10/07/13

 
 
 
Continuavas sem roupa, atrás de mim. "Senta-te", pediste, "senta-te que eu sento-me também."
  E então sentaste-te e cruzaste a perna esquerda sobre a perna direita escondendo tudo o resto. Agora eu podia observar um corpo branquíssimo, tão branco que se percebia o delta de veias arroxeadas na barriga, nos braços, pelas pernas abaixo. Os raros pêlos dos braços e das axilas e das pernas eram avermelhados. Ficaste para ali, acendendo e chupando cigarro após cigarro, sem falar, o olhar vagamento atento, pousado que estava na janela em frente, de vez em quando olhavas para mim, também vagamente, até que disseste "gosto de estar à vontade quando estou em casa e o meu estar à vontade é estar sem roupa, sem sapatos, sem nada. Gosto de trabalhar assim, sem roupa. Não te importas de me ver assim, pois não?" e eu "mas por que é que me abriste a porta? Não era preciso. Eu acabava por ir-me embora..." (...) Os teus olhos azuis, aguados, cintilavam como cintila a folha de água ao receber algum raio de Lua, eram frios e penetrantes os teus olhos, desse olhar que tanto podia agasalhar como esfriar todo e qualquer sentimento.
  Oiço agora o barulho produzido por uma torneira com água a correr, oiço um fechar de gaveta e oiço outra porta a abrir "Está mais alguém cá em casa, não está?", perguntei e queria que a minha pergunta parecesse muito desinteressada e prática! Uma pergunta de ordem prática. Tão prática que não merecesse resposta. Mas tu, olhando para mim por entre o fumo azulado do cigarro e desenhando uma espécie de sorriso entre lábios, deixaste escapar qualquer som que percebi com muita dificuldade "sim, é verdade, está mais alguém cá em casa...".
  Olhámos neste exacto momento na direcção da porta da divisão onde nos encontrávamos (...) e tu "anda cá, João, quero apresentar-te esta minha amiga de sempre, já temos falado nela, não é? Hoje veio visitar-me!".
  Um homem ainda muito novo avançou sem sobressalto. Trazia uma caneca na mão direita e a mão esquerda segurava um pão entreaberto (...). Olhou para mim "olá, sou o João, vivo aqui há já bastante tempo".
  E eu "ah, sim?".
  E ele "quer um café aguado?".
  Tu continuavas sem roupa, precisamente na mesma posição (...) E eu levantei-me sem olhar. Olhei para o teu olhar azul que depressa se desviou do meu intenso olhar.
  "Desta vez, percebi!", disse-te, "vou embora. Não esperarei mais pelas tuas chegadas nem pelas tuas partidas."
  Inquietaste-te "mas, que se passa?".
  E eu "nada! nada!".
 
 
    Carvalho, Cristina. Marginal. Lisboa: Planeta Manuscrito, 2013, pp 107 - 109.
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