- É verdade que vais deixar o teatro?
- Sim.
- É difícil de acreditar.
- Quero uma vida tranquila.
Não, não é isso, pensou Kate. Não pode ser assim tão simples.
- O inferno é o que está escondido.
Ele ficou pensativo por momentos.
- Tem algo a ver com os demónios.
- Os teus demónios.
- Sim.
- E os das personagens.
- Chegamos a um ponto em que já não é possível separá-los.
- Estás com medo?
- Estou cansado.
- Estás com medo?
- Algumas vezes fico aterrorizado.
Era uma sensação que ela conhecia bem. Nos últimos anos, quando tentava escrever. Quando percebia que aquilo em que estava a trabalhar há meses não era um livro. Então o terror chegava. E separava-se lentamente de si mesma, e ficava a ver-se enlouquecer.
- Eu sei alguma coisa de demónios.- Que idade tens?
- Fiz trinta e quatro o mês passado.
Ele ia começar a dizer qualquer coisa mas mudou de ideias.
- Pareces muito mais nova.
- Eu sei.
Mas não o sentira no dia do aniversário. Passara a tarde deitada na cama, a ver filmes antigos, filmes a preto e branco. E à noite fora a um pub do outro lado do rio, sozinha, e bebera quase até à inconsciência.
Pereira, Ana Teresa. A Pantera. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2011, pp 17 - 18.
.