29/08/08




Ainda existem as ruas onde por acaso
nos encontrámos? Tantos dias correram
num ano, viam-me em dias de mais desejo
apressar os passos, olhar o relógio, pôr
falhando os discos nas capas. Parecia
ter sido só uma despedida de um dia
para o outro, agora se escrevo é porque
és apenas uma imagem da memória, pouco
faltará para que guarde de ti um risco,
um embaraço. E sempre chegarei a tactear
o rosto, fingir que lembro pequenos sinais,
as poucas palavras necessárias para eu
aceitar, duas vezes o meu corpo esteve
com o teu, muitas mais sem saberes.
Na volta de uma esquina não reparo,
tropeço, encontro, o último sorriso
começa a nascer.


Helder Moura Pereira, In"De Novo as Sombras e as Calmas -
poesia 1976/1990", Contexto Editora, 1990, p 159.

27/08/08

Poetas

Foto de Tim Mantoani com Miles Alderidge segurando
uma das suas fotos mais emblemáticas, que Alderidge tirou
em Paris para a semana santa em Córdova.





"O Anjo do Poema"



Dentro da mortalha desta casa,
nesta noite erma com tanta solidão,
ao olhar sem saudade o que partiu de minha vida
o que não pôde ser,
esta vasta ruína do passado,
também sem esperança
no que virá ainda flagelar-me,
só um bem é possível: a aparição do anjo,
seus olhos vivos, não sei de que cor, mas de fogo,
a paralisação perante o rosto formosíssimo.
Depois ouvir, saindo do silêncio e em tanta solidão,
sua voz sem tradução, que é só um fiel
entendmento sem palavras.
E o anjo faz, fechando-se em minhas pálpebras e
abrigado nelas, sua derradeira aparição:
com sua espada de fogo expulsa o mundo hostil,
que gira fora, às escuras.
E não há Deus para ele nem para mim.





Francisco Brines, In "A Última Costa", Assírio
& Alvim (Trad. José Bento), p 33.

23/08/08




      "Margem Sul"


Não quero libertar-me
da minha história, dos grandes navios
que ajudei a reparar, pintar, soldar,
equilibrado como um hábil trapezista
a grandes alturas. Exilado
do cais, hoje navego
na luz do fim da tarde. As minhas mãos
voam na perícia que me resta
jogando os trunfos
que verdadeiramente nunca tive.


Inês Lourenço, In "A Enganosa Respiração da Manhã",
Edições Asa, Porto, 2002, p 33.

21/08/08

Poetas


.
.


"Oculta Lágrima"

Mesmo que retornases a pisar
as ervas do caminho,
mesmo que as tuas mãos anunciassem
em concha água das fontes,
mesmo que em desatino
os sons da tua voz
como outrora se ouvissem perto ou longe
e mesmo que os teus olhos
languidamente para os meus olhassem -
só poderia responder-te agora
com uma oculta lágrima
que não foi derramada.

António Salvado, In "Essa Estória", Portugália Editora,
Lisboa, 2008, p 89.

17/08/08

Poetas

"Progresso", foto de Nuno Fernandes (2008)


"Prometeu acorrentado"


Pelo homem, pus minha mão no fogo.
Me queimei.
Agora só me cabe apelar:
- Livrai-me dos abutres, ó Zeus!


Flávio Moreira da Costa, In "Malvadeza Durão
e outros contos", AGIR Editora, Rio de Janeiro, p 59.

Poetas

"Crepúsculo dos deuses"

1

Que teu coração enterneça,
poluído homem urbano:
Kaváfis não deu um tiro
na cabeça: escreveu um poema.
Já leu?

2

Que teu coração enterneça,
homem urbano/poluído:
Cesare Pavese terminou
de escrever Ofício de viver
e deu um tiro no ouvido.

3

Nelson Cavaquinho bebeu demais
- um porre não lírico
mas homérico. Perdeu
seu cavaquinho.
Ficou sem sobrenome.

Que teu coração enterneça.


Flávio Moreira da Costa, In "Malvadeza Durão
e outros contos", AGIR Editora, Rio de Janeiro, p 65.

11/08/08




         " SONETO "


Amor desta tarde que arrefeceu
as mãos e os olhos que te dei;
amor exacto, vivo, desenhado
a fogo, onde eu próprio me queimei;

amor que me destrói e destruiu
a fria arquitectura desta tarde
- só a ti canto, que nem eu já sei
outra forma de ser e de encontrar-me.

Só a ti canto, que não há razão
para que o frio que me queima os olhos
me trespasse e me suba ao coração;

só a ti canto, que não há desastre
donde não possa ainda erguer-me
para encontrar de novo a tua face.


Eugénio de Andrade, In "Antologia (1940-1961)",
Ed. Delfos, pgs. 95/6.

07/08/08




Em qualquer momento, no começo e no fim,
mesmo na medida de toda a vida - falhos de toda a pena,
permanecemos sem amanhã nem princípio,
esbatidos na idade e na distância, saqueados na sua mentira,
apenas acumulando areia para o fundo de um recreio
a simular um amuleto contra o regresso impossível.
Não temos trégua - não podemos voltar - e afastamo-nos - sem
ruído - lá para onde de longe chamamos, no ar rarefeito
- figuras resumidas a uma branca poeira informe,
em quantas inumeráveis semelhanças com a morte.
Pressentida ruína, a do íntimo declínio disto tudo,
demais cientes na incerteza como o sinal exposto da memória,
resina que nela se abate à frente dos olhos, que
esmaga cada braçada do tempo ao seu embuste
e nos recusa a menor separação do abandono -
que por nada existimos - e só acenamos - acenamos -
senão para crer no que julgamos não ter acontecido,
senão a entender a justa aceitação da nossa vida.

 
Rui Coias, poema 7 de "A Ordem do Mundo",
Ed. Quasi, 2005, p 15.

05/08/08

Da esquerda para a direita: Marco Lucchesi, António Ramos Rosa
e Victor Oliveira Mateus (foto de Julho de 2008).



Do rosto não
sabemos mais
que o véu

do caçador não
mais que a caça

é madrugada
e assim tudo

descansa em toda a parte


Marco Lucchesi, In "Sphera", Editora Record,
São Paulo/Rio de Janeiro, 2003, p 91.
"A sós, em seu tormento"


Pouco
abaixo
do sono
de Deus

cai a pele
das horas

e a tarde
ensolarada

livre
de papoulas

move

as rodas
do tempo

olhos

(entretanto)

medem
o não visível
rosto

desperto
onde repousa

a sós em
seu tormento

de todos
esquecido

destino
universal

o príncipe
do nada

Marco Lucchesi, In "Erwartungslicht",
Ed. Leonardo Verlag, Curitiba/Berlim, 2003.