31/05/09


" Autogénese"
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Nascitura estava
sem faca nos dentes
cómoda e impura
de não ter vontade
de bater nas gentes.
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Nasce-se em setúbal
nasce-se em pequim
eu sou dos açores
(relativamente
naquilo que tenho
de basalto e flores)
mas não é assim:
a gente só nasce
quando somos nós
que temos as dores;
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pragas e castigos
foram-me gerando
por trás dos postigos
e um fórceps de raiva
me arrancou toda
em sangue de mim.
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Nascitura estava
sorria e jantava
e um beijo me deste
tu Pedro ou Silvestre
turvo namorado
do verão ou de outono
hibernal afecto
casca azul do sono
sem unhas do feto.
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Eu nasci das balas
eu cresci das setas
que em prendas de sala
me foram jogando
os mulheres poetas
eu nasci dos seios
dores que me cresceram
pomos do ciúme
dos que os não morderam;
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nasci de me verem
sempre de soslaio
de eu dizer em junho
e eles em maio
de ser como eles
às vezes por fora
mas nunca por dentro
perfil de uma estátua
que não sou de frente.
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Nascitura estava
e mais que imperfeita
de ser sorte ou dado
que qualquer mão deita.
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Eu nasci de haver
os bairros da lata
do dedo que escapa
dos sapatos rotos
da fome que mata
o que quer nascer
e que o sábio guarda
em frascos de abortos;
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eu nasci de ver
cheirar e ouvir
dum odor a mortos
(judeus enlatados
para caberem mais
mas desinfectados)
pelas chaminés
nazis a sair
de te ver passar
de me despedir
de teus olhos tristes
como se existisses.
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Nascitura estava
tom de rosa pulcra
eu me declinava
vésper em latim:
impura de todos
gostarem de mim.
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Natália Correia In "O Sol nas Noites e o Luar nos Dias - Vol I",
Projornal S.A., Lisboa, 1993, 319-321.
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29/05/09





desarrumo essa estrela que estala nos teus olhos como alma que se
assopra ao sabor da substância das águas que não sendo lágrimas são a
cal suspensa dos lábios. que sendo casa são delírios que o vento arrasa.

que não sendo corpo é a tua asa sobre um relâmpago que é a nossa chegada.

íngreme o destino do instinto das tuas pupilas, onde me desenhas um
sinal. que sendo recente é antigo. próximo da música longe das estátuas.

que te abrasam como palavras cegas... tão dolorosamento cegas.

e se é ao sul que os animais se estendem ao sol estendo-te a memória.

faz-me um nome. um só que seja. só uma sílaba. tu sabes que a morte é
um grito. sufocado e laço. nó que te desato. para que me sejas o
assombroso movimento de um bicho de seda. distância lenta na tua
pele. sempre adiante.

sempre pálpebra delicada... macio dedilhar onde te cuido a favor do
tempo... taça de espuma selvagem onde te declaro mais puro.
e se disser que te amo? como ilha convulsiva?
e se disser que me és MAIOR na orla das marés e que me invades como um
osso fino... que dirás amanhã... quando o dia te fizer carta ou
pássaro?


Isabel Mendes Ferreira In "Os dias do Amor - Um poema para cada dia
do ano" (Antologia organizada por Inês Ramos e prefaciada por Henrique
Manuel Bento Fialho), Ministério dos Livros Editores, Parede, 2009, p 300.
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26/05/09

Pátio interior do Plalácio Ducal de Urbino. obra do arquitecto dálmata Luciano Laurano. Este palácio considerado um dos mais belos de todo o Quattrocento italiano, teria influência directa da obra de Bramante, que nele passou a Juventude.
J. Pijoan, História da Arte - Vol. 5, Publicações Alfa, Lisboa, p 121.
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Primeira Carta
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Considera, meu amor, a que ponto chegou a tua imprevidência. Desgraçado!, foste enganado e enganaste-me com falsas esperanças. Uma paixão de que esperaste tanto prazer não é agora mais que desespero mortal, só comparável à crueldade da ausência que o causa. Há-de então este afastamento, para o qual a minha dor, por mais subtil que seja, não encontrou nome bastante lamentável, privar-me para sempre de me debruçar nuns olhos onde já vi tanto amor, que despertavam em mim emoções que me enchiam de alegria, que bastavam para meu contentamento e valiam, enfim, tudo quanto há? Ai!, os meus estão privados da única luz que os alumiava, só lágrimas lhes restam, e chorar é o único uso que faço deles, desde que soube que te havias decidido a um afastamento tão insuportável que me matará em pouco tempo.
Parece-me, no entanto, que até ao sofrimento, de que és a única causa, já vou tendo afeição. Mal te vi a minha vida foi tua, e chego a ter prazer em sacrificar-ta. Mil vezes ao dia os meus suspiros vão ao teu encontro, procuram-te por toda a parte e, em troca de tanto desassossego, só me trazem sinais da minha má fortuna, que cruelmente não me consente qualquer engano e me diz a todo o momento: Cessa, pobre Mariana, cessa de te mortificar em vão, e de procurar um amante que não voltarás a ver, que atravessou mares para te fugir, que está em França rodeado de prazeres, que não pensa um só instante nas tuas mágoas, que dispensa todo este arrebatamento e nem sequer sabe agradecer-to. Mas não, não me resolvo a pensar tão mal de ti e estou por de mais empenhada em te justificar. Nem quero imaginar que me esqueceste. Não sou já bem desgraçada sem o tormento de falsas suspeitas? E porque hei-de eu procurar esquecer todo o desvelo com que me manifestavas o teu amor? Tão deslumbrada fiquei com os teus cuidados, que bem ingrata seria se não te quisesse com desvario igual ao que me levava a minha paixão, quando me davas provas da tua.
Como é possível que a lembrança de momentos tão belos se tenha tornado tão cruel? E que, contra a sua natureza sirva agora só para me torturar o coração? Ai!, a tua última carta reduziu-me a um estado bem singular: bateu de tal forma que parecia querer fugir-me para te ir procurar. Fiquei tão prostrada de comoção que durante mais de três horas todos os meus sentidos me abandonaram: recusava uma vida que tenho de perder por ti, já que para ti a não posso guardar. Enfim, voltei, contra vontade, a ter a luz: agradava-me sentir que morria de amor, e, além do mais, era um alívio não voltar a ser posta em frente do meu coração despedaçado pela dor da tua ausência.
Depois deste acidente tenho padecido muito, mas como deixarei de sofrer enquanto não te vir? Supoorto contudo o meu mal sem me queixar, porque me vem de ti. É então isto que me dás em troca de tanto amor? Mas não importa, estou resolvida a adorar-te toda a vida e a não ver seja quem for, e asseguro-te que seria melhor para ti não amares mais ninguém. Poderias contentar-te com uma paixão menos ardente que a minha? Talvez encontrasses mais beleza (houve um tempo, no entanto, em que me diizias que eu era muito bonita), mas não encontrarias nunca tanto amor, e tudo o mais não é nada.
Não enchas as tuas cartas de coisas inúteis, nem me voltes a pedir que me lembre de ti. Eu não te posso esquecer, e não esqueço também a esperança que me deste de vires passar algum tempo comigo. Ai!, porque não queres passar a vida inteira ao pé de mim? Se me fosse possível sair deste malfadado convento, não esperaria em Portugal pelo cumpriumento da tua promessa: iria eu, sem guardar nenhuma conveniência, procurar-te, e seguir-te, e amar-te em toda a parte. Não me atrevo a acreditar que isso possa acontecer; tal esperança por certo me daria algum consolo, mas não quero alimentá-la, pois só à minha dor me devo entregar. Porém, quando meu irmão me permiitiu que te escrevesse, confesso que surpreendi em mim um alvoroço de alegria, que suspenseu por momentos o desespero em que vivo. Suplico-te que me digas porque teimaste em me desvairar assim, sabendo, como sabias, que terminavas por me abandonar? Porque te empenhaste tanto em me desgraçar? Porque não me deixaste em sossego no meu convento? Em que é que te ofendi? Mas perdoa-me; não te culpo de nada. Não me encontro em estado de pensar em vingança, e acuso somente o rigor do meu destino. Ao separar-nos, julgo que nos fez o mais temível dos males, embora não possa afastar o meu coração do teu; o amor, bem mais forte, iniu-os para toda a vida. E tu, se tens algum interesse por mim, escreve-me amiúde. Bem mereço o cuidado de me falares do teu coração e da tua vida; e sobretudo vem ver-me.
Adeus. Não posso separar-me deste papel que irá ter às tuas mãos. Quem me dera a mesma sorte! Ai, que loucura a minha! Sei bem que isso não é possível! Adeus; não posso mais. Adeus. Ama-me sempre, e faz-me sofrer mais ainda.
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"Cartas Portuguesas" atribuídas a Mariana Alcoforado, edição bilingue,
prefácio e tradução de Eugénio de Andrade, Assírio & Alvim, Lisboa,
1998, (Primeira Carta) pp 16- 19.
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22/05/09


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                 " POEMA DE NAVIDAD "

En navidad no te olvides de limpiarte las legañas
y de indagar por dentro de los ojos el pulso del mundo.
Limpia las caños de las escopetas,
para que después no pierdas tiempo al disparar.
Respira. Hazte una limpieza de cútis, quítate
todas las espinillas y prepárate para la cena.
Dale una sopa a los pobres, tira piedras a las latas,
acaríciale el pelo al perro, aunque tenga pulgas.
En navidad hasta las pulgas son bienvenidas. Respira.

En navidad dale cuerda a los muñecos, programa las cuerdas
vocales para un playback hospitalario y carcelario.
Reparte canapés entre los vagabundos, los forajidos,
los dictadores acosados. Prepárate para un (a)balanceo.
Respira. En navidad alégrate con tu cuenta a cero,
con el patrón con la bolsa azul al hombro, con los espantajos
cotidianos, con las huelgas de la huelga,
con la mensulidad vestubular en una patada de misericordia.
En navidad sic. Porque en navidad toodos los demonios son buenos.

Por lo menos un dia al año: olvídate del mundo
que se extiende más allá de las fronteras.
Quédate en un viaje detenido, quédate:
detenido - como un sonido que se balancea dentro del cuerpo,
como una piedra que sangra en la piel de un cuerpo callado.
Que ese sea el dia de navidad. Aunque estes obligado
a pagar el peaje de un suicida más que no cree
en la expiación universal de los pecados particulares,
en navidad dame un abrazo y no digas que fuiste de aquí.


Henrique Manuel Bento Fialho In " BALUERNA - Cuadernos del Viajero
(nº 29)", trad. Antonio Sáez Delgado, Estación de Autobuses, Cáceres, 2008.
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18/05/09




           "Atlântico"


Sempre que atravesso o oceano
suspeito que algo se abre na distância
quando cruzo o crepúsculo sem pássaros
é como se começasse a viver de novo
mas uma vida outra/ desprendida
de um passado até agora inexplicável

clemências e longínquas efusões
assomam implacáveis na massa de nuvens
talvez para medir o meu esboço de infinito
e há pobres abalos de uma verdade a toda a prova
um rufar de tambores que perturbaram o descanso
marcas de esperanças ou de tédio

por isso sempre que atravesso o oceano
os ouvidos isolam-me/ a memória zumbe
as hospedeiras oferecem o seu sorriso estudado
e o piloto encarrega-se da minha alma
é como se morresse por instantes
mas uma morte nova/ em equilíbrio


Mario Benedetti In "O Mar na Poesia da América Latina",
Assírio & Alvim, Lisboa, 1999, p 385 (Organização de Isabel
Aguiar Barcelos e Tradução de José Agostinho Baptista).
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17/05/09

"Alone" fotografia de Ivan Bajic (Hungria, 2009).


"Luto"

Os amigos são feridas antigas que crescem
connosco. Feridas que por vezes cicatrizam,
deixando-nos inteiramente contra o vento.
Aconchegados a uma arrastada melancolia,
ingerimos pequenas doses de substâncias letais,
coisas que nos dão cabo do canastro, por assim dizer.
Eis, em suma, o desalento com a vida
que entretanto nos assola, presos
a uma espécie de amargura e de desejo.

Porém, o instinto de sobrevivência
é a ferramenta mais espalhada no mundo.
Toda a gente aprende a utilizar esse recurso.

E não falo do modo como reconhecemos as aves,
as plantas. Ou de como construímos abrigos
nocturnos nas copas das árvores.
Falo simplesmente de uma grande habilidade
para limpar o local do crime:
admitimos sempre que melhores dias virão;
faz parte da nossa essência.
Pois bem, cortámos o alarme agora mesmo.
De quanto tempo precisamos, afinal?


Vítor Nogueira In "Comércio Tradicional", Averno,
Lisboa, 2008, p 32.
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15/05/09

PRÉMIO NACIONAL POETA RUY BELO 2009


GRAÇA PIRES GANHA O PRÉMIO NACIONAL POETA RUY BELO 2009
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COM O LIVRO " O SILÊNCIO: LUGAR HABITADO "
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O referido Prémio será entregue, em Sessão Solene na Biblioteca Municipal
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de Rio Maior, no dia 20 de Junho pelas 11h,30.
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S. João da Cruz traduzido por...

ESPOSA

Aonde te escondeste,
Amado, que me deixaste com tal gemido?
Como veado correste,
Tendo-me ferido;
Saí atrás de ti clamando, mas já tu eras ido.

Pastores, vós que ides
Além pelas malhadas do outeiro,
Se por ventura virdes
Aquele que mais quero,
Dizei-lhe que peno, morro e espero.

Buscando meus amores,
Irei por esses montes e ribeiras,
Nem colherei flores,
Nem temerei feras,
Antes passarei fortes e fronteiras.

PERGUNTA ÀS CRIATURAS

Oh bosques e matas de tanta espessura,
Tudo plantado pela mão do meu Amado!
Oh prado de verdura,
De flores esmaltado,
Dizei-me se por vós ele tem passado!

RESPOSTA DAS CRIATURAS

Mil graças derramando,
Passou por estes soutos com ligeireza,
E para eles olhando,
Com sua figura e destreza,
Vestidos os deixou de beleza.

ESPOSA

Ai quem me poderá curar?
Vem, entrega-te em acto puro e verdadeiro,
Não insistas em enviar
Nenhum outro mensageiro,
Que não saiba o que quero primeiro.

Pois todos os que me vêm visitar,
De ti mil graças vão contando,
E todos acabam por ulcerar,
Pelo que vão balbuciando,
O que em mim se vai finando.

Mas, como podes insistir,
Oh vida, não vivendo onde vives?
Levam-te daqui a partir,
Os dardos que recebes,
Do que do Amado concebes.

Porquê, pois, teres golpeado
Este coração, não o curando,
Já que mo tinhas roubado?
E porquê ires assim deixando,
Todo o saque que vais tirando?

Que meus pesares, por ti, apagados sejam,
Já que nenhum outro os pode desfazer,
E que meus olhos, por fim, te vejam,
Pois és a luz que os faz ver,
E só por ti os quero ter.

Revela-me a tua presença,
Mata-me com essa aparição e formosura;
Olha que toda a doença
De amor, apenas se cura
Com a presença e a figura.

Oh fonte de cristal tão brilhante,
Se nesses teus traços prateados,
Formasses num mero instante,
Esses olhos almejados
Que em mim tenho desenhados!

Afasta-os, Amado,
Que meu voo se inicia!

ESPOSO

Volta, pomba, para meu lado,
Que o cervo magoado
Pelo outeiro aparece
Ao ar do teu voo, e aí reverdece.

ESPOSA

Amado meu, as montanhas,
Os vales solitários e nemorosos,
As ilhas estranhas,
Os rios rumorosos,
O silvo dos ventos amorosos.

A noite sossegada
Aquando do surgir da aurora,
A música silenciada,
A solidão sonora,
A ceia que alegra e enamora.

.........................

Oh ninfas da Judeia,
Enquanto que nas flores e roseirais
O âmbar balanceia,
Ficai onde morais,
Sem quererdes tocar nossos umbrais!

Esconde-te, Amado,
E olha com tua face as montanhas,
Mas nada querendo enunciado:
Observa também as companhas
Da que vai por ilhas estranhas.

............................

Desfrutemo-nos Amado,
E vejamos na tua formosura
O monte e o colado,
Donde brota a água pura;
Entremos mais adentro na espessura.

E logo nas subidas
Em cavernas de pedras entraremos,
Que estão bem escondidas,
Mas ali iremos,
E o mosto das romãs provaremos.

Ali me mostrarias
Aquilo que minha alma pretendia,
E depois me darias
O que me deras noutro dia,
Tu, vida, que eu tanto requeria.

O aspirar do ar,
Do rouxinol a doce cantilena,
O bosque e seu embelezar
Na noite serena,
Com chama que consome e não dá pena.

Que ninguém o olhava,
Aminadab tão-pouco aparecia,
E o cerco sossegava,
E a cavalaria
Ao ver as águas descia.


S. João da Cruz In "Poemas de S. João da Cruz",
Coisas de Ler Ed., 2002, pp 17-35. (Edição bilingue
com tradução de Victor Oliveira Mateus).


Nota - Traduzir é sempre uma tarefa bastante complexa, sobretudo
quando estamos frente a grandes textos de poesia. No caso presente
tenho consciência de ter feito um trabalho bastante discutível, pois
estava frente a um autor cujas obras em prosa dominava (e domino)
razoavelmente. Ainda hoje considero "A subida ao Carmelo" o grande livro
de João da Cruz, por isso sacrifiquei aspectos formais desta poesia à coerência
interna de um pensamento. Nestas questões muitas são as opções e todas elas legítimas!...
Aqui usei, como base de trabalho, a edição do Padre Silvério de Santa
Teresa, C.D. (obras de San Juan de la Cruz, Burgos, 1929-31).
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14/05/09


"Canção do Exílio"

Galápos e Polinésias,
apesar destes trajes
debruados de pudor e pó
e das cargas e trastes
de cárceres cidades,
apesar desses mares
a esbravejarem entre nós
sempre crespos e cruéis,
vos habito assídua
oh chãos céus de paraíso,
meus instintos a pastarem
entre a pureza das pedras
e a solicitude do capim.
A pressa inútil relegada,
eu irmã de tartarugas e lesmas
fruindo a madrugada sem fim.


Astrid Cabral In "Poesia Viva em revista",
Rio de Janeiro, 2008, p 109.
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"Revelação do Vento"


Quietas quedam-se árvores.
A flor, o singular alarde
da discreta vida em surdina.
No entanto, se ágil na tarde
o ar acorda e em pranto sopra
as árvores se põem loquazes:
gesticulam abraçam dançam
sussurram cochicham cantam.
É quando súbito enxergamos
a prisão de troncos e ramos
e a longa noite das raízes.


Astrid Cabral In "Poesia viva em revista",
Rio de Janeiro, 2008, p 11o.
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13/05/09

A poesia e a questão do fingimento.

" Paul Veyne, o grande historiador da cultura, assevera que, desde Petrarca (1304-1374), todos nós, leitores de poesia, nos habituamos a divisar, no recesso de toda obra poética, a voz particular de um ego que expõe publicamente suas dores e alegrias pessoais, historicamente datadas e situadas. A partir daí, ao contrário do que ocorria na Antiguidade, quando era aceita como uma forma de encenação, a poesia lírica passa a ser encarada como confidência íntima. Camões, nosso petrarquista exemplar, colabora para endossar e reforçar o hábito, alertando-nos: "Sabei, pois, que segundo o amor tiverdes/ Tereis o entendimento dos meus versos". Desde então, o primado da voz particular e da subjectividade, que irmana sujeito-poeta e sujeito-leitor, tem sido encarado como verdade inquestionável, uma segunda natureza, indissociável do lirismo confessional. Poesia passa por ser isso mesmo, entrelaçamento de subjectividades, sensíveis e permeáveis, propiciado pela franqueza com que o poeta nos expõe sua subjectividade modelar. Tal franqueza faculta a todos, dos primeiros leitores de Petrarca aos leitores dos poetas nossos contemporâneos, o acesso a esse entrelaçamento, que nos mantém na firme convicção de que estamos fortemente ancorados na realidade (a mesma dos poetas, pois não?), quando talvez estejamos apenas a alimentar a fantasia de que assim seja - ludibriados ou pelo engenho e a arte dos poetas, ou pela força da inércia.
Hoje sabemos (a malícia pós-moderna nos põe a salvo dessa ilusão, embora não nos torne imunes a outras) que nem em Petrarca, nem em Camões, nem em nenhum dos nossos grandes poetas, antigos e modernos, o ego que nos fala em seus versos "retrata" a subjectividade ou a vida privada do cidadão responsável por esses mesmo versos. Hoje preferimos falar em "eu lírico", para contrapô-lo à conjectura de um "eu empírico", e já não exigimos do poeta a franqueza ou a "sinceridade" que dele se esperava, desde os tempos de Petrarca.
(...) A linguagem humana não tem como "dizer" o mundo. Schopenhauer não hesita: "O mundo é a minha representação do mundo", e certa pós-modernidade nos convencerá de que tudo são relatos, tudo são discursos - ficções que variam ao infinito, supostamente no encalço de uma subjacente verdade singular (a verdade do eu ou a verdade do mundo), à qual não temos acessos. Ao proferir "eu", Petrarca, Camões, Hoelderlin - qualquer poeta - já não tem mais como "dizer", com "sinceridade" o que lhe vai pela vida íntima. O que daí provém será sempre simulação, representação figurada, encenação - tal como o fora, entre os antigos, e, ao que parece, nunca deixou de ser. Rimbaud admite: "Je est un autre", ciente de que isso vale para toodos os poetas - os que sabem, como Fernando Pessoa, e os que não sabem que o poeta "finge tão completamente/ que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente".
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Carlos Felipe Moisés
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(Nota - Todas as discussões, francas e despojadas, são enriquecedoras. Não teria chegado a uma série de textos sem uma delas... )
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12/05/09


AVISO: A TROVA MEDIEVAL QUE SE SEGUE CONTÉM PALAVRAS VULGARMENTE
CHAMADAS DE "PALAVRÕES"!
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Elvira Lopez, muito mal sabeis
acautelar-vos com esse peão
que anda convosco e tem a pretensão
de dormir convosco e não entendeis.
Tenho medo que, se ele vos surpreender
algures sozinha e se vos foder,
esse engano nunca comprovareis.
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Ele sabe sempre onde vós jazeis
e vós não sabeis dele vos resguardar
porque abandonais em qualquer lugar
a vossa maleta (1) e quanto trazeis.
Dizei-me ora, Deus vos dê o perdão:
se, de noite, vos foder o peão
em que lugares o procurareis?
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Digo-vos, pois, o que esperar podeis
desse peão que vós trazeis assim,
convosco, por aqui e por ali:
Vós, um pouco, por certo, dormireis
e o peão, se vontade tiver
de foder, foder-vos-á, se quiser
e nunca o que é vosso retomareis.
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Porque vós direis: - Fodeu-me o peão!
E dirá ele: - Boa senhora, eu não!
E com que provas o acusareis?
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Joan Garcia de Guilhade In " Cantigas obscenas de escárnio
e maldizer" (Org. e Pref. de Orlando Neves), Editorial Notícias,
Lisboa, 2004, pp 52-53.
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.(1) A palavra "maeta" (maleta, em português contemporâneo) podia ser
usada para designar o sexo da mulher.
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Joan Garcia de Guilhade - parece provado que este trovador, durante algum tempo tido
como galego, nasceu em Guilhade, povoação do concelho de Barcelos. Viveu nos meados do
século XIII e frequentou as cortes portuguesa e castelhana. É dos mais fecundos e originais
poetas dos cancioneiros. Dele chegaram até nós 54 poemas.
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11/05/09



"Poema 12 do Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama"


O que difere deste e do outro verso
que pus num outro jarro e esqueci
é que este não caiu no jarro certo
- jarro chinês - e não regou o lis.
As rimas não caíram como consta
que do outro jarro caem as que não quis;
tentei, em vão, reproduzir a nota,
não sei se veio sol, se lá ou si.
Alguém andava sobre o meu cavalo,
andava sem vestido e sem viseira:
de tudo quanto vi, sei que não falo;
só falo parte, o espinho da roseira,
que, sendo espinho, fere e maravilha
um cravo ignoto, o verso de outra ilha.


Érico Nogueira In "O Livro de Scardanelli",
Ed. Realizações, São Paulo, 2008, p 47.
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"Poema 10 de Cancioneiro Inglês ou de Sandra Gama"


Orelhas minhas, que joguei na água,
aonde ides para me escutar,
a que salgado, plúmbeo recital
ides nadando assim, com a minha chaga?
Orelhas, auscultai a minha draga
e me dizei como é e como está;
aquela mancha negra, a rodear,
é ave que prediz alguma praga?
" È sempre o mesmo ritmo, seco ritmo,
embalado no mar, no mar molhado,
que não acaba nunca em algoritmo,
que não compassa o que é descompassado;
é som de draga arfante, e entupida,
que traga com o entulho a própria vida."


Érico Nogueira In "O Livro de Scardanelli",
Ed. Realizações, São Paulo, 2008, p 45.
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05/05/09

... gostava das minhas vozes a ecoar a uma só voz no silêncio...


"Reflexos"

Eu sabia das histórias dos jacintos que cresciam nos jardins da casa grande, que, à noite, enquanto eu dormia, velavam os meus sonhos. Porque, em cada madrugada, eles se abriam
para mim num sorriso.

Mas também sabia dos peixes multicores que, dentro do aquário, rejeitavam a sua prisão.
Debatiam-se, nadando violentamente contra o vidro para chamarem a minha atenção. Resolvi
libertá-los e deitei-os a nadar livremente dentro do poço grande.

Mas, um dia, um pássaro entrou violentamente pela janela e pousou veloz sobre os meus
ombros franzinos. Estava ferido e não tinha olhos de pássaro. Eu ainda o tratei mas ele nunca
mais voou. Um dia depois caiu repentinamente morto no chão da sala. Eu conhecia a palavra
morte, mas não sabia o significado da morte.

Sabia ainda que as palavras poderiam ter a cadência que eu lhes quisesse dar. Por isso,
gostava das minhas vozes a ecoar a uma só voz no silêncio das colinas, e ainda me lembro
da doçura das manhãs na aldeia, enquanto fazia desenhos de água nas pétalas dos lírios tão frágeis quanto eu.

Hoje, eu sei mais do que sabia nessa altura. Porém, apenas sinto os reflexos da morte dos jacintos, dos pássaros e dos peixes, que nesta manhã me assaltaram cruelmente, enquanto lá
fora os sonhos já não existem e a casa grande apenas resiste ao tempo...


Piedade Araújo Sol (Inédito).


Nota - agradeço à autora a autorização dada para publicar este texto neste meu blogue.
Para mais elementos consultar o blogue " olhares em tons de maresia "
(http://www.olharemtonsdemaresia.blogspot.com/)
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04/05/09




      "Domingo"


Hoje é o dia dos senhores
e dos sóis em algumas línguas. Noutras
já foi ontem ou será depois, conforme
o cansaço divino sucedeu ou
não ao sétimo dia. Vária
gente irá aos templos ou ao parque
passear o cão. É dia de
visitar o lar de idosos ou de
abastecer a nossa arca
congeladora. Os pais solteiros levam
os filhos a comer pizza e outros
putativos progenitores recuperam
as horas de sono convivialmente
líquidas. O ar das ruas
é mais leve devido à pausa de
domingo. Ao menos hoje acontece
algo de bom em nome de Deus.

Inês Lourenço In " Logros Consentidos", & etc., 2005, p15.
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03/05/09




Cresço no íntimo de tua carne
como fruto túmido,
tombado de um paraíso esquecido.

Em volutas adenso-me
num mar selvagem:
centauro de múltiplas águas
a queimar os muros do teu sonho,
do teu inominado mistério.

Nesse resfolegar de patas e crinas,
desvario de lençóis e adagas,
nos ilimitamos nas sinfonias,
nos adágios tatuados em nossos pulsos.

Eis que do fundo da noite
emerges numa explosão
de ilimitados astros:
cometas a rasgarem tua glande ereta,
coice sobre o meu rosto em vivo êxtase...


Alexandre Bonafim In "Sob o silêncio do anjo",
Ribeirão Ed., Franca-S.P., 2009, p 40.

01/05/09


"burocracia do fim de uma longa amizade"


serve para lhe dizer, senhor
a. n., que depois do que
me fez, levei ao lixo cada objecto
que conservava a sua memória e que
eduquei a cabeça a pensar só em
excrementos sempre que por inércia
me quiser aborrecer com lembranças
do que vivi perto de si. que tolice, a
cabeça prega-nos truques, mas com o
presente estará sanado o vício e o
senhor, de vício, passará a ser um
cidadão livre da minha admiração e
cuidado. vai escrito aos dias vinte
de abril de dois mil e sete e vigora
em território nacional e comunitário
por aplicação directa e no resto do
mundo por força dos acordos tácitos
de quem tem vergonha na cara. no mais,
saiba que este poema o obriga a não
chegar à minha pessoa a menos de
vinte mil metros e a não me dirigir
palavra. com vocação para toda a
vida, este poema não é nada comparado
com a traição de que foi capaz. já penso
em excrementos quando escrevo
estes últimos versos e o meu coração
fecha-se naturalmente a toda e qualquer
ternura da sua amizade

valter hugo mãe In "folclore íntimo", Cosmorama Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2008, p
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