31/07/11

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Tudo estava tranquilo. Enquanto Bifff secava o rosto e as mãos, uma brisa fez tilintar os pendentes de vidro do pagode japonês em miniatura, que estava em cima da mesa. Acordara da sua sesta e fumara o seu charuto da noite. Pensou em Blount e interrogou-se se ele já estaria muito longe. Havia um frasco de Agua Florida na prateleira da casa de banho e ele levou a tampa às têmporas. Estava a assobiar uma canção antiga e, ao descer as escadas estreitas, a melodia ia deixando um eco atrás de si. (...) O relógio da parede marcava 12h17. O rádio estava ligado e ouvia-se um debate sobre a situação que Hitler havia criado por causa de Danzing (...).
Biff atravessou a cozinha em bicos dos pés e foi à prateleira onde havia um cesto com jasmineiros-do-imperador e duas jarras cheias de zínias. (...) Começou a decorar a montra com imenso zelo. No meio do ramo encontrou uma flor esquisita: uma zínia com seis pétalas cor de bronze e duas pétalas vermelhas. A montra ficou pronta e ele saiu para o passeio, para contemplar o resultado final (...).
O céu, negro e repleto de estrelas, parecia bastante próximo do chão. Biff caminhou ao longo do passeio, parando uma vez para empurrar uma casca de laranja para a sarjeta, com o pé. No fundo da rua, dois homens estavam de braço dado. Não se via mais ninguém. O seu restaurante era a única loja aberta.
Para quê? Por que motivo tinha o restaurante aberto durante a noite, se todos os outros cafés da cidade estavam fechados? Faziam-lhe essa pergunta imensas vezes, mas nunca soubera responder. Não era por causa do dinheiro (...).
Mas ele jamais fecharia a porta à noite enquanto estivesse naquele negócio. A noite era maravilhosa. Havia pessoas que, de outro modo, ele jamais reconheceria (...).
Examinou a zínia que tinha posto de lado. Ao segurá-la na palma da mão, na claridade da luz, apercebeu-se de que a flor não era tão rara como ele supusera. Não valia a pena guardá-la. Arrancou as pétalas macias e brilhantes e, quando chegou à última, calhou-lhe "bem-me-quer". Mas quem? Quem é que ele iria amar agora? Ninguém em especial. A primeira pessoa decente que entrasse no restaurante e se sentasse durante uma hora, a tomar um copo. Mas não havia ninguém. Todos os seus amores havia desaparecido. Alice. Madeline e Gyp. Findos. Deixando-o numa situação melhor ou pior. Qual seria? Dependia da forma como se olhasse para a situação.
E Mick. Aquela que, nos últimos meses, vivera estranhamente no seu coração. Teria este amor chegado ao fim também? Sim. Findara. Agora, Mick aparecia no princípio da noite, para tomar uma bebida fria ou para comer um sundae. Tinha crescido. Perdera por completo o jeito infantil. Agora, tinha um porte elegante e delicado. (...) Ele olhava-a e já só sentia ternura. O sentimento antigo desaparecera. Durante um ano, esse amor florescera invulgarmente. Ele questionara-o inúmeras vezes, sem nunca obter esposta. E agora, como uma flor de Verão que murcha em Setembro, esse amor desaparecera. De vez.
(...) Biff estava absolutamente imóvel, absorto nos seus pensamentos. Depois, subitamente, sentiu qualquer coisa despertar dentro de si. O seu coração deu um salto e ele encostou-se ao balcão, para evitar cair. Viu a interminável passagem da humanidade através dos tempos. E viu os que trabalhavam e os que, numa só palavra, amavam. Depois, sentiu uma espécie de advertência, um poço de horror. Encontrava-se suspenso entre os dois mundos. Contemplou o seu próprio rosto reflectido no vidro do balcão à sua frente. A transpiração cintilava-lhe na testa e Biff tinha o rosto contorcido (...) fitava, incrédulo, um futuro de escuridão, de erros e ruína. Encontrava-se suspenso entre a Luz e a Escuridão. Entre a ironia e a fé. Desviou o olhar.
(...) Mas, santo Deus, ele era um homem inteligente ou não? Como é que o terror o conseguia esmagar daquela forma, quando ele nem sequer sabia o que o provocava? Iria deixar-se ficar ali parado, como um palerma completamente apavorado, ou encher-se de coragem e de juízo? Biff molhou o lenço na torneira e levou-o ao rosto tenso e cansado. Lembrou-se de que ainda não tinha recolhido o toldo. Encaminhou-se para a porta, com um passo firme. Quando voltou para dentro, já se encontrava suficientemente recobrado para esperar o romper do sol.

  Carson McCullers in " O coração é um caçador solitário". Editorial Presença,
Lisboa, 2010, pp 351 - 355.
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29/07/11

" o que el verano adquiera relevancia/ en un vi llover y no estás, "


 "La estrella que anuncia cambio de tiempo"

YO no sé qué es más cruel,
ese yérguete que ya es la hora
o que el verano adquiera relevancia
en un vi llover y no estás,
o acaso durante dos horas
esperar que te reflejes
en la iluminación de los letreros,
o que salgas de aquí
de donde no estoy, entonces la torpeza
convertida en la frágil osamenta
donde me convierto en otra.

  Concha García in "Acontecimiento", Tusquets Editores, Barcelona, 2008, p 33.
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" El goce y la satisfacción no son equivalentes. "

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 "Divagación en la almohada"


 UN día de libros en esa casa
cuyos muebles no me dicen nada.
Si idealizo la jornada
se convierte en instante este momento
y subrayo que cualquier frase da sentido
a la velada. Pero no.
El goce y la satisfacción no son equivalentes.
Tengo que verlo. Abrir la cortina,
separarla. Verlos caminar. Quién camina.
Verlos detenerse. Quién hace pausas.
Verme reclinada. Quién se ladea
ante un horizonte tan desdibujado.
Maneras de estar medio sola
ante un mar de otro mundo, si el agua
fuese líquida, si se pudiera una
meter en ese fluir, organizarse.

  Concha García in " Acontecimiento ", Tusquets Editores, Barcelona, 2008, p 79.
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28/07/11

"(...) Mis brazos/ equilibran un anhelo antiguo, "

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 "Otro soplo de vida"

DUERMO a intervalos.
Cuando el don se instala
elijo escogerte. Mis brazos
equilibran un anhelo antiguo,
carecem de foco,
forman un hundimiento preciso
que alegra lo profundo del cambio
y revivo ajena, reconociéndome
en tardes con bancos verdes sin nadie
como un hermoso castigo.

  Concha García in "Acontecimiento", Tusquets Editores, Barcelona, 208, p 109.
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27/07/11

" No a los seres que ofrecen/ su porvenir en un rato. "

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 " Como un Decálogo "

NO hacer lo mismo.
No avanzar en el círculo
para la causa repetida.
No centrarse en el punto
de onde partir siempre.
No al dilema irresuelto
que se derrite en el cuerpo.
No al horario que avanza
en un universo cerrado.
No a los seres que ofrecen
su porvenir en un rato.
No a la mujer repetida,
no al merodeo en espiral,
no a la bocanada de aire
que te vuelca hacia un lado
y deja una tristeza risueña
de recuerdos desangelados.

  Concha García in "Acontecimiento", Tusquets Editores, Barcelona, 2008, p 115.
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   " À espera"


Coleciono perdidos. Tudo serve
aos meus achaques. O uniforme azul,
o beijo partido, a luxúria sem asas,
a menininha de tranças,
o amor/ suspiro na fonte, o punhal turco,
os pombos degolados no fundo do sono,
o tempo repartido em dois:
ontem, Chimène a caminho do pranto,
agora, os netos de Chimène,
a não apagada
pelo mata-borrão (havia lágrimas).
Tudo serve.

A esfinge na febre,
quero decifrá-la; tenho dois corações
num saco de plástico, à discrição do amor,
para o nosso próximo encontro.
Espero-vos, Senhora, de preto,
numa rua de Fez.

  Guilhermino Cesar in "Sistema do Imperfeito & Outros Poemas", Editora Globo,
Porto Alegre, 1977, p 70.
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26/07/11

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 " Retrato fingido "


Esse poeta é um fingidor
finge tão safadamente
que chega a ser furta-cor
para ficar coerente.

E como a roda da vida
não desenrola ninguém
o poeta continua ausente
da vida que ele não tem.

  Guilhermino Cesar in "Sistema do Imperfeito & Outros Poemas", Editora Globo,
Porto Alegre, 1977, p 147.
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25/07/11

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"Seiscentos urubus e uma asa branca"



Seiscentos urubus, ora essa, um espetáculo
real. Os reis amam a tragédia.
Seiscentos urubus e uma asa branca,
corrijo a tempo. Asa branca é contraste
num tamanho cortejo de negrume ideal. Os reis
gostam de brincar nas alturas;
o difícil, naturalmente, não é para nós outros,
peões, salário-mínimo, lixo, estrume dos edifícios.
Seiscentos urubus, uma carga de horrores
a exigir um panfleto.
Mas aparece uma asa, apenas uma
asa branca, e o negrume acabou-se.

  Guilhermino Cesar in "Sistema do Imperfeito & Outros Poemas", Editora Globo,
Porto Alegre, 1977, p 161.
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24/07/11

Maria Lúcia Lepecki (1940 - 2011)


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Morreu hoje, vítima de cancro, a escritora e ensaísta Maria Lúcia Lepecki. Assisti a muitas das suas confe-
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rências, li muitos dos seus trabalhos... Via-a com frequência descendo a rua, acompanhada do marido,
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para a sua caminhada habitual; via-a igualmente num dos cafés onde ambos parávamos. Conversámos duas
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ou três vezes, onde ela me revelou um humor que lhe desconhecia.Certa noite, entravamos nós no café,
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saía ela com o marido...voltámos a falar do Prefácio do "Prisma", ela, então, virou-se para a legítima:
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"(...) não imagina como ele estava, tive de lhe dizer para se sentar... pensei que lhe fosse dar uma coisa.",
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e olhava para mim sorrindo. Rimos os quatro... Morreu hoje Maria Lúcia Lepecki e eu estou triste, muito
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triste mesmo.
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