de aquí. Vigo: Edicións Xerais de Galicia, 2008, pp 55 - 56.
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24/09/13



 " Poema 2 do Ciclo Amarante "


En cada contracción
hai un fondo
de espera
e un fondo de catástrofe.
Cada pequena
cousa pasional
vai retornando
á lama:
non hai formas:
hai vida,
un atentado
contra a noción
vixente
de familia.
Tamén os cereais
son reemprazados.
A rapaza do millo
sucederá á rapaza
do metal,
o bosco,
á Selva Negra.
Ao vento, que non para,
han querer
darlle un nome
de lugar:
por bonito que sexa,
unha traizón.
E no bico dos pés
o amor por esa moza
que chegou
a xuntar os teus vinte
cos meus trinta,
e nos dez que corrían
polo medio
o espazo suficiente
para poder dicir
foi bonito e durou
o xusto, até escoitar
que sempre
haberá alguén
para nos aprender
o sentido do tempo.
Todas as relacións
son a distancia,
pero eu non son
de aquí,
non teño
descendencia,
non quero máis orixe
que esta ponte
até que nos sosteña
e cando caia
teñamos a nobreza
de marchar
sobre os restos,
saibamos despedirnos,
que sexa tan fermoso
como nunca.

  
   Cebreiro, María do. Non son de aquí. Vigo: Edicións Xerais de Galicia, 2008, pp 15 - 17.
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23/09/13

António Ramos Rosa ( 17/10/1924 - 23/9/2013)

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Partiu um dos últimos representantes da Geração de Ouro da poesia portuguesa. Este blogue tem um texto sobre Ramos Rosa que publiquei, há tempos, na Revista da Biblioteca Nacional do Brasil. Anexo a esse pequeno estudo encontrarão também duas conversas havidas entre mim e Ramos Rosa. Agora... o silêncio!!! e um forte abraço à família enlutada: à esposa (a poeta Agripina Costa Marques), à filha (a Maria Filipe) e à sobrinha (a Gisela Ramos Rosa). Não sei dizer mais nada!!!
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No EXPRESSO online:
 
O poeta e ensaista António Ramos Rosa, de 88 anos, morreu cerca das 14h de hoje, no Hospital Egas Moniz, em Lisboa, onde estava internado desde quinta-feira com uma pneumonia, disse ao Expresso uma sobrinha do escritor.
Gizela Ramos Rosa disse ainda que o tio já tinha sido internado recentemente, mas recuperara, regressando à residência Faria Mantero, um lar para artistas onde residia há vários anos.
Ramos Rosa tem uma "obra multifacetada, embora predomine a poesia. Foi um exímio tradutor e ensaista", disse ao Expresso o poeta Victor Oliveira Mateus.
Do seu círculo de amigos mais próximo - e da geração mais próxima da dele - fizeram parte os escritores "Vergílio Ferreira, Casimiro de Brito, João Rui de Sousa e Maria Teresa Horta", acrescenta Victor Oliveira Mateus.
Ramos Rosa, também "apoiou alguns nomes das gerações seguintes com quem manteve relações de proximidade. Foi o caso de António Carlos Cortez, Maria Teresa Dias Furtado e eu próprio", acrescenta Victor Oliveira Mateus.
Contactado pelo Expresso, António Carlos Cortez, recorda que em 2003, teve "oportunidade de organizar e prefaciar o livro "Os animais do sol e da sombra. Quando terminei tive a percepção clara de que Ramos Rosa era um poeta da metalinguagem". "Mas isso não lhe retirou nenhuma leveza nem nenhuma naturalidade", acrescenta.
Na perspetiva de António Carlos Cortez "morreu, talvez, o último representante de uma geração de ouro da poesia portuguesa. Homens nascidos nos anos 10 e 20 do século XX, como é o caso de David Mourão-Ferreira, Carlos Oliveira e Mário Cesariny" [entre outros].
António Ramos Rosa nasceu em Faro em 17 de Outubro de 1924. Foi Prémio Pessoa em 1988. No dia em que comemorou 74 anos, em 2003, a Universidade da sua terra natal, atribuiu-lhe o grau de Doutor Honoris Causa.
O poeta era casado com Agripina Costa Marques, autora de vários de livros, e pai de Maria Filipe Ramos Rosa. Ramos Rosa convidou a escritora e grande amiga Maria Alberta Menéres para madrinha da sua única filha.


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A poesia de Kofi Awoonor, traduzida para castelhano, no célebre Festival Internacional de Poesia de Medellin ( 2007).
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Kofi Awoonor, principal poeta do Gana - mas também crítico literário e diplomata -, encontrava-se em Nairobi para participar num Festival Literário, quando as tropas do Quénia fizeram uma incursão que visava atingir radicais islâmicos que se tinham entrincheirado, e feito reféns, num Centro Comercial. Este autor, assim como vários ocidentais, foi atingido durante a referida incursão. Kofi Awoonor acabou por não resistir aos ferimentos...
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22/09/13



          " Entre ave e réptil "


interessa-me
entre ave e réptil
a condição
ambígua

confesso meu
fascínio por
essa corda estendida
entre uma e outra
palavra
e sua falsa noção
de equilíbrio

trago na raiz
do gesto o alvoroço
do circo

nervo reteso
lanço-me no ar
risco a
superfície do inútil - e vôo!

por vezes
uma palavra mais ágil
me subtrai
do precipício

mas quase sempre
me esborracho
no chão
em meu vôo solo
sem tambor nem
auxílio

reconfirmado
sísifo
- amador de seu ofício -
alço-me outra vez
ao risco dos trapézios


  Machado. Carlos. Pássaro de vidro. São Paulo: editora hedra, 2006, pp 95 - 96.
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20/09/13



  " Pássaro de vidro (4) "


os matemáticos
- bruxos -
costumam brincar
com geometrias
esdrúxulas

e criam objetos
fantásticos
n-dimensionais
nos quais
não se sabe

o que é o fora
o que é o dentro
onde a periferia
onde o centro

*

assim esse pássaro
de vidro
menos inventado
que um (de)lírio
matemático

não é uma
fita de Mobius
nem uma
garrafa de Klein

é uma ave
estranha
em estado
grave de segredo

um pássaro
que resguarda tudo
que revela

embora exponha
sua entranha
sem temor
sem tumulto

enigma com asas
ele pousa
transparente
sem fora sem dentro

pousa como coisa
sem segredos


  Machado, Carlos. Pássaro de vidro. São Paulo: editora hedra, 2006, pp 50 - 51.
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18/09/13



         " Até quando? "


Até quando no túnel sem saída,
no bosque feito de espinhos, no poço?
Até quando instalada na esperança
dos que nada esperam?
Até quando perdida em labirintos,
em cidades sem luz, em pesadelos
que não terminam quando acaba o sonho?
Até quando engolindo
névoas espessas, desconcerto, vertigem?
Até quando sem ti?
Até quando com outros?


    Bautista, Amalia. Estou Ausente. Lisboa: Averno, 2013, p 101.



   " Os Meus Melhores Desejos "


Que a vida te pareça suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que sigas seja sempre escolhido
entre dois pelo menos.
Que te interesse a vida tanto com tu a ela.
Que não te apanhe o vício
de prolongar as despedidas.
E que o peso da terra seja leve
sobre os teus pobres ossos.
Que a tua recordação ponha lágrimas nos olhos
de quem nunca te disse que te amava.


   Bautista, Amalia. Estou Ausente. Lisboa: Averno, 2013, p 21.
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16/09/13


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Patrick Phillips lê o seu fabuloso poema "Nathaniel", poema este que integra o seu último livro - "boy".
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Nathaniel

Patrick Phillips


Whatever it was
that made the Reverend
Barker stoop that way,

it meant no matter
how much he screamed
at my friend Nathaniel

for being late, for not
raking the leaves,
or for raking the goddamned

leaves the wrong Goddamned way
(his huge, gin-blossomed jowls
quivering with rage,

his great whale-eyes
lost in the gray
depths of his brow),

he could only ever scowl
at the tops of his wingtip shoes
or at the cuffs of the black wool suit

he always seemed to be wearing
when he’d thunder into the yard,
or down the stairs,

or through the little speaker
of some payphone
we huddled around, God

damnit Nathaniel, I told you,
I told you, Nathaniel, Goddamnit!

his fury repeating itself

so precisely it became a joke
we hollered through the halls,
changing my friend’s name

to Goddamnit Nathaniel, as in
Where the hell’s Goddamnit Nathaniel?
I told you, Goddamnit, to get me a Coke!


which was stupid but funny at fourteen,
and still just as stupidly funny at nineteen,
when we’d yell across a bonfire,

Don’t bogart that joint, Goddamnit
Nathaniel. Haven’t I told you
to pass the fucking bong when you’re through?


which is still funny to me even now—
even though I look back and see,
as I could not have seen then,

that the Reverend Barker
only stooped that way
because he was dying,

because cancer was eating his liver,
and because with each day it became
both more urgent and more unlikely

that he would ever manage to say
whatever it was he meant
when he’d sit at the kitchen table,

or grip the black phone,
or stand in the darkened driveway
after we’d all gone home,

staring at the ground and saying nothing
to his sweet, beloved boy
but Goddamnit

Nathaniel, listen to me.
Listen Goddamnit.
Goddamnit Nathaniel, now listen.

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.

 



(...)
   Desde muito pequena tive uma consciência aguda
da precariedade da minha condição social.
Foi sempre muito claro para mim que apenas
uma circunstância, aleatória ou não, mas muito frágil,
fizera com que eu nascesse daqueles pais,
e que não me tivessem trocado na maternidade,
e que eles não tivessem morrido cedo ou ficado
sem emprego,
(...)
Bastava que tivesse havido um incêndio,
uma inundação, um tremor de terra, uma epidemia,
(...)
uma condenação, um ataque de loucura,
uma vingança, uma maldição,
um divórcio, uma paixão, uma promessa não cumprida,
uma assombração, um despedimento, uma desilusão,
(...)
e eu já não seria... a ilusão que pareço ser.
Seria... outra ilusão que pareceria ser.


   Pedro, Risoleta Pinto. O homem da minha vida. Lisboa: Padrões Culturais Editora, 2009, pp 7 - 11.
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15/09/13



pensam: é melhor ter o inferno a não ter coisa nenhuma
- como a tantos tanto o nada os apavora!
eu acho que o génio da doutrina está nessa promessa exímia:
ninguém que espere a eternidade
espera o paraíso:
provavelmente o paraíso é improvável como imagem,
                                                                    dêem-nos
algum pouco do inferno, o bastante para
ocupações gerais,
trabalhos breves,
jogos da mente,
jogos distraídos,
jogos eróticos talvez, os muçulmanos tiveram palpite disso,
e os cristãos que receberam formação comercial, penso:
ia pôr a mão no fogo, ia cortar uma orelha,
eu que em mim sou obscuro, não, não,
então recebe lá a minha prece quotidiana:
dá-me o êxtase infernal de Santa Teresa de Ávila
arrebatada ar acima num orgasmo anarquista,
a ideia de paraíso é apenas um apoio
para o salto soberano,
não um inferninho brasileiro com menininhas de programa,
púberes putinhas das favelas,
mas o inferno complexo onde passeia a Beatriz das drogas duras,
um inferno à medida de cada qual dificílimo,
onde se é evasivo,
subrilezas desde o xadrez à física quântica,
à poesia pura,
aos fundamentos da levitação xamânica,
ao sufismo,
ao surfismo
a metáfora do fogo, de que argúcias e astúcias é ela rarefeita?
e a metáfora da água?
a ideia de paraíso é muito brutal e louca,
e o purgatório como purga é tão tôrpe, tão terrestre, tão
                                                             trivial e trôpego,
tão político,
tão tenebroso!
não resulta,
dá-me esse inferno oh quanta força e ofício nos idiomas:
formar uma estrutura estritamente poética
na sua glória mesma,
só com uma inteligência de duplos sentidos,
o poema que pede mais que dez dedos,
nem os braços lhe bastam e o coração ao meio,
e os cinco litros de sangue com que se abraça tudo e se abusa
                                                                                 do mundo,
e o político e o cívico e o administrativo e o
                                   económico-financeiro,
enfim o ínvio,
para quê tantos capítulos?
oh claros corredores ao longo das vozes a capella,
sim sim, organizam a morte,
e depois quem tem sorte entra pelo inferno dentro,
fulgurante, poemático,
edições os trabalhos do diabo,
post-scriptum:
meu amor, o inferno é o teu corpo foda a foda alcançado,
e lá fora eles cantam, os castrati, a capella, vozes
furiosamente frias,
limpas,
devastadoras,
oh maldita cocaína, musa minha, droga pura,
minha aranha idiomática,
estrela de cinco pontas, o fundo do ar ardendo,
e os já ditos braços meus muito abertos,
e entre os braços o já dito coração aos pedaços
always toujours sempre
oh pulsando
pulsando!


   Helder, Herberto. Servidões. Lisboa: Assírio & Alvim, 2013, pp 97 - 100.
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13/09/13

Natália, a grande... a enorme!


Natália Correia partiu demasiado cedo, se fosse viva faria hoje noventa anos. O seu "Credo" :
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Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,

Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,

Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,

Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o Amor tem asas de ouro.Amen.
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Otto Sander ( 30/6/1941 - 12/9/2013 )


.Otto Sander interpretando o papel do Anjo Cassiel em AS ASAS DO DESEJO de Wim Wenders.
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UMA SUGESTÃO: depois deste filme convém ver também TÃO LONGE, TÃO PERTO igualmente de Wim Wenders. O poema 24 (p 37) do meu Pelo Deserto as Minhas Mãos baseia-se nestes dois filmes (e em nada mais), aliás, a epígrafe refere mesmo uma cena belíssima com a Nastassja Kinski.
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11/09/13

 
 
Tout ce que j'ai écrit sur nous est mensonge
ce n'est pas ce qui a été entre nous mais ce que j'aurais
   voulu qui soit
C'étaient mes nostalgies posées sur des branches inac-
   cessibles
C'était ma soif tirée du puits de mes rêves
C'étaient des images que je traçais sur la clarté
 
Tout ce que j'ai écrit sur nous est vrai
ta beauté
   c'est-à-dire une corbeille de fruits ou un festin sur
   une table champêtre
mon manque de toi
   c'est-à-dire moi dernier lampion du dernier coin de
   la ville
ma jalousie
   c'est-à-dire ma course les yeux bandés la nuit parmi
   les trains
mon bonheur
   c'est-à-dire le fleuve ensoleillé rompant ses digues
tout ce que j'ai écrit sur nous est mensonge
tout est vrai de ce que j'ai écrit sur nous.
 
 
  Hikmet, Nâzim. Il neige dans la nuit et autres poèmes. Paris: Éditions Gallimard, 1999, pp 191 - 192.
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10/09/13


   " La petite fille "


C'est moi qui frappe aux portes,
aux portes, l'une après l'autre.
Je suis invisible à vos yeux.
Les morts sont invisibles.

Morte à Hiroshima
il y a plus de dix ans,
je suis une petite fille de    sept ans.
Les enfants morts ne grandissent pas.

Mes cheveux tout d'abord ont pris feu,
mes yeux ont brûlé, se sont calcinés.
Soudain je fus réduite en une poignée de cendres,
mes cendres     se sont éparpillées au vent.

Pour ce qui est    de moi,
je ne vous demande rien:
il ne saurait manger, même des bonbons,
l'enfant qui comme du papier a brûlé.

Je frappe à votre porte, oncle, tante:
une signature. Que l'on ne tue pas les enfants
et    qu'ils puissent    aussi manger des bonbons.


  Hikmet, Nâzim. Il neige dans la nuit et autres poèmes. Paris: Éditions Gallimard, 1999, pp 115 - 116.
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09/09/13



  " Le vingtième siècle "


- " Dormir maintenant
Et se réveiller dans cent ans, mon bien-aimé..."
- " Non,
Mon siècle ne me fait pas peur,
Je ne suis pas un déserteur.
Mon siècle misérable,
          scandaleux
                   mon siècle courageux,
                                            grand
                                                     et héroique.
Je n'ai jamais regretté    d'être venu trop tôt au monde,
Je suis du vingtième siècle:
Et j'en suis fier.
Il me suffit
d'être au vingtième siècle,
                                       là où je suis,
d'être de notre camp,
Et de me battre pour un monde nouveau..."
- " Dans cent ans, mon bien-aimé..."
- " Non, plus tôt et malgré tout,
Mon vingtième siècle mourante et renaisssant,
Et dont les derniers jours seront si beaux,
Ma nuit terrible qui se termine dans des clameurs
    d'aurore,
Comme tes yeux, mas bien-aimée,
Mon     siècle sera plein de soleil...


   Hikmet, Nâzim. Il neige dans la nuit et autres poèmes. Paris: Éditions Gallimard, 1999, pp 92 - 93.
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