23/07/13


  Hoje acordei muito angustiado, o peito a doer com a dor surda que dificulta a respiração, a ferida da alma a sangrar, hoje é Domingo.
  Já se sabe que o Domingo é o pior dia, muitas vezes o sofrimento mental começa logo no Sábado à noite, antecipando o dia infernal que lá vem, Pedro sabe que é o dia em que preciso mais da atenção dele, dos carinhos, da voz, preciso muito da voz dele, das mãos, do sorriso, nunca fazemos amor ao Domingo de manhã porque ambos sabemos que o meu pensamento está imerso em angústia e dor.
  Acordo sempre muito cedo e levanto-me de imediato porque se fico na cama a angústia vai aumentando rapidamente, não acordo Pedro porque preciso de viver sozinho a angústia por algum tempo, tomo a medicação de rotina (...) um pensamento desvairado, sem travões, vem à cabeça um pouco de tudo, porquê este sofrimento, porquê eu, porquê ainda, passados quarenta anos, porquê ainda, tendo o colo de Pedro há vinte anos, porquê ainda, quando já nada escondo a ninguém, sinto um enorme cansaço mental para o qual não encontro descanso, e hoje não me apetece sair de casa, não consigo ler (...). Estava a pensar que a memória é o nosso pior inimigo, Pedro, era tudo tão mais fácil se não nos lembrássemos de nada, passou, passou, mas ela insiste em nos lembrar dos piores momentos, e, o que dói ainda mais, dos melhores momentos, quando se está angustiado como eu estou, a recordação das coisas boas aumenta a angústia, que bom que foram aqueles tempos, aquele dia, aquela noite, e vem então o medo, o terrível medo de que não haja mais bons momentos, de que o futuro não exista, que só haja algo muito negro e sem qualquer sentido, que nos aponta, sorrindo, o caminho da loucura.
  Pedro ouviu-me com uma expressão aflita, ouve-me sempre assim como se fosse a primeira vez, ele sabe melhor que ninguém o que eu sofro, mas também sabe que tudo seria muito pior sem ele...
 
  Lima, Joaquim Almeida. Ensaio sobre a Angústia. Lisboa: Gradiva, 2012, pp 64 - 65.
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22/07/13

 
 
  Os cabeças rapadas.
  Tinham jantado na Outra Banda. Em casa do Gaspar, que ia assentar praça em Tancos.
  Ao café, lembraram-se dos Dogue Dócil. A vocalista e o namorado eram amigos de alguns deles. Xonas, Ferra, João Cigarra.
  - Vão tocar às Palmeiras.
  - E o estupor deixa a chavala ir lá?!...
  - Um coio de blacks!
  - Monhés...
  - ... de maricões a enrabarem-se uns aos outros!
  Mais! Propaganda vermelha e antimilitar. O Ferra tinha um dos mangas debaixo de olho.
  - Mais do que um!
  O gajo que aparecia nas esquadras e no SEF, logo que lhe cheirava a brancos malhando nos pretos. E outro.
  Um cota que, há quinze anos andava nisso dos SUVs! Tem uma miúda portuguesa, mas anda sempre de mistura com cabo-verdianas...
  Tudo o que fosse galdéria de cor.
  - Bora lá, Ferra!
  - Bora!
  Passou a faca ao João Cigarra. E a recomendação: ter presente o que se treinara, nessa tarde.
 
  O Alex avistou-os, pelas janelas do salão. O João Paulo pelas do primeiro andar.
  - Dois gajos à porrada com a nossa malta... já quase cá dentro!
  E a rirem-se dos bocados de mangueira que o Zé tinha na mão.
  - Atirei-lhes lá de cima com uma cadeira...
  Despedaçara-se no chão, sem atingir ninguém.
  E o João Paulo metera pelas escadas. Sem saber como, trespassara a confusão que ia no patamar.
  - Chego cá fora, e o Zé...
 
 O Zé da MESSA tombado rente à parede.
(...)
  O Ferra com um bocado da cadeira na mão, a querer acertar-lhe na cara. E ao mesmo tempo, a dar ordens: "Pisguem-se! Todos!... Uns para o Terreiro do Paço, outros para Belém!..."
  Gorros enfiados à pressa. "Lembrem-se: ninguém tinha estado aqui antes!... Nem conhecia o gajo que levou a naifada!"
  As Dr. Martens batendo a calçada em todos os sentidos.
(...)
  Ah! Mas o que nunca se esquece.
  A ambulância a caminho do hospital. São José era já ali, virando, subindo.
  "O Zé ao meu lado..."
(...)
  Mas ainda gritou: "bute daí!"
 
  "Bute lá, Zé!"
 
 
     Beja, Filomena Marona. Bute daí, Zé! Lisboa: Sextante Editora, 2010, pp 245 - 248.
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  O sobressalto pelo telefone. Havia carros de combate, hesitando nas ruas que desciam para o Terreiro do Paço. Que subiam para o Carmo.
  Quem costumava ligar a rádio dera pelas canções, Paulo de Carvalho, José Afonso.
  E pelo repetir de um comunicado: "Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas..."
  O anúncio de que alvorecia. O aviso de que toda a população se deveria manter em casa.
  Mesmo assim, saíra-se a comprar pão. Favas, que já se estava no tempo delas. E pouco mais, porque o mês ia no fim.
  Quanto às obrigações do costume, quase ninguém se metera a caminho.
  "Não abri a loja", "Não fui pegar às oito, na oficina". Nem os garotos tinham ido à escola.
  Expressões de orgulho. Das que, mais tarde, preencheriam o recordar dessa manhã.
 
  E os momentos de que já ninguém fala?
 
  Resta, apesar de tudo, o direito à memória. Sim. Mercê de não se terem acatado certos avisos.
  Principalmente, ter-se sido rápido a decidir. Tal o fotógrafo que, pelo meio da madrugada, foi ao encontro de Salgueiro Maia.
  Fernando Salgueira Maia, Capitão de Cavalaria.
  O fotógrafo: Alfredo Cunha, d' O Século.
  Um ia em trinta anos. O outro, nos vinte.
 
  Ribeira das Naus.
  A fragata Gago Coutinho rumando ao Cais das Colunas. E os blindados de Ferrand d' Almeida frente aos de Salgueiro Maia.
  De trás de um chaimite, veio o rapaz-fotógrafo. Disparou. Registou o capitão persuadindo um tenente-coronel a render-se.
  Logo a seguir, outra fotografia: o capitão dando ordens à Polícia. As primeiras.
  Depois, a série que descreve Salgueiro Maia a chegar com os seus duzentos e quarenta homens ao Terreiro do Paço. E a encontrar desertos os gabinetes dos Ministros.
  Lembramo-nos, pelas fotografias de Alfredo Cunha.
  Também pelas de outros. Claro.
 
  A Cidade, porém, não ficara vazia.
  Muita gente chegava à janela. Vinha para a rua. Perguntava se aquilo se estava mesmo a dar. Se era verdade.
  - E eles?...
  O tempo de salpicos não ajudava. Chove? Não chove? Mas também não dissuadia fosse quem fosse de se pôr a caminho da Baixa.
  A Polícia já não conseguia que, do Cais do Sodré à Doca da Marinha, as praças e as ruas se mantivessem isoladas.
 
  Beja, Filomena Marona. Bute daí, Zé! Lisboa: Sextante Editora, 2010, pp 94 - 96.
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20/07/13

 
 
"Dentro de Casa" (Dans la maison, 2012) é o penúltimo filme de François Ozon, que em 2013 apresenta já em Cannes o seu "Jeune et Jolie" onde lança a jovem Marine Vacth. A obra de Ozon conta com alguns filmes de culto como "8 femmes" e "Le temps qui reste", onde importantes nomes do ecrã são chamados a ótimos desempenhos. Em "Dentro da casa", grandes actores como Fabrice Luchini (Germain, o professor de literatura), Kristin Scott Thomas (a mulher de Germain) e Emmanuelle Seigner (a mãe de Rapha, um amigo de Claude) têm excelentes interpretações. A grande revelação é, sem sombra de dúvida, a de Ernst Umhauer no papel de Claude. Este filme, baseado na peça "El chico de la última fila" do dramaturgo espanhol Juan Mayorga, situa-se no entrecruzar de vários géneros: o suspense, o melodrama e mesmo a sátira social, pois não nos podemos esquecer do olhar mordaz e cínico que Claude imprime aos seus relatos (as suas redações) quando descreve a família Rapha, cuja figura feminina é frequentemente referida de forma pejorativa como "a mulher da classe média". Tem a crítica assinalado duas influências importantes nesta película: "A janela indiscreta" de Hitchcock e "Teorema" de Pasolini, contudo, a minha leitura é ligeiramente diferente: a influência de Pasolini é mais formal do que de conteúdo, isto é, o herói do realizador italiano é um angustiado, um ser colocado no aberto da existência que nada pretende nem goza, e, se atendermos às concepções religiosas de Pasolini, quase se poderia dizer que estamos ante um anjo que anuncia, ora, Claude é exactamente o oposto. Claude é um manipulador, um perverso que colhe prazer no jogo e no domínio, esta personagem de Ozon, ao contrário da de Pasolini, nunca chega a partir (ver final do filme!), ela fica com a sua vítima porque precisa dela, deixar partir a vítima seria condenar-se a si próprio ao nada que suspeita ser. A construção da personagem de Ozon nada tem a ver, portanto, com a de Pasolini, também magistralmente interpretada, mas por Terence Stamp.
Por tudo isto, para mim, "Dentro de casa" não é apenas um filme sobre o voyeurismo, mas é, sobretudo, uma obra sobre a manipulação do outro e o domínio: Claude, um jovem de dezasseis anos
("loiro e tímido" como o descreve a empregada da secretaria da Escola!), introduz-se em casa de um colega de turma (Rapha), selecionado de forma gratuita, e a partir da observação directa dessa família vai tecendo uma teia de relatos que vão prendendo, cada vez mais, a atenção e o interesse do seu professor de literatura. Claude, para atingir os seus objectivos, cilindra tudo o que se lhe atravessa no caminho: ridiculariza Rapha, mantém um caso com a mãe deste, destrói a carreira profissional do professor, destrói igualmente o seu casamento já que chega ao ponto de ir para a cama com a mulher do professor... e, por fim, os seus objectivos (a certa altura do filme ele diz mesmo para Germain: eu sou como a Sherezzade que vai contando histórias para prender a atenção do sultão!) são conseguidos: o professor (em estado de depressão)! internado, desprotegido e ao seu dispor é completamente contaminado pelo seu voyeurismo. Claude tem, finalmente, à sua disposição, alguém com quem pode dialogar acerca de tudo, mas, principalmente, acerca das ficções que constrói a partir do que vai observando através das janelas. "Dentro de casa" de François Ozon é um filme brilhante!
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15/07/13



Foi sempre tão incerto o caminho até ti:
tantos meses de pedras e de espinhos, de
maus presságios, de ramos que rasgavam a
carne como forquilhas, de vozes que me
diziam que não valia a pena continuar, que
o teu olhar era já uma mentira; e o meu

coração sempre tão surdo para tudo isso,
sempre a gritar outra coisa mais alto para
que as pernas não pudessem recordar as
suas feridas, para que os pés ignorassem
as penas da viagem e avançassem todos
os dias mais um pouco, esse pouco que
era tudo para te alcançar. Foi por isso que,

ao contrário de ti, não quis dormir nessa
noite: os teus beijos ainda estavam todos
na minha boca e o desenho das tuas mãos
na minha pele. Eu sabia que adormecer

era deixar de sentir, e não queria perder os
teus gestos no meu corpo um segundo que
fosse. Então sentei-me na cama a ver-te
dormir, e sorri como nunca sorrira antes
dessa noite, sorri tanto. Mas tu falaste de

repente do meio do teu sono, estendeste o
braço na minha direção e chamaste baixinho.
Chamaste duas vezes. Ou três. E sempre tão
baixinho. Mas nenhuma foi pelo meu nome.


   Pedreira, Maria do Rosário. Poesia Reunida. Lisboa: Quetzal Editores, 2012, p 172.
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14/07/13

 
 
 
Ari tem cabelos aloirados e encaracolados e pés pequenos. Usa botas demasiado grandes para os seus pés para que ninguém repare que tem pés de cabra, pés demasiado pequenos, demasiado minúsculos. O cão nota a aproximação de Rosa, levanta-se e ladra. O pastor ergue-se e encosta-se a um sobreiro. Tira um cigarro e acende-o. Rosa aproxima-se. Traz um saco com arroz e um sorriso. Parece feliz, e o pastor sorri para dentro. Não o faz para fora para não perder o charme. Encosta um dos pés à árvore e dá três passas de seguida no cigarro, semicerrando os olhos enquanto olha para Rosa. Com o indicador dá um piparote no cigarro deitando-o fora. Rosa chega ao pé dele ofegante e bem-disposta, pousa o saco e atira-se para os seus braços. Ele estremece, mas faz-se viril e nem sorri, apenas se penteia. (...) Ele limpa a boca à manga da camisa aos quadrados e agarra-a pela cintura, derruba-a, cai em cima dela como um pôr-do-sol, levanta-lhe a saia e tenta tirar-lhe as cuecas. Não é fácil e acaba por sentir algum embaraço com a sua falta de jeito, especialmente porque Rosa se queixa de que ele a magoa, de que é demasiado bruto.(...)
  O pastor não percebe aquela antipatia. Gosta da natureza e da selvajaria que o cerca. Não se incomoda com os cheiros, com a sujidade, porque é isso que é a natureza, um lugar sem higiene nenhuma, cheia de bichos e de terra e de coisas desorganizadas. É o oposto dos jardins e das cidades e das hortas e do cimento. A natureza é o maior inimigo do homem civilizado. Mas o amor pode muitas coisas e, desde que se deita com Rosa, Ari passou a tomar banho quase todos os dias, ou pelo menos uma vez por semana.
- A minha avó está muito doente.
- Está velha. Não há nada de mal nisso.
- Tenho medo de ficar sozinha.
- Eu estou aqui.
- Não é a mesma coisa.
- Eu não morro.
- Não morres?
- Não morro. Que é para não te deixar sozinha.
- Toda a gente morre, Ari.
- Eu não.
 
 
     Cruz, Afonso. Jesus Cristo bebia cerveja. Carnaxide: Santillana Editores, 2012, pp 104 - 105.
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- Olha, trouxe bolinhos de canela - diz Rosa.
  Ari está com os olhos cheios de montanhas e flores da Primavera e não ouve nada, pois os olhos repletos de coisas dão cabo do que se ouve.
- Trouxe bolinhos...
  Ari levanta-se e sorri, pega em três ou quatro de uma vez e empurra-os para dentro da boca.
- Não sabem a canela.
- Estes não sabem.
- Não há bolos de canela que não sabem a canela.
- Claro que há. Tal como há pessoas velhas que morrem novas e há horas que passam em segundos e há sonhos que acontecem quando estamos acordados, há bolos de canela que não sabem a canela.
(...)
- Queres acasalar? - perguntou Ari.
  Rosa acha que "acasalar" é uma palavra esquisita.
- Isso é por trás?
- Como é que preferes?
Rosa não sabe responder e diz:
- Gosto quando está sol.
 
 
  Cruz, Afonso. Jesus Cristo bebia cerveja. Carnaxide: Santillana Editores, 2012, 153 - 154.
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13/07/13

 
 
(...) só pensavam em dinheiro, nada sabiam de amor, comentava Rhema, eu desculpava-os, era o meu povo, a vida não os ensinara a seguir o amor, só o dinheiro, desejavam reencarnar numa casta superior, aquela que eu desprezara, não contemporizavam com frangues exóticos, olhavam para mim com o olhar de piedade dos ricos, o mesmo que inúmeras vezes vira soltar dos olhos do meu pai, eles, mais pobres do que eu, carecidos de um grande amor, o que nos sustentava era o arroz e o caju, tínhamos clientes certos no mercado de Pangim, abastecidos pelos furgões, o Augusto não vendia o arroz e os cajus a mais ninguém, orgulhava-se dos seus clientes de Pangim e não lhes dava troco quando lhe perguntavam o que fazia ali naquele sertão numa comunidade sem nome, isolado, no meio de gente rude, o Augusto levantava a mão, sorria com um sorriso bonito, nada dizia, eles percebiam, os portuguses tinham sido expulsos em 1961, o Augusto quisera ficar, isolara-se, longe das cidades, apiedavam-se dele, passavam-lhe a mão pelo cabelo, cumprimentavam-no à europeia (...) o Augusto abria as mãos, dizia, é aqui que me sinto bem, ao pé da minha mulher, e apontava para mim, acocorada à entrada do nosso casinhoto de taipa, descascando feijão, quando a Sumitha tinha dois anos um goês de Ribandar ofereceu uma grossa quantia pela menina, o Augusto expulsou-o a murro do nosso terreno (...) no final delirava, chamava-me Rosa, Rhema presumiu ser o nome da mãe dele, esclareci-lhe, não, era o nome da mulher que Augusto deixara em Lisboa, Rhema percebera quando Xavier a procurara recentemente, dizendo-lhe ter chegado a Goa um filho do Augusto, Rhema nunca desconfiara, nunca o marido lhe dera um indício de ter sido casado, amou-me muito, disse Rhema, tudo trocou por mim, conforto, dinheiro, cidade, crença, mas não imaginei que também tivesse trocado a mulher legítima pelo meu amor...
 
 
   Real, Miguel. O Feitiço da Índia. Alfragide: Pub. Dom Quixote, 2012, pp 320 - 322.
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12/07/13

 
 
  Os empregados do Churchill Palace Hotel desculpavam-se, Bombaim era um estaleiro, modernizava-se, os novos arruamentos ganhavam passeios, candeeiros de luz eléctrica, portarias que garantiam o asseio, polícias de farda creme, bombas de água para incêndios, caixotes de lixo municipais, mas eu assemelhava Bombaim a uma cidade sobrevivente de um terramoto ou de uma guerra civil, Hassan mostrara-me os subúrbios, vislumbrava tendas cinzentas, filas de tendas, como um acampamento militar, pressupunha que cada tenda albergaria uma família (...) as faces resignadas dos eternamente pobres, os filhos passivos presos entre os panos das pernas, seres condenados ao opróbrio e à miséria, Hassan parava, eu olhava demoradamente, contemplando aquele bando de maltrapilhos que, no campo ou na cidade, há três mil anos assim vivia, manipulado por rajás, marajás, brâmanes, samorins, reinetes, republicanos, socialistas, capitalistas ou comunistas, há três mil anos nasciam pobres, viviam miseravelmente e morriam desgraçados, amaldiçoados pelo destino. Insone, saía à noite do hotel, buscava lugares frequentados por europeus, a mole imensa neogótica de pedra e mármore da Estação Central, os imóveis da universidade, o vão da Porta da Índia, onde chusmas emporcalhadas de indianos adormeciam todas as noites, cobertos por cartões de supermercados europeus (...) arrumavam-se uns contra os outros, buscando no corpo alheio o calor interior que em cada um fenecia, trocando sémen e suor, recalcando no sono a vida malbaratada, bandos de crianças andrajosas invadiam as ruas pela manhã, pés nus, trapos rotos, narizes ranhosos, olheiras de adulto, mãos negras de fuligem e carvão, ofereciam-se aos brancos e indianos proprietários de vendas e lojas, faziam tudo, recados, arrumações, carregos, cosiam peles ensanguentando as mãos, transportavam tijolos, carvão, pranchas de teca do triplo do tamanho do seu corpo, batiam punhetas e faziam broches, levavam e iam ao cu em troca de um pão com goiabada, um púcaro de café, um prato de arroz com caril, uma coxa de frango tandoori, assaltavam casas e lojas, massacravam cães de rua, se preciso matavam, regressavam às famílias à noite, mortos de cansaço, arrastavam dez rupias na mão fechada com que a mãe compraria peixe e arroz para a família de sete filhos e pai defunto; crescidos estendiam uma esteira ou um pano velho de sari na rua, levantavam uma venda, vendiam pincéis de barba roubados durante a noite, giletes usadas, esferográficas de tinta seca, borrachas desgastadas, manuais escolares sublinhados, furtados aos armazéns do Estado (...) um motorista zanga-se comigo, eu zango-me com ele, viro-lhe as costas, zango-me com Bombaim, cidade extremada...
 
 
   Real, Miguel. O Feitiço da Índia. Alfragide: Pub. Dom Quixote, 2012, pp 114 - 116.
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  O Pacaça pôs mais café ao lume, a primeira vez que fui ao munhungu do Bairro Operário era o velho Jacques que tomava conta daquilo, foi na véspera de fazer doze anos, o meu pai escolheu uma preta e disse-lhe, dou-te o dobro do que vales para me transformares este rapaz num homem. Eu já sabia ao que ia e nos últimos dias não tinha pensado noutra coisa mas quando me vi no quarto com a preta fiquei tão assustado que não sabia onde me meter. Passado um quarto de hora o meu pai bateu à porta, isso vai ou não vai. Tive medo que a preta contasse ao meu pai que eu nicles pataticles, mas a preta respondeu como se estivesse afogueada, é mais homem do que muitos de barba feita, tem a quem sair, disse o meu pai satisfeito do outro lado da porta (...). Ficámos no quarto, eu deitado na cama a olhar para uma gaiola de papagaios que estava pendurada no alpendre e a preta a pintar as unhas e a contar-me histórias do quimbo onde vivia antes de o velho Jacques a ter descoberto e trazido para a cidade.
(...) Acordei com o meu pai a bater à porta. Nem vendo a minha cara ensonada desconfiou, um homem também se cansa, disse. No caminho para casa deu-me os conselhos que um pai tem de dar a um filho, os mesmos conselhos que mais tarde dei ao meu filho...
(...) Depois de me ter dado estes conselhos o meu pai nunca mais tocou no assunto e se se cruzava comigo no munhungu fingia que não me via. Era um homem bom, um homem respeitador, disse o Pacaça comovendo-se, um homem que me ensinou a respeitar toda a gente, brancos ou pretos tanto fazia. Era um homem dos que já não se fazem.
 
 
  Cardoso, Dulce Maria. O Retorno. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2012, pp 202 - 204.
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11/07/13


 
  Sundu ia maié, sundu ia maié, puta que a pariu. Vou dar pontapés em todas as portas até chegar ao pátio do recreio, a puta da professora mandou-me para a rua com uma falta a vermelho mas eu vingo-me, quero lá saber que as contínuas refilem, ó menino isto aqui não é a selva, não é como lá de onde vens, aqui há regras, sundu ia maié, estamos a avisar-te menino, abro o peito e dou um pontapé noutra porta, conhecem-me de algum lado, olho as velhas bem de frente para lhes mostrar que não tenho medo (...) passo pela cantina e dou um murro no carro dos tabuleiros, só me falta bater com a mão no peito para verem que acompanhava mais com os macacos do que com leões, as velhas até saltam com o estrondo que o carro dos tabuleiros fez, se querem dizer mal dos retornados vou dar-lhes razões.
  A puta da professora, um dos retornados que responda, como se não tivéssemos nome, como se já não bastasse ter-nos arrumado numa fila só para retornados. A puta a justificar-se, os retornados estão mais atrasados, sim, sim, devemos estar, devemos ter ficado estúpidos como os pretos, e os de cá devem ter aprendido muito depois da merda da revolução, se for como em tudo o resto devem ter tido umas lindas aulas.(...) um frio do caralho cá fora, fecho o blusão, acendo um cigarro, meto-me no meu canto, se as contínuas não querem maca nem se atrevam a passar por aqui.
  Se não há pão dêem-nos brioches, o Sr. Acácio maldoso com os olhos nas mamas da D. Juvita. Dizem que o Sr. Acácio e a D. Juvita têm um caso e que se encontram na casa das máquinas ao lado da piscina (...). Também dizem que a D. Ester encomendou um trabalho à preta Zuzu para que o Sr. Acácio deixe de olhar para as mulheres. A preta Zuzu tem fama de fazer uangas e de lançar xicululos tão fortes que há gente que faz figas quando passa por ela. (...) a preta Zuzu não é grande feiticeira, o Sr. Acácio continua a andar atrás das mulheres...
   A puta de matemática pôs os retornados na fila mais afastada das janelas (...). Um dos retornados que responda, a puta nunca diz os nossos nomes, um dos retornados que responda, era o que faltava, nunca abro a boca, o retornado da carteira do fundo que responda, insistiu a gaja, estava mesmo a querer farra. Custa assim tanto decorar o meu nome, se me chamasse Kijibanganga ainda tinha desculpa mas Rui, porra, é um nome fácil (...). Mas não, o retornado aí do fundo que responda, é que nem que me tivesse arrancado as unhas e os dentes falava...
 
 
Cardoso, Dulce Maria. O Retorno. Lisboa: Edições tinta-da-china, 2012, pp 139 - 141.
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10/07/13

 
 
 
Continuavas sem roupa, atrás de mim. "Senta-te", pediste, "senta-te que eu sento-me também."
  E então sentaste-te e cruzaste a perna esquerda sobre a perna direita escondendo tudo o resto. Agora eu podia observar um corpo branquíssimo, tão branco que se percebia o delta de veias arroxeadas na barriga, nos braços, pelas pernas abaixo. Os raros pêlos dos braços e das axilas e das pernas eram avermelhados. Ficaste para ali, acendendo e chupando cigarro após cigarro, sem falar, o olhar vagamento atento, pousado que estava na janela em frente, de vez em quando olhavas para mim, também vagamente, até que disseste "gosto de estar à vontade quando estou em casa e o meu estar à vontade é estar sem roupa, sem sapatos, sem nada. Gosto de trabalhar assim, sem roupa. Não te importas de me ver assim, pois não?" e eu "mas por que é que me abriste a porta? Não era preciso. Eu acabava por ir-me embora..." (...) Os teus olhos azuis, aguados, cintilavam como cintila a folha de água ao receber algum raio de Lua, eram frios e penetrantes os teus olhos, desse olhar que tanto podia agasalhar como esfriar todo e qualquer sentimento.
  Oiço agora o barulho produzido por uma torneira com água a correr, oiço um fechar de gaveta e oiço outra porta a abrir "Está mais alguém cá em casa, não está?", perguntei e queria que a minha pergunta parecesse muito desinteressada e prática! Uma pergunta de ordem prática. Tão prática que não merecesse resposta. Mas tu, olhando para mim por entre o fumo azulado do cigarro e desenhando uma espécie de sorriso entre lábios, deixaste escapar qualquer som que percebi com muita dificuldade "sim, é verdade, está mais alguém cá em casa...".
  Olhámos neste exacto momento na direcção da porta da divisão onde nos encontrávamos (...) e tu "anda cá, João, quero apresentar-te esta minha amiga de sempre, já temos falado nela, não é? Hoje veio visitar-me!".
  Um homem ainda muito novo avançou sem sobressalto. Trazia uma caneca na mão direita e a mão esquerda segurava um pão entreaberto (...). Olhou para mim "olá, sou o João, vivo aqui há já bastante tempo".
  E eu "ah, sim?".
  E ele "quer um café aguado?".
  Tu continuavas sem roupa, precisamente na mesma posição (...) E eu levantei-me sem olhar. Olhei para o teu olhar azul que depressa se desviou do meu intenso olhar.
  "Desta vez, percebi!", disse-te, "vou embora. Não esperarei mais pelas tuas chegadas nem pelas tuas partidas."
  Inquietaste-te "mas, que se passa?".
  E eu "nada! nada!".
 
 
    Carvalho, Cristina. Marginal. Lisboa: Planeta Manuscrito, 2013, pp 107 - 109.
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  Um dia segui-o. Pobre Bé! Fiz com que ele julgasse que eu tinha ido trabalhar. Era já muito tarde, umas onze, meia-noite, nem sequer me interessava as horas que eram, eu tinha gasto a noite naquilo, eu queria espiá-lo, queria saborear essa espécie de arrepio de conhecer o seu lado de homem em desespero, de homem sem mulher mas com mulher. Era Junho. Muitas pessoas passeavam no paredão, uns para cá, outros para lá, namoradas e namorados, casais muito compostos que aspiravam o ar do mar e se sentiam benzidos e abençoados por morarem em tão distinto local, por serem tão sérios, tão casados, tão singelos e unidos. Jamais lhes passaria pela cabeça que havia outros homens e que havia outras mulheres e que havia muito mais coisas para se fazer nesta vida que não fosse sempre esta mesma vida, esses arremedos de responsabilidades incolores, insípidas e inodoras. Muitos tinham um cão que os acompanhava. Muitos donos acompanhavam os seus cães. Para a frente, para trás, para a frente, para trás. Desconsoladamente. (...) dia e noite, dia e noite, dia após dia, noite após noite, até que um dia todos morreriam e todos dali desapareceriam.
(...) Pela esplanada passou uma ronda de polícias que a todos olhou de esguelha. Ainda pensei que o meu sogro os tivesse ali mandado à minha procura, mas depressa desviei o pensamento porque ideia mais idiota não podia ser. Como é que ele iria saber? Como é que ele iria desconfiar que eu estava ali a tomar fôlego e a fazer tempo para poder espiar, o mais à vontade possível, as traições do seu filho? A esta hora da noite estaria ele, o meu sogro, a lavar os dentes na casa de banho do seu quarto, com os pés enfiados nuns chinelos e já vestido de pijama. A minha sogra estaria na cama toda besuntada de cremes, limando as unhas ou fazendo deslizar o olhar por todas as esquinas do tecto (...)
  Do sítio onde eu estava via perfeitamente o átrio principal do salão de entrada com muita gente a conversar e também vi Bé encostado a uma das colunas centrais. Lá estava ele a fumar um cigarrito, a olhar para todos os lados (...). Eram altas, louras e lindas e ainda hoje me lembro do cheiro do seu perfume que marcou indelevelmente e para sempre as fronhas das almofadas...
(...) Portanto, tudo o que eu pudesse imaginar podia não estar a acontecer, podia não ser verdade. Imaginei-o, sim, vezes sem conta na nossa cama com elas e isso até me consolava, no fundo eu até gostava dessa ideia. Por várias razões e a principal razão era a razão dele.
  Pois é isso que eu digo: eu até lhe desculpo as putas, coitado! E percebo-o! Percebo!
 
 
  Carvalho, Cristina. Marginal. Lisboa: Planeta Manuscrito, 2013, pp 66 - 69.
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- Ouve, Kate. Pára de procurar. Alguns de nós têm a necessidade de ir embora. É essa a nossa natureza.
- " and I followed the smell of the panther" - disse ela baixinho.
- Há coisas que não deixamos para trás, o nosso cão, alguns livros. Mas deixamos tudo o resto.
- Mesmo aquilo que amamos?
- Em especial aquilo que amamos.
- Eras capaz de me deixar?
- Sim.
Ela fechou os olhos. Estava nela também, embora não gostasse de pensar nisso. Era a sua natureza.
- Não se eu te deixar primeiro.


  Pereira, Ana Teresa. A Pantera. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2011, p 79.
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09/07/13



- É verdade que vais deixar o teatro?
- Sim.
- É difícil de acreditar.
- Quero uma vida tranquila.
Não, não é isso, pensou Kate. Não pode ser assim tão simples.
- O inferno é o que está escondido.
Ele ficou pensativo por momentos.
- Tem algo a ver com os demónios.
- Os teus demónios.
- Sim.
- E os das personagens.
- Chegamos a um ponto em que já não é possível separá-los.
- Estás com medo?
- Estou cansado.
- Estás com medo?
- Algumas vezes fico aterrorizado.
Era uma sensação que ela conhecia bem. Nos últimos anos, quando tentava escrever. Quando percebia que aquilo em que estava a trabalhar há meses não era um livro. Então o terror chegava. E separava-se lentamente de si mesma, e ficava a ver-se enlouquecer.
- Eu sei alguma coisa de demónios.
- Que idade tens?
- Fiz trinta e quatro o mês passado.
Ele ia começar a dizer qualquer coisa mas mudou de ideias.
- Pareces muito mais nova.
- Eu sei.
Mas não o sentira no dia do aniversário. Passara a tarde deitada na cama, a ver filmes antigos, filmes a preto e branco. E à noite fora a um pub do outro lado do rio, sozinha, e bebera quase até à inconsciência.
 
  Pereira, Ana Teresa. A Pantera. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2011, pp 17 - 18.
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03/07/13

Acerca de... ( XVII )


               " Forte o reencontro dos dois reinos... "
 
 
   Este pequeno livro começa com um jogo singular: o pólo dos afectos, celebrado nas dedicatórias, e o dos desafectos que os primeiros versos anunciam. Com efeito, as dedicatórias, talvez pelo facto de a autora destas linhas conhecer os afectos do autor, funcionam como marcações que nos informam sobre a intencionalidade textual: a representaçao de um mundo interior e intimista.
   Porém, este não é um sujeito lírico "tradicional", que expressa a sua angústia e se deleita nessa expressão: este é mais um sujeito enunciador que "informa sobre" o mundo à volta, em monologante diálogo com um interlocutor, pressentido, convocado, mas não manifestante. Estranhamente, porém, aproximando-se essa enunciação da de uma voz narrante:
 
Tinha pensado em fechar a porta.
Em trancar-me por dentro. A mim e à casa.
Ou talvez à vida - quem sabe, afinal,
deste jogo as indistinções mais frias?
Tinha pensado tanta coisa: que não
gosto de gente que fala alto,
daquela que corre de olhar vazio,
da que tece o lucro de suas ações
em torno de ações sem lucro, enfim,
tudo isso tinha eu pensado... (...)
 
   Desde um título que causa estranhamento - Gente Dois Reinos (junção de palavras que não produz expressão significante)-, logo de início se pressente essa dificuldade de equilíbrio entre o querer arrumar as ruínas do passado, qual "anjo da história" (1), encaixotando-o, e a circunstância de esse passado se impor na sua consciência e a entrar "porta adentro"; entre o voo da imaginação e o jogo da realidade que a existência impõe; entre o vivido e a sua memória que, para funcionar tem de ir "à busca de um tempo perdido" temperada por uma imaginação esquizofrénica, no sentido de Gilles Deleuze e Fálix Guattari (2), que encena a cisão do eu, multiplicando-o temporalmente, e  espacialmente, ao mesmo tempo que intenta a aproximação do "mil planaltos" da consciência humana. Tanto a imagem da porta quanto a do retábulo acentuam, na primeira parte, "Elementos", a circunvalação de um eu cindido: a imagem da porta - inicial, insidiosa e obsidiante - dispersa-se por todos os trechos do percurso de reconhecimento interior em que o sujeito assume a partilha ora entre um eu criança e o seu "duplo", ora entre "eu de hoje" e o "eu de ontem" (I/7) que entram em interlocução com o eu analista, afinal o sujeito enunciador, embora saibamos que "forte o reencontro daquilo que permanece" (II). Em todo o caso, a porta é ainda elemento que sinalizando defesa e protecção, sugere também abertura a outros cenários (inclusive o genesíaco, tão intenso no poema I/3) que constituem o modelo de um devir que é narrado, desde uma "busca uterina", para a qual, no entanto, o enunciador sugere a sua inaptidão (sempre por aquele outro interlocutor não manifesto, mas claramente o outro eu):
 
(...)  Mais tarde, muito
mais tarde, acusar-me-ias de inaptidão,
de incapacidades várias e envenenamentos
de uma narrativa há muito condenada;
 
   A memória dinamiza esse percurso rememorativo, tanto a do vivenciado quanto a do imaginário cultural, particularmente literário (com Proust disseminado pelo texto, também por via de Philippe Besson, mas ainda Frei Jerónimo Baía, Miguel Torga, Antonio Machado, Antonio Carlos Secchin), e a do imaginário histórico em que a figura de Dom Pedro II parece surgir como exemplo de desconcerto da moral e da ética na exposição das feridas históricas, seja pela sua existência política (a destituição e desterro do irmão, D. Afonso VI, a primeira usurpação) seja pela relação pessoal, familiar, afectiva (o casamento com a cunhada, Dona Maria Francisca de Sabóia, considerada a segunda usurpação), a gerar a intermitência da dissolução dos mapas morais e éticos:
 
 
(...)     Pedro com os cabelos revoltos, a mochila
a descair, as palavras umas atrás das outras; Francisca atenta
 
na sua dúplice paixão, as sílabas mitigadas, um agradecido
gesto ante a lealdade que continuamente vou tecendo, para lá
de tanta intermitência. Sonho a prontidão de um sonho imenso,
um território onde o verde irrompa e se dissolva numa qualquer
extensão de mim, indissolúvel luz a fincar presença na pavorosa
dissolução dos mapas.
 
 
   Longo poema em duas partes, a representarem os dois reinos elementares da consciência - o vivido e o imaginado, o privado e o público, o sensível e o histórico - que constroem a epopeia de um diálogo monologante entre um eu e o seu "duplo", este Gente Dois Reinos desafia a imaginação do leitor também na leitura da associação a estabelecer entre as partes: enquanto "Elementos" se compõe de dez partes (poemas?) que, em síntese, visam o complexo para nele buscar o veio da harmonia apenas para depois tentar o simples (I/5), nos quatro segmentos poemáticos de "Reinos" a lingagem ultrapassa a densidade existencial para ganhar em dimensão que convoca a vigília histórica. Por ela modalizando os meandros da existência.
 
 
(1) Cf. Walter Benjamin. "Sobre o conceito da História" (1940). Magia e Técnica, Arte e Política. Obras Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
(2) Gilles Deleuze e Félix Guatari. Mil Planaltos: Capitalismo e Esquizofrenia - Vol 2. Lisboa: Assírio e Alvim, 2008.
 
 
  Inocência Mata in Gente Dois Reinos de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 7 - 9.
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Acerca de... ( XVI )


(Nota - o excerto que se segue, postado aqui com autorização do seu autor, é parte integrante de um mail. Esse mail, com a escrita cuidada - como aliás é hábito - de um poeta que tão bem conhece todos os pormenores relacionados com os poemas longos, leva a cabo uma análise clara e atenta dos aspectos formais de Gente Dois Reinos. É evidente que outros mails recebi relativos ao livro em questão, mas apenas este desenvolve, rigorosamente, um tema que a crítica oficial raramente refere. )
 
 
 
 
" (...) Entre o mais, surpreendeu-me a arrumação dos textos no poema maior e ainda mais as partes na sua ligação, a segunda parte surge com violência na arrumação do poema porque, tratando de outro assunto, o continua. Jogou na maior dificuldade e resultou: a união dos opostos - a que o título assintáctico não é estranho - no discurso, no tema, mas não no que de si emana dele. Conheço os problemas dos poemas grandes, dos que tenho escrito e publicado e dos que tenho deitado fora ao longo dos anos por falta de qualidade ( tantos como os editados, três). E esses problemas, a unidade entre as estâncias, digamos assim, à falta de melhor definição, o desenvolvimento do poema sem arrastamentos de texto, a coesão do poema com o feito final que, à primeira vista, poderia parecer vir em contra-mão mas que lhe dá o fim que um poema longo exige, o atrevimento saborosíssimo de inovação da parte II, Reinos, esses problemas que conheço, dizia, cumpre-os o Victor com mão segura, além da substância do poema e da sua linguagem... "
 
 
                                                                       Nuno Dempster   ( inédito )
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01/07/13

Acerca de... (XV)



            "  Por uma estética do exílio  "

   A Irresistível Voz de Ionatos, de Victor Oliveira Mateus, é um livro que se lê de uma assentada, tanto pelo galope seguro com que o texto nos conduz, quanto pela estrutura com que foi concebido.
   São vinte e sete poemas, ou vinte e sete seções de um só poema, que têm como cenário uma ilha ( ou ilhas ) da Grécia, e, por motivo central, uma evocação amorosa ( ou a evocação sucessiva de uma falta ) em que se vão tecendo imagens e considerações sobre a natureza do desejo, do tempo, da morte e da própria poesia. Como nas óperas de Wagner, certos temas aparecem e reaparecem sutilmente associados a diferentes imagens, deixando-nos a intuição de que seu significado mais profundo, embora se intensifique, nos escapa. 
 
 
(...) Ilha para lá do vazio, da felicidade imitada,
dos escombros: terra finalmente alcançada com o teu
braço sobre os meus ombros. Nenhum mal a poderia
já extinguir como marco nunca havido, nem a persistente
 
fragrância a si própria acrescentada de sêmen e saliva
- de nós húmidos rastros - no abandono dos cômoros, nem
tão-pouco as terríveis perdas, que nas cidades fervilham
em correria inóspita e vã, parecer por nós recusado
quando à ilha havíamos chegado naquela extrema manhã.
 
 
   Assim começa o livro, insinuando uma subjacente narrativa que se irá construindo e consumindo conforme nos familiarizamos com suas idas e vindas. E a ilha, com suas luzes e destroços, com seus bares atarefados e seus pescadores, com seu relevo e o branco compacto de suas casas, se vai amalgamando à sensação de perda, ao perdedor e ao perdido:
 
(...) Tenho saudades
do ritual dos peixes, do rumor
inconsolado da brisa a soar
mansa no abandono dos búzios,
do emaranhado das algas
a envolver-nos a prontidão
dos passos. Tenho saudades
de mim nesses tempos,
quando não tinha saudades.
 
   Aqui e ali, surgem composições menos reflexivas e de maior carga confessional, como em:
 
 
Nunca soube lançar o pião
como os rapazes no terreiro,
entre os contentores: aprendizes
de ladrões, de proxenetas,
 
arrumadores. Nunca soube
lançar o pião. Nem puxar-lhe
o cordel entre os dedos
ou içá-lo, rodopiante, na palma
 
da mão, acima do solo,
conspurcado e mudo. Lancei
a minha vida, os meus
anseios. E foi tudo.
 
   Ressaltemos que Victor, como Nerval ou Rimbaud, não parece conceber distinção de fato entre a poesia e a prosa. Ou melhor, não concebe diferenças de gênese entre uma e outra forma de expressão literária do " princípio poético " - para usar aqui o conhecido nome que deu Edgar Poe a essa súbita elevação, essa comoção de que somos tomados diante da obra de arte.
   Seus poemas de nada se desincubem, recuperando atribuições quase esquecidas pela poesia contemporânea. Seus versos descrevem, narram, comentam. E o fazem afastando-se tanto do minimalismo e da sintaxe nominal, tão caros aos nossos dias, quanto da mera poesia didático-discursiva. Assim também que, não raro, o poeta intercale interjeições, interrompa-se, reformule idéias e imagens, quebre frases em dois versos ( ou mesmo em duas estrofes ) sem incorrer no virtuosismo vazio ou na hesitação de estilo.
   Por vezes, o efeito de sua escrita jaz na simplicidade do recorte:
 
Azul que em azul te desdobras.
Cerco de baías. Moldura de espuma.
 
Noutras, é obtido pela inserção explícita de expressões comparativas ou de vaguidão em suas analogias:
 
A mulher da loja em frente traz consigo
algo das antigas deusas. Das possuídas
sibilas. (...)
 
   Dito melhor: Victor escreve no limite entre a poesia e a prosa, e nos faz crer que o faz sem perigo - quando, nesse perigoso limite, muitos poetas de diversos calibres se têm perdido. Produzindo muitas vezes prosa poética, que apenas da forma usual da poesia se apropria, assume certo sabor clássico, como em:
 
                                              ( ...) enquanto a impreterível
presença das pontes vinca este doce gorjeio que, sempre
em nós acrescentado, impedir não tentamos nem podemos.
 
   Porém, à revelia das inversões sintáticas e do vocabulário, o resultado soa natural. Como se o poeta pensasse alto e no ritmo que as palavras já trazem consigo.
   Borges, que também ignorava distinções genéticas entre a prosa e a poesia, já dizia que o tempo lhe ensinara que as melhores metáforas são as mais familiares - a morte e o sono, o crepúsculo e a velhice... Se concordamos com ele, concordaremos também com Victor Oliveira Mateus na eleição de sua ilha como imagem atemporal da distância, da perda, do exílio. Distância voluntária, e talvez segura, na qual pode ele retomar temas da tradição sobre os quais, contudo, sempre há o que ainda ser dito. Exílio em que pode exercitar seu estilo fluido e sincrético, a despeito das precárias e provisórias noções do que seja atual ou antigo.
 
 
     Cláudio Neves, in A Irresistível Voz de Ionatos de Victor Oliveira Mateus. Fafe: Editora Labirinto, 2009, pp 41 - 43.
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