31/10/09

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      " Tramontana em Lerici"


Hoje, deixasse alguém cair um copo de vidro e
Ele desintegrar-se-ia, deflagrando com tal intensidade
Contra a ressonância do frio ( os sons
Duros, separados e distintos, distanciando-se
Em cadência decrescente) que se juraria
Tratar-se da imitação de vidro a quebrar-se.

Nas folhas acentuam-se os matizes. Estimuladas por esta claridade
As mentes dos artífices tornar-se-iam prismáticas,
Arrebatadas por rendas de arestas afiadas,
Cortantes como aço. Constituições
Esboçadas sob este frio fecundo, seriam anuladas
Pelo rigor da sua equidade, pela moderação da sua piedade.

Ao entardecer somos perturbados pela definição
De tantos tons de verde quantos tentamos vislumbrar,
Quantos ainda a própria paisagem,
Absorvida pela firme obscuridade, condensa
Desde o verde-mar até esse lento anil escuro
Onde a luz e o crepúsculo se abandonam.

E o frio aumenta. Aqui, neste ar
Impróprio para políticos e românticos,
O escuro consolida-se do azul, e apaga as janelas:
Um bloco tangível, recusará ser acessório
Do que lhe não disser respeito. Somos ignorados
Por tanto frio suspenso em tanta noite.

Charles Tomlinson In "Poemas", Edições Cotovia, Lisboa,
1992, p 5 (Tradução de Gualter Cunha).
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30/10/09

"depois da razia nos campos "

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"Carta para W. H. Auden (I) "

Com o teu rosto de palimpsesto
muito usado e esse ar de cavalheiro
do Império Britânico

para quem o resto do mundo é a Índia,
vi-te apanhar o Expresso do Oriente
em Hallesches Tor. Clio, musa da História,

decerto te dirá porque se mostra
privada de perspectivas romanas a cidade.
Mais belo do que o dia era a noite,

hiante, com o seu cadastro de rapazes
no Cosy Corner, a um minuto
dos teus aposentos em Furbringerstrasse

(Frau Gunther, landlady tolerante...)
Aqui, onde o desejo não precisava
de se imaginar real, deixaste tocar-te

pelo amor ( um exemplar dos sonetos
de Shakespeare, o breviário de bolso,
para qualquer dúvida na hora capital).

Berlim era uma colónia de férias
com pack de Nacktkultur e escola
de sexo e todos os eufemismos

que se escondem na palavra Freudschaft.
Com paciência de tutor inglês
aqui disciplinaste delinquentes juvenis,

às vezes atrevidos e insolentes,
puros, verdadeiros e leais -
assim te descobrias adepto da rudeza

alemã ( força, potência & vigor),
pois não era Gerhart Meyer
the truly strong man?

A sua qualidade elementar
dispensava-os de assunto de conversa:
eram um pedaço de rocha natural

à espera que o moldassem as tuas mãos
ambidestras na penumbra de algum
Jugendbar. Hoje não há bares

de rapazes e outra geração enche,
depois da razia nos campos,
os estabelecimentos de Nollendorf Platz.

Parecem não as vítimas mas os seus algozes,
quando descem, ganchos espetados nos mamilos
e argola bovina no nariz, às catacumbas de Motzstrasse.

Paulo Teixeira, In " O Anel do Poço", Editorial Caminho, s/c, 2009, pp 73-74.
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28/10/09

"Efemeridade e permanência na poesia de Cláudio Neves" por Victor Oliveira Mateus.

Neste novo livro de Cláudio Neves assumem particular relevância os conceitos de Amor e de Morte, que, no entanto, são submetidos aqui a uma abordagem cuidadosa e incomum na poesia ocidental. Logo nos dois versos iniciais do primeiro poema o poeta deixa-nos entrever que o amor de que irá falar se coloca em dois planos distintos, embora com zonas tangenciais e de possíveis permutas: aquele que "já foi/ antes de ter sido" (poema 1), que é livre de objectos particulares e, em última instância, livre de si mesmo, e um segundo nível onde o amor, por uma vivência concreta, se revela nos quotidianos gestos. Esta concepção remete-nos imediatamente para um solo matricial bem caro ao Ocidente, embora, e como veremos, Cláudio Neves articule, de forma exímia, todo esse legado da tradição com aspectos de uma modernidade que são intrínsecos à sua arte poética. Os primeiros nomes que nos ocorrem são o de Empédocles e o de arché, substância dinâmica bem cara aos Jónicos, já que o Amor nesta obra de Cláudio Neves é incriado e subjacente a tudo, mas que, no entanto e num segundo momento, " Dança num intervalo/ de luz..." (poema 1). O poeta insiste, em vários dos seus textos, nesta cisão originária que ocorre no seio do amor: "Apenas fora do tempo/ o amor é possível, / mas apenas/ em seu curso é que existe" (poema 6); " O amor é isso:/ o que escolhe ser,/ à revelia de quem o habita" (poema 14). Paralelamente a este nível do Amor, encontramos um outro de estatuto ontológico inferior - aquele que é vivenciado no quotidiano: " o teu amor desliga o som,/ tira-me os óculos e o livro" ( poema 5). Perante esta visão dialógica e especular do amor conseguimos perceber as razões que levaram Cláudio Neves a optar por epígrafes e imagens que nos induzem jogos de reflexos e refrações: o olhar de um cão (cf. poemas 5, 16 e 19); o espelho (cf. poemas 6 e 24). Estes dois planos através dos quais o amor se nos apresenta perpassam todo o livro, o que nos conduz a uma nova dicotomia: a ordem da permanência e a da efemeridade: " Certas manhãs parece que sempre existiram/ em outras somos nós que amanhecemos" (poemas 27); "Aquilo que prestes,/ aquilo que quase,/ os gestos inertes/ vibrarão mais rentes, / tocarão mais leves,/ sorverão mais lentos/ a verdade quieta/ de todo objeto" (poema 21 ). Vemos, por conseguinte, que são inúmeros os versos e/ou os poemas em que se desenham não só os dois níveis do amor já referidos à saciedade, como também a alternância entre os estados de permanência e de transitoriedade. Consciente de que o amor vivido é, então, uma secundarização - ou até uma falha - no meio da totalidade amorosa, o poeta experiencia-o, por vezes, com sentimentos de carácter negativo: o "cínico silêncio" ( poema 15) e o desalento (cf. poemas 9 e 23). É importante enfatizar ainda o cuidado com que toda a imagética desta poesia é trabalhada, e disso daremos aqui um só exemplo: a associação desalento/ insuficiência do amor vivido aparece por duas vezes ligada à cor violeta, que na religiosidade cristã tem uma conotação bem definida: " o pensamento/ assume um tom/ de violeta." (poema 2); "Ficou-lhe a voz,/ o aforismo/ ferindo a tarde violeta" ( poemas 12).
A morte aparece, nesta obra de Cláudio Neves, geminada com o amor, sendo assim uma presença constante ao longo de todo este trabalho: " O Amor e a Morte/ caminhavam juntos/ num jardim fechado." ( poema 20, I ). Todavia ela não tem, para o poeta, uma conotação necessariamente negativa:
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Na morte seremos
o que perdemos
o que já fomos
antes de sermos.
Apenas na morte
seremos
o que somos,
quem fomos
antes de conhecê-la"
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( poema 11)
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A Morte encontra-se, portanto, associada ao desmoronamento da efemeridade e das vivências do amor quotidiano e, consequentemente, à ascensão a esse Amor fonte de tudo. Voltamos assim a um outro item da matriz ocidental: esse morrer para o mundo tão evidenciado nas obras de Teresa de Ávila e de João da Cruz. Se a morte, neste livro, pode ocorrer a qualquer momento ( cf. poema 20, IV ), também a absolutização amorosa se pode fazer a qualquer instante, aliás, a morte no quotidiano e a eternização daquilo que verdadeiramente É, na poesia de Cláudio Neves, e aqui ao contrário da tradição ocidental, é feita a par da materialidade, do corpo, da sexualidade; se na tradição lírica os mais altos cumes têm sido conseguidos através da ausência da amada ou do amado ( a sua morte, o seu afastamento geográfico, o desnível classista, o afeto não correspondido, etc.), nesta poesia a fusão com o Amor pleno pode ser conseguida, não com uma ruptura, mas com uma assunção e transfiguração do amor quotidiano: " Tudo isso farei eterno, / se me confias teu corpo sem ruído," ( poema 16); "E há certas noites, embora vulgares, / em cujo centro onipresente pressentimos/ a combustão de Deus, a marcha dos heróis." (poema 27 ) - eis-nos chegados ao final de todo um ciclo dialéctico. Âmago de uma autêntica epifania: fusão no Amor originário; consumação de um périplo, onde Cláudio Neves retoma as imagens específicas de uma poesia de cariz metafísico: a figura do anjo ( poemas 25, II e IV ), a problemática da ressurreição ( poema 25, I, II e IV ) e, finalmente e à guisa de conclusão, essa ideia de que o deserto é susceptível de ser ultrapassado, mas apenas por esses heróis, que, " à mesa dos loucos " (poema 25, IV ), insistem, quais ressurrectos seres, numa amorosidade diária, firmando esse Amor que, primordial, tudo move.
Outro aspecto quanto a nós fundamental nesta poesia é o modo como Cláudio Neves articula todo o domínio da modernidade poética, que desde o início percebemos ter, com uma súmula de processos formais provenientes da tradição. Este escorreito alcançar de um justo-meio entre as referidas duas instâncias, faz-nos lembrar três dos maiores poetas que, no século XX, escreveram igualmente em português: Vitorino Nemésio, Ruy Belo e David Mourão-Ferreira; também estes, embora com poéticas radicalmente distintas da presente, conseguiram esse equilíbrio entre o que no antigo urge preservar e aquilo que no moderno está para além das espúrias gangas de prestidigitações grosseiras e completamente apoéticas.
Neste livro estamos frente, não a um versejar tradicional e anquilosado ao qual se acrescentou, de forma aleatória, pinceladas de atualidade, apenas para que tal conste, mas a uma poesia que, toda ela porejando modernidade, se encontra embutida de um formalismo que o poeta adotou visando duas finalidades complementares: uma maior apreensão do poema pelo seu leitor, logo, uma veemente recusa da passividade deste, e a conquista de uma harmonia e de uma musicalidade que pareciam já perdidas na poesia contemporânea; ousamos, por conseguinte, dizer que através destes procedimentos estilísticos o autor nos presenteou com uma escrita, que, vincadamente moderna, quando lida nos faz lembrar as pequenas grandes pérolas da poesia trovadoresca galaico-portuguesa e da do Cancioneiro de Garcia de Resende. Esta exemplar tríade modernidade/formalismo/harmonia consegue-a Cláudio Neves através de procedimentos como: anáforas (" alheia ao fato de ser sensata,/ alheia às folhas que ela arrebata,/ alheia às coisas", (poema 2); subversão do esquema rimático tradicional (cf. as duas primeiras quadras do soneto 1); estruturas estróficas de tipo anafórico às quais adiciona rimas cruzadas ( poema 4); versificação de carácter assonante; extensas metáforas correntes que se espraiam ao longo dos poemas ( cf. poema 19, I e II e poema 25, I, II, III e IV); jogos de palavras (por exemplo, seremos/sermos, poema 11), muitas vezes articuladas com anáforas ( poema 19, II); aspectos de continuidade poemática conseguidos através de repetições simples e/ou de anadiploses (poemas 2 e 3), etc. O excelente domínio do português bem como da tradição poética luso-brasileira chega ao ponto de levar Cláudio Neves a trazer para o campo da modernidade processos formais há muito postos de lado: o dobre (" saudade sem objecto/objectos sem ruído,/ tempo sem corrosão," (poema 14); mordobre (poema 11); mote ou tema (poema 5), Porém, e aqui mais uma originalidade desta poesia, o poeta muitas vezes não segue fielmente esses esquemas versificatórios: acena-nos com eles, aqui e ali nos mostra que os domina, mas logo os subverte, não para encenar qualquer artifício gratuito e desinspirado bem ao gosto de certas escritas que começam a vislumbrar o início da sua queda, mas para que o intento da apropriação do real se intensifique e assim se consiga uma maior autenticidade, ao mesmo tempo que, nesta sua arte heterodoxa de desvelamento/ocultação, se implique o leitor de poesia com o sentido do que é mostrado e com a harmonia de um dizer que compromete esse mesmo leitor na dinâmica do fazer poético.
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Victor Oliveira Mateus In "Os acasos persistentes" de Cláudio Neves, Editora 7Letras,
Rio de Janeiro, 2009.
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Antonio Carlos Secchin escreve sobre Cláudio Neves

As 30 peças de Os acasos persistentes compõem um dos mais consistentes e bem realizados mosaicos de nossa poesia recente. Herdeiro do rigor cabralino, mas desdobrando-o em territórios diversos dos percorridos por João Cabral, Cláudio Neves elabora um livro em que os poemas se encadeiam e se encandeiam em torno da temática amorosa, alimentados pela memória no seu intérmino embate contra a dissipação e a morte. Cláudio afirma, num dos (muitos) belos versos da obra: "dizemos ser à falta de outro nome". Como todo efectivo criador, ele sabe que a poesia é o reino de assédios e aproximações que jamais se concretizam, pois sempre hão de faltar nomes para estancar a sede do artista.
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António Carlos Secchin In "Os acasos persistentes" de Cláudio Neves, Ed. 7Letras,
Rio de Janeiro, 2009.
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André Seffrin escreve sobre Cláudio Neves.

Todo poeta é o que é e não aquilo que imagina ser. Ora, apesar do ânimo clássico, aristocrático e até, por vezes, solene, a poesia de Cláudio Neves é portadora de uma inquietante modernidade. Nela, o conteúdo trágico não raro é diluído em formas lúdicas, em que se alternam e se deslocam imagens e sugestões menos óbvias quanto mais aparentes. Como um jogo de claro e escuro, de linhas retas e arabescos que o poeta movimenta com extraordinário senso de medida. Em De sombras e vilas (2008), seu livro anterior, ele se defronta com o espelho da memória, em que os sinais centelham dentro - em luz, palavra, sentido ou abismo, sempre dentro, lá onde residem os arcanos da poesia. Os acasos persistentes reativa essa metafísica convertendo-a, por assim dizer, numa cronologia de sentimentos, em que "as palavras são o que são, e não são nada". Porque, se a existência do amor é possível apenas fora do tempo, é em seu curso (do tempo) que ele (amor) existe. Sim, amor e morte, temas primordiais da poesia - com eles, Cláudio Neves retoma este ofício de palavras, valores e medidas, entre o sonho de Deus e o vazio, para alcançar, talvez, "após uma noite de sonhos concêntricos, a suprema manhã da inexistência". Valores e medidas de grande poeta cósmico que vive e escreve a partir de suas moradas e conflitos.
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André Seffrin In "Os acasos persistentes" de Cláudio Neves, Ed.7Letras,
Rio de Janeiro, 2009.
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27/10/09

Novo livro de Cláudio Neves.


"OS ACASOS PERSISTENTES" de CLÁUDIO NEVES, Ed.7Letras, Rio de Janeiro, 2009.
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Na Contracapa: texto de ANTÓNIO CARLOS SECCHIN.
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Nas badanas: texto de ANDRÉ SEFFRIN.
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Prefácio: "Efemeridade e Permanência na Poesia de Cláudio Neves" por Victor Oliveira Mateus.
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"um fio de vigília a remendar/ as costuras ao sono... "

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"Exercício Penitencial"

Eles dormiram lado a lado sem se tocarem
numa cama estreita enquanto a madeira
estalava como uma chama acesa.

A orla da cama era a margem abrupta
que os mantinha, reféns do instante,
à beira de soltarem-se os seus países
à deriva pelos meridianos da noite.

Os minutos fluíam em segredo,
um fio de vigília a remendar
as costuras ao sono, a vegetação

de sombras onde o olhar adivinhava
dos móveis a baça cor primitiva,
a janela abrindo-se com o néon
num voto a ocidente: Westworld Club.

Dormiram a espaços na noite.
Com bons sentimentos e um desejo
a consumir-se disfarçado no corpo.

Pudesse a penumbra emulsionar
no justo embalo em que os corpos vão e vêm
as suas sombras, até estas se fundirem numa solução durável,
sem amén nem sublime licença, sem senhor nem vasalo.

O sonho é a paisagem por desenhar
quando pela manhã se lembrarem
do que ficou aqui, a marca fóssil de dois corpos

num colchão mole e usado do quarto 1014
no Hotel Belarus, em Minsk:
- a perfeita orogenia de um corpo
a construir-se séculos sob os lençóis.

Paulo Teixeira In "O Anel do Poço", Editorial Caminho, s/c, 2009, pp 24 - 25.
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25/10/09

"Rêver un impossible rêve"

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"La quête"

Rêver un impossible rêve
Porter le chagrin des départs
Brûler d'une possible fîèvre
Partir où personne ne part

Aimer jusqu'à la déchirure
Aimer, même trop, même mal,
Tenter, sans force et sans armure,
D'atteindre l'inaccessible étoile

Telle est ma quête,
Suivre l'étoile
Peu m'importe mes chances
Peu m'importe le temps
Ou ma désespérance
Et puis lutter toujours
Sans questions ni repos
Se damner
Pour l'or d'un mot d'amour
Je ne sais si je serai ce héros
Mais mon coeur serait tranquille
Et les villes s'éclabousseraient de bleu
Parce qu'un malheureux

Brûle encore, bien qu'ayant tout brûlé
Brûle encore, même trop, même mal
Pour atteindre à s'en écarteler
Pour atteindre l'inaccessible étoile.

Jacques Brel
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24/10/09

Acaricio grão a grão a página solar da pele.

Foto de Elian Bachini da série "Toiles sensibles" (2006).

"Da Paixão"

Eis-me aqui: a mesa, a ordem das coisas.
Nunca a falta de amor foi mais clara.
Vem, chacal. Repasto de feras, meu coração aguarda, meu corpo se abre de leste a oeste para o teu solstício.
Aqui estou: altar negro esculpido pela delicadeza das ervas.
Um dilúvio se incumbe de varrer meus restos.

Mas tu ainda brilhas, sempre.
Copo de lírio, vermelho vivo aceso na cama, gesto a gesto:
Meu peito, tua face, o ouro, o verbo.
Acaricio grão a grão a página solar da pele.
A casa se abre, a luz, uma fresta.
E vejo-te aqui, à minha frente, ao alcance da fala: pausada, hesitante, eterna.

Nâo contemplarei as pegadas, resíduos, fotos tardias.
Sofro pela miséria não compartilhada.
Por perfeição perdi o que em mim falta e em ti sobeja:
Amor, finitude, instantes trançados em musgo, pedras desenhando pedras.

Eu: triturado pela engrenagem dos dias.
Tu: clareira nascida no momento mais triste da minha vida.
Animal ferido, maculei tua face com minha queda.
Peço perdão, o perdão das feras, culpadas e cegas.
Enquanto o flamingo atinge a glória da lua em sua extinção,

Sei das palavras, a linguagem dita no escuro.
Murmúrios tramados em nossa caverna:
A transpiração de tua flor em cada uma das minhas células.
Sei que isso ainda vive, se conserva em um quadrante do tempo.
Vazante, amor: a despedida é infinita, nunca se completa.

Ouço teus passos, a respiração, teus olhos firmes e entregues.
Não há reparação, tu sabes.
Mas mesmo assim vens pela noite, navegas meu sangue, meu sêmen, ressurreta.

Sim: abaixo de toda a baixeza, estou sujo. Pregado.
Entre bandidos, o Senhor me abandonou - ainda vivo.
Clamo ao sol: aprofunda esta ferida, esta lepra, escave-a.
Cuspa em minha face e pise minhas vértebras.
E eu possa cumprir a minha consumação, a tua felicidade.
Mãos de cinzas, a cabeça aberta.
Peço-te o perdão da estátua, pobre em sua geometria, agônica.
Morigerante e certa demais para as formas vivas da luz.

A redenção do mal reconhece o mal, um beijo em tua boca - amada, antiga, redescoberta.
Uma vez e tudo já foi dito.
Uma vez e tudo já foi foi feito.
Plenitude, amor.
Acredite: apenas isso é o que meus passos errantes sempre quiseram.
Louco, tranlúcido, nu e sem nome, abjeto - rezo.

Peço-te um dia a mais sobre a Terra.
Tua mão, teu corpo, o deserto.

Rodrigo Petronio In "Venho de um país selvagem", Topbooks Editora,
Rio de Janeiro, 2009, pp 63 - 65.
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23/10/09

"Caminharei sem sombra pelos poços da noite "

Rodrigo Petronio e um casal amigo no dia do lançamento do livro aqui referido.

"Enterrem minha alma em algum lugar sem luz"

Enterrem minha alma em algum lugar sem luz.
Caminharei sem sombra pelos poços da noite entre galhos retorcidos e o ar escasso.
Pergaminho vivo, serei feliz sem nome, rosa túmida avessa ao ser,
Pela própria aniquilação embriagada.
Respirarei o espaço e as estrelas apagadas que unificam minha carne.
Não quero testemunhas. Livrem-se do meu cadáver.
O rebentar de uma só flor já me basta de homenagem.
Que todos os olhos se ceguem e todas as mãos sejam ceifadas.
E eu mastigado pela água em seu ranger de líquidos estalos.
O relógio das casas e sua oração de sinos quebrados.
Meu dorso não suporta o chicote de seus salmos.
À hora grave o sol engole todas essas planícies sem memória.
E somos tocados pela brisa delicada dos mortos.

Não há guerra nem renovação neste mundo limpo.
Não há nada mais sujo do que uma pessoa honrada.
Todos estão do lado da beleza. Todos estão salvos.
Vítimas se multiplicam e não há algozes entre estes ratos.
Senhor, dá-me teu doce flagelo.
Concede-me a honra de ser dentre os assassinos o mais baixo.
Para que a ferida expila o seu fruto sobre a relva.
E nos desperte do sono miserável de nossas obras e nossos quartos.

Só tu, terra devastada que espelha o céu.
Só tu, oásis, beleza sepultada de Deus, onde brotam rosas violentas.
Só tu podes redimir nossa pobreza.
Na decomposição de minhas células serei salvo finalmente.
Aquieta-te, deusa primeira.
E bebe este vaso de sangue em teus poros.
Dá-me o halo de tua glória, celeste, miserável.

Rodrigo Petronio In "Venho de um país selvagem", Topbooks Editora,
Rio de Janeiro, 2009, pp 43 - 44.


Notas:
- esta obra ganhou o Prémio Nacional "Academia de Letras da Bahia/ Braskem 2007".
- optei, como ilustração, por uma foto do próprio lançamento, mas guardando aquelas em que o autor está com Maiara Gouveia para quando postar textos desta última. As fotografias que encontrei na net pareceram-me bem mais antigas.
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20/10/09

" REVISTA INÚTIL " (lançamento... )


(Para uma melhor visualização dos colaboradores
clicar sobre a imagem, p f. )
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O LANÇAMENTO DO PRIMEIRO NÚMERO DA "REVISTA INÚTIL" DECORRERÁ NO DIA
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23 DE OUTUBRO DE 2009, ÀS 21H,30, NA LIVRARIA LER DEVAGAR, NO LX-FACTORY,
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EM LISBOA. A REFERIDA REVISTA TEM: NA COORDENAÇÃO EDITORIAL
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MARIA QUINTANS, NA DIRECÇÃO FOTOGRÁFICA E PRODUÇÃO ANA LACERDA E NA
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CONCEPÇÃO/ DIRECÇÃO DE ARTE JOÃO CONCHA. A APRESENTAÇÃO ESTARÁ A
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CARGO DE CRISTINA PIEDADE (LIVª BERTRAND), O ACTOR ANDRÉ GAGO FARÁ A
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LEITURA DE TEXTOS E POEMAS... HAVERÁ IGUALMENTE MÚSICA AO VIVO COM:
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JOÃO PAULO ESTEVES DA SILVA, MÁRIO FRANCO E ALEXANDRE FRAZÃO.
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19/10/09

Rufus Wainwright interpreta Shakespeare.

. Soneto 43 ( Concerto em Paris 16/6/2009).
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Vejo os dias quais noites não te vendo (Soneto 43).

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When most I wink, then do mine eyes best see;
For all the day they view things unrespected,
But when I sleep, in dreams they look on thee,
And darkly bright, are bright in dark directed.
Then thou whose shadow shadows doth make bright,
How would thy shadow's form form happy show
To the clear day with thy much clearer light,
When to unseeing eyes thy shade shines so?
How would (I say) mine eyes be blessed made
By looking on thee in the living day,
When in dead night thy fair imperfect shade
Through heavy sleep on sightless eyes doth stay?
.. All days are nights to see till I see thee,
.. And nights bright days when dreams do show thee me.
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Tradução:

Meus olhos vêem melhor se os vou fechando.
Viram coisas de dia e foi em vão,
mas quando durmo, em sonhos te fitando,
são escura luz que luz na escuridão.
Tu cuja sombra faz a sombra clara,
como em forma de sombras assombravas
ledo o claro dia em luz mais rara,
se em sombra a olhos sem visão brilhavas!
Que bênção a meus olhos fora feita
vendo-te à viva luz do dia bem,
se tua sombra em trevas imperfeita
a olhos sem visão no sono vem!
.. Vejo os dias quais noites não te vendo,
.. e as noites dias claros sonhos tendo.

Shakespeare In "Os sonetos de ... ", Bertrand Editora, Lisboa, 2002,
pp 96 - 97 (Tradução de Vasco Graça Moura).
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18/10/09

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            "Soneto"


Cresce a sintaxe com muito vagar.
Diz ao fonema: Vem. Depois, sou eu.
Ri o Sol da gramática, apesar
de o Sol só fazer más rimas no céu.

Faço as pazes com ele, vou tomar
banho - "Belo transporte", concedeu.
Saio prà rua grávido de um par
de versos: páro, vejo-Me ao léu,

volto depressa a casa por papel.
Eis aqui está um bom decassilábico,
sobretudo, prudente: não repele
plo aroma e até o lê um estrábico.

Mas lixou-se o soneto isabelino.
Cacofonias, ai!, fazem o pino.

(Budapeste, 15 - III - 1984)

Ernesto Rodrigues In "Revista Mealibra", Nº 20, Série 3, 2006/7.
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         "Pátria"


Heróis do mar. Por favor!
Heróis foram, no entanto.
Partiu-se barca de espanto,
vogamos sempre em redor.

Levantemos o esplendor,
hoje, da pátria; um canto
novo quer pausa, enquanto

vemos saída melhor.
Chão, Deus, água, valor, língua,
são quinas de Portugal.
Fez-se milagre, à míngua

de mar, de vinho do Porto;
Deus foi bem, mas também mal.
Ao mar, ao mar, ser absorto!

(Budapeste, 21-II-1999)

Ernesto Rodrigues In "Revista Mealibra", Nº 20, Série 3, 2006/7
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17/10/09

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já não me lembro se era inverno ou verão.
sei que o sol estava baixo e a sombra dos prédios
se alongava pelo rio e um último feixe de luz precipitava
o início de um crepúsculo de cores muito saturadas.
alguém veio chamar a minha ama
e ela levou-me pela mão como se houvesse
no ar o sinal de uma catástrofe
maior do que poderia pressentir.
só parámos em frente à entrada principal do palácio das sereias
de onde vi, ao longe, a carga policial
sobre os manifestantes que se aglomeravam no largo da alfândega.
de um lado havia gente em silêncio
e do outro guardas a cavalo.
dir-se-ia que apenas esperavam
o momento adequado para o impulso
de raiva que se lhes vislumbrava
estampada nos rostos. eu não sabia
o que não sabia existir. de súbito, senti
um nó na garganta
que apertava tanto que me fez doer
a nuca, os braços, as clavículas,
as pernas, os joelhos. a minha mão
na mão da minha ama, que senti tremer.
de súbito, provindo do silêncio
em que tudo decorria, sem prévio
aviso, ouvimos um estampido, e outro, e outro, ainda.
dos homens a cavalo, alguém puxara
de uma pistola e disparara sobre a multidão
silenciosa, que começou a gritar e a correr,
arremessando pedras sobre os guardas
de esporas nos cavalos, que espumavam
e levantavam as patas dianteiras.
nas janelas das casas vi
gente que levantava bandeiras negras
e vermelhas, outras brancas,
e apupava a polícia e clamava
palavras que até ali desconhecia
e aprendi, para sempre, serem
as mais essenciais para quem da vida
só espera a liberdade. do sítio de onde
estava, num relance, vi um homem
com sangue a escorrer do peito e da cabeça, estando muitos
caídos pelo chão, que os cavalos pisavam
e a quem os guardas batiam com bastões,
enquanto outros não paravam de correr,
procurando refúgio atrás das poucas árvores
e de alguns automóveis ali parados.
por essa altura, todo o meu corpo
se pôs em convulsões, acompanhando
os gritos que ainda hoje oiço
da infância.

Amadeu Baptista In "os selos da lituânia", & etc., Lisboa, 2008, pp 19 - 21.
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São figuras reais? Penso que não
e serão talvez um reflexo de seres que eu conheci
Mas tal como as vejo têm uma presença profunda
algumas de uma beleza fulgurante
mas discreta
na trémula penumbra ou aura que as envolve
Não sei se sou eu que as suscito
ou convoco
mas a sua aparição é como um botão que rapidamente desabrocha
e eu apenas posso tentar mudar a imagem
para que outra lhe suceda ou fixá-la para que mais nenhum se lhe siga

Quer sejam figuras de mortos ou de vivos
quer sejam imagens do meu desejo ou do meu tremor
elas possuem um ritmo fremente
na iluminação dos rostos
e no silêncio de secreta tranquilidade

Não posso recusá-las
Aceito-as
mas não sei o que significam
embora talvez o seu secreto sentido
seja uma relação entre a beleza e a morte
ou talvez nada mais
que o fulgor esparso de tantas figuras
que por acaso ou não eu encontrei
mas não sei explicar a profunda beleza
de alguns destes rostos
que me fixam e para quem eu não sei quem sou

Nós não andamos à volta de um mistério
Não perdemos tempo com o que irreparavelmente se esconde
ou não se esconde
mas é a nulidade de ser como se fosse
Nós queremos estender o braço para um rosto
que não está formado
e é tão aéreo
como três ramos de árvore

Esse rosto é o alvo da mão nua
mas é ela que deslizando nas linhas do ar
o delineia primeiro como uma folha
depois como o peito de um pássaro
e finalmente como uma pluma de fogo e outra de água

Está finalmente aceso
com a delicadeza
da água
com a lascívia
do fogo
e não te vendo ainda
é a evidência discreta
sobre a pedra

António Ramos Rosa In "Deambulações Oblíquas", Quetzal Editores,
Lisboa, 2001, pp 46 - 47.
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15/10/09



"Ainsi qu'un petit café, tel est l'amour"


Ainsi qu'un petit café
dans la rue des étrangers,
tel est l'amour... il reçoit tout le monde.
Ainsi qu'un café bondé ou déserté
selon la méteo.
La pluie tombe, les clients son plus nombreux.
Le ciel s'adoucit, les voici moins nombreux
qui s'ennuient...
Je suis là, ô étrangère, assis dans mon coin.
(De quelle couleur sont tes yeux?
Quel est ton nom?
Comment t'appeler quand tu passes près de moi,
assis à t'attendre?)
Comment t'appeler quand tu passes près de moi,
assis à t'attendre?)
Un petit café que l'amour.
Je commande deux verres
de vin et je bois à ma santé et à la tienne.
J'ai emporté
deux chapeux et un parapluie. Il pleut.
Il pleut plus fort que jamais
et tu n'entres pas.
Finalement je me dis: Celle que j'attendais
m'a peut-être attendu... ou attendu
un autre homme. Elle nous a attendu
et ne l'a pas,
ne m'a pas, reconnu.
Et elle disait: Je suis là, à t'attendre.
(De quelle couleur sont tes yeux?
Quel vin aimes-tu?
Quel est ton nom? Comment t'appeler
quand tu passes près de moi?)

Ainsi qu'un petit café, tel est l'amour...

Mahmoud Darwich In "Comme des fleurs d'amandier ou plus loin", Actes Sud,
Paris, 2007, pp 59 - 60 ( Tradução do árabe - Palestina - para o francês de Elias Sanbar).
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14/10/09


         "Il y a une noce"
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Il y a une noce à deux maisons de la nôtre,
ne fermez pas les portes...
ne nous interdisez pas ce besoin
incongru de joie.
Le printemps ne se sent pas obligé
de pleurer chaque fois qu'une rose se fane.
Et quand, malade, le rossignol devient muet,
il cède au canari
sa part de chant et quand une étoile tombe,
aucun mal n'atteint le ciel...
Il y a une noce,
ne fermez pas la porte au nez de cet air
chargé de gingembre et des prunes
de la mariée
qui mûrit maintenant.
(Elle pleure et rit comme l'eau.
Pas de blessure dans l'eau. Pas de trace
d'un sang répandu dans la nuit.)
L'on dit: L'amour est fort comme la mort!
Je dis: Mais notre appétit de vie est plus fort
que l'amour et la mort,
même si nous ne pouvons le prouver.
Mettons un terme à nos rites funéraires
pour nous associer
au chant de nos voisins,
la vie est évidente... et réelle comme la poussière!
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Mahmoud Darwich In "Comme des fleurs d'amandier ou plus loin", Actes Sud,
Paris, 2007, pp 31-32 ( Tradução do árabe - Palestina- para francês de Elias Sanbar).
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12/10/09

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"Nós desejamos aquilo que vemos. Ser como os outros, ter o que os outros têm.(...) Mas esta incessante actividade de desejo provoca, inevitavelmente, frustrações. Nem sempre conseguimos obter aquilo que obtiveram os que nos serviram de modelo. Somos então obrigados a dar um passo atrás. Este recuo pode assumir diversas formas: de cólera, de tristeza, de renúncia. Ou mesmo de renegação do modelo com que nos tínhamos identificado. Para repelir o desejo repelimos a pessoa que no-lo havia indicado, desvalorizamo-la, dizemos que não merece, que não vale nada. É esta a primeira raiz da inveja.
A outra raiz da inveja apoia-se na necessidade de julgar.(...) Começamos em criança a comparar-nos (...)E depois continuamos ao longo da vida(...) elogio e reprovação, sucesso e insucesso, tudo isto são comparações. (...)Queremos ser melhores, superiores, mais apreciados. Não há qualquer limite para esta ambição, para esta ascensão. Por isso não há fim para o confronto, para o juízo, para o ilimitado suceder-se de valorizações (...) E se não conseguimos, se a comparação for em nossa desvantagem, sentimo-nos diminuídos, desvalorizados, vazios. Procuramos, então, proteger o nosso valor. Aqui ainda podemos fazê-lo de muitas maneiras: renunciando às nossas metas, tornando-nos indiferentes, ou então procurando desvalorizar o modelo, baixando-o para o nosso plano. Este mecanismo de defesa, esta tentativa de nos protegermos através da acção de desvalorização, é a inveja.
A inveja é, por isso, uma paragem, uma retirada, um estratagema para nos subtrairmos ao confronto que nos humilha. É uma tentativa de abastardar o estímulo desvalorizando o objecto, a meta, o modelo. Mas é um tentativa incongruente, porque o objecto do desejo e o modelo continuam ali, como uma teia na qual a alma se debate prisioneira.
Desejar e julgar são dois pilares do nosso ser, mas também a fonte da inveja.(...) Corremos para a frente, depois paramos, olhamos em redor, voltamos novamente a proceder com prudência. A seguir, reassegurados, voltamos a fazer outro avanço. O fluxo vital é um contínuo suceder-se de explorações, de tentativas e erros, de avanços e de recuos. O momento de paragem, de refluxo, de recusa, faz parte integrante do processo, é-lhe essencial. A inveja é um acto de defesa, uma tentativa de nos recolhermos num refúgio, numa fortaleza, com medo do que nos espera. É por isso a sombra negra do nosso esforço vital, a omnipresente força contrária à nossa vontade. (...) a forma como esses fins e esses desejos se nos revelam na inveja, está distorcida e é repugnante. Não é um esforço límpido, uma corajosa marcha em direcção à meta, não é sequer uma aceitação consciente do desafio. O desejo frustrado regressa através da nossa concentração obsessiva em alguém que conseguiu ser bem sucedido onde falhámos, e nós não estamos apenas descontentes com o nosso insucesso, mas cheios de ódio pelo que venceu. A inveja tem raízes no modelo, mas esse modelo, através do processo da inveja, transforma-se numa figura em que não podemos pensar sem nos sobressaltarmos, sem sermos tomados de raiva. A inveja (...)é um protesto rancoroso contra esta substância evasiva que avilta o nosso ser. É uma revolta contra a nossa falta metafísica de autonomia. Mas é um protesto cheio de má-fé, porque apenas o agredimos quando nos sentimos vacilar, não antes. Pelo contrário, antes, clamávamos a construção da nossa segurança e do nosso valor com base nesses confrontos. A inveja é o protesto de um batoteiro que se lembra de ter feito batota, quando começa a perder. Nessa altura quereria fazer um jogo leal, mas não o pode fazer porque pensa que todos fazem batota e, não confia neles, como não confia em si próprio.
A inveja é a maldade contra os outros quando pensamos que a sociedade, o mundo, não são suficientemente bons para connosco. É um veneno que colhemos e com o qual intoxicamos o ambiente. E neste ambiente nos movimentamos incomodamente, temos dependência e medo. (...) Na palavra inveja há uma terceira acusação. "Que mal te fez?", dizem-nos. E nós não sabemos que responder. Porque aquele que invejamos não fez qualquer gesto agressivo. Não "fez" absolutamente nada. O nosso desânimo, a nossa catástrofe interna, não foi determinada por uma acção, por uma violência, mas pura e simplesmente pela comparação que nós próprios levámos a efeito. (...) Mas não fomos agredidos por ninguém. Passamos pela experiência devastadora de termos sido destruídos por outro, sem sequer o podermos acusar. "
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Francesco Alberoni In "Os Invejosos", Bertrand Editora, Lisboa, 1997, pp 7 - 17.
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11/10/09

"Não a tua sombra, mas plenamente... "

"Portrait Flamand" foto de Blue Belhomme, Paris, 2009.

"A Cruz do Sul"

Desejei-te, Mulher do Sul sem nome,
Não a tua sombra, mas plenamente - quando ainda mais solitária,
A Cruz do Sul possui a noite
E a despoja das suas faixas, uma a uma -
Altiva, serena
longe do lento fogo
Dos céus inferiores -
etéreas cicatrizes!

Eva! Madalena!
ou tu, Maria?

Qualquer apelo - cai inútil entre as ondas.
Oh simiesca Vénus, desalojada Eva,
Por casar, errando sem um jardim onde chorasses
As guitarras varridas pelo vento sobre pontes isoladas;
Para finalmente responder a tudo dentro de um túmulo!

E este longo sulco de fósforo,
iridescente
Esteira de toda a nossa viagem - perseguida irrisão!
Os olhos dividem-se com o seu beijo. O seu longo, interminável fascínio
Incita a gritar. Deslizando nessa visão oculta
O espírito lança o seu escarro, sussurrante inferno.

Desejei-te... As brasas da Cruz
Subiam oblíquas e amontoavam-se aromáticas.
É sangue para recordar; é fogo
Hesitante que responde... É
Deus - o teu anonimato. E a ablução -

Toda a noite a água alinhou teus cabelos com negra
Insolência. Rastejante agitada até à tua realização.
A água provocou aquele pungente ruído, o teu
Cabelo enumerado - dócil, ai de ti, depois de sujeita a tantos braços.
Sim, Eva - sombra da minha semente sem amor!

Selada a Cruz, um fantasma - desceu mais baixo que a aurora.
A luz afogou aos milhares a tua lícita geração.

Hart Crane In "A Ponte", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 1995,
pp 85-87 (Tradução de Maria de Lourdes Guimarães).
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10/10/09

"É pouco tudo o que eu vejo "

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Da margem esquerda da vida
Parte uma ponte que vai
Só até meio, perdida
Num halo vago, que atrai.

É pouco tudo o que eu vejo,
Mas basta, por ser metade,
P'ra que eu me afogue em desejo
Aquém do mar da vontade.

Da outra margem, direita,
A ponte parte também.
Quem sabe se alguém ma espreita?
Não a atravessa ninguém.

Reinaldo Ferreira In "Poemas", Vega, Lisboa, 1998, p 151 (Com um estudo de
José Régio sobre esta obra e Prefácio de Guilherme de Melo).
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"Estas verdades, / Que são do senso comum,"

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Sei que a ternura
Não é coisa que se peça,
E dar-se não significa
Que alguém a queira ou mereça.
Estas verdades,
Que são do senso comum,
Não me dão conformação
Nem sentimento nenhum
De haver força e dignidade
Na minha sabedoria...
Eu preferia
- Sinceramente, preferia! -
Que, contra as leis recolhidas
No que ficou dos destroços
De outras vidas,
Tu me desses a ternura que te peço;
Ou que, por fim, reparasses
Que a mereço.

Reinaldo Ferreira In "Poemas", Vega, Lisboa, 1998, p 166.
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09/10/09

"E vimos a noite erguida nos teus braços."

"À Ponte de Brooklyn"

Em quantas madrugadas, arrefecidas pelo repouso ondulante,
As asas da gaivota hão-de imergi-la e voar em seu redor,
Espalhando anéis brancos de tumulto, erigindo bem no alto
Sobre as águas agrilhoadas da baía a liberdade -

Então, numa curva inviolada, deixarão os nossos olhos
Tão espectrais como veleiros que cruzam
Uma página cheia de parcelas a arquivar;
- Até que os elevadores nos libertem do nosso dia...

Sonho com cinemas, truques panorâmicos
Com multidões debruçadas sobre uma cena fulgurante
Jamais revelada, mas passada de novo à pressa,
A outros olhos prometida sobre o mesmo écran;

E TU, por cima do porto, ao ritmo da prata
Como se o sol te imitasse, embora deixasse
Um gesto nunca acabado no teu rasto, -
Implicitamente ficas com a tua liberdade!

De uma abertura no metro, de uma cela ou mansarda
Um louco precipita-se para os teus parapeitos,
Oscilando aí por momentos, a garrida camisa enfunada,
E um gracejo solta-se da multidão surpreendida.

Por Wall Street, escorre o meio-dia desde a viga mestra atá à rua,
Um rasgão no acetilene do céu;
Toda a tarde os guindastes envoltos pelas nuvens giram...
Os teus cabos respiram ainda o Atlântico Norte.

E é obscura, como aquele céu dos judeus,
A tua recompensa... tu conferes o louvor
De um anonimato que o tempo não pode evocar:
Testemunhas uma indulgência e um perdão vibrantes.

Harpa e altar pelo furor unidos,
( Como pôde o simples trabalho alinhar as tuas cordas cantantes!),
Medonho limiar da promessa do profeta,
Prece de um pária, e grito de um amante, -

E de novo as luzes do trânsito que deslizam pelo teu idioma
Veloz e total, imaculado suspiro de estrelas
Ornando o teu caminho, condensam a eternidade:
E vimos a noite erguida nos teus braços.

Sob a tua sombra, esperei junto dos pilares;
Apenas na escuridão é a tua sombra nítida.
Os bairros flamejantes da cidade todos inacabados,
A neve submerge já um ano de ferro...

Ó Insone como o rio lá em baixo,
Em abóboda sobre o mar, erva sonhadora das pradarias,
Desce, vem até nós, os mais humildes,
E da tua curvatura empresta a Deus um mito.

Hart Crane In "A Ponte", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
1995, 17-19 (Tradução de Maria de Lourdes Guimarães).
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08/10/09

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"O Jogo dos Vivos"


E por que não fazê-lo?
e por que não enlouquecer?

seria bem melhor perder
de uma vez esta sensibilidade idiota
e incomodativa

parar de pensar
parar de escrever
entregar-me sem reserva à mediocridade
que a realidade envolvente exalta

nesse momento
sem problemas de consciência
passaria a fazer parte integrante da massa amorfa
de cotovelos apontados às bocas abertas
e aos dentes desprotegidos

poderia atropelar pessoas sem pedir desculpa
dizer palavrões quando me negassem qualquer capricho
meter-me em confusões beber até apanhar uma cirrose
fumar até os pulmões rebentarem roubar chupas aos putos
comer à pressa com as mãos não levantar a mesa
não fazer a cama arrotar o abecedário peidar-me
sonoramente nos transportes públicos cuspir para o chão
repreender a criança insistente que descreve
o futuro numa expectativa inocente e ingénua

tudo menos esta passividade

porque eu tenho visto o desenrolar do jogo dos vivos
sentado no banco de suplentes por vezes na bancada
em tantas ocasiões agarrado às grades do portão de entrada já fechado
porque eu condeno quem não sabe jogar quem faz jogo sujo
mas continuo a ceder continuo imóvel desconcentrado
não entro em campo não mostro o meu drible
porque eu porque eu porque

eu vejo esta gente a passar
a olhar-me de relance e juro que os seus olhos
me chamam anormal me chamam coisas incómodas como idealista
me repudiam por ainda aqui estar sentado a reflectir
em vez de consumir todos os outros recursos disponíveis

apetece-me enlouquecer
vingar-me em alguém

Paulo Tavares In "Pêndulo", Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão,
2007, pp 50-51.
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O Prémio Nobel da Literatura de 2009...

... foi atribuído a Herta Muller, escritora nascida em Nitchidorf (Roménia) e que em 1987 foi
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viver para a Alemanha. Para além de romancista Herta Muller é também poeta e ensaísta.
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Dois dos seus títulos estão já traduzidos para português: "O homem é um grande faisão sobre
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a terra" (Cotovia) e "A terra das ameixas verdes" (Difel).
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"Luzes Dispersas"


Disseste-me o teu nome
mas acabei por esquecê-lo
numa gaveta ou num armário
da casa antiga que já não habito

ameaçado pelas investidas
silenciosas das traças
ganhando o odor da naftalina
foi envelhecendo juntamente
com as outras coisas que não soube amar

os nomes fazem parte de nós
percorrem o sangue e as artérias
preenchem o intervalo entre os órgãos
sem eles a anatomia da vida
seria uma espiral de derrames consecutivos

quando voltei à casa antiga
em busca das divisões de outrora
as gavetas e os armários estavam cheios
de memórias que não me pertenciam

procurei em vão o teu nome
por todas as divisões
restava apenas o vestígio dos teus olhos:
lanternas imprecisas apontadas à escuridão.

Paulo Tavares In "Pêndulo", Quasi Ed., 2007, p 29.
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07/10/09


           "  Poema  18  "


Neste voo de escrever-te um poema
um poema que falasse
dos rios ocultos
com cestas de astros e corais
que falasse das flautas de sol
polindo a tarde
e de picaretas de luz
que do peito à boca me ressoam

Um poema com peixes verde-prata
vindo à tona entre os juncos e as palavras
e onde os sapos surpreendidos em seus saltos
deixassem os gritos suspensos
nos cabelos das algas
com regatos de permeio

Um poema que tivesse também
um longuíssimo solo de violino
com todos os mundos que para ti inventei...
- Neste voo de escrever-te um poema
que não sei...

 
Mateus, Victor Oliveira. Movimento de Ninguém. Lisboa: 1999, p 30.
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06/10/09

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Fizera arquitectura em Sevilha e no Canadá
Viera ter aqui para te fazer ciúme,
Criatura vibrátil,
Modelava o riso oriental com réguas
Finas, lisas, transparentes,
E recriava as casas com mãos breves de cera
E muita, requintada submissão.

Trazia sempre à luz o seu perfil elástico
Confundido nas falas dobrava-se em silêncio.
Foram meses de ouro para mim que não te ouvia
Desdobrado em amores também australianos.

Tens que aceitar-me as costas, e só, com a dor
Arrefecendo-me os flancos
Na tua intimidade que já nem recalcitra.
Seishu parou de aparecer voou para Nova Iorque
Talvez Hamburgo lhe gele agora o reticente cabelo.

Como iria eu saber que já não tinhas pátria
Quando os olhos de flecha meio cerrada
Me fitavam de longe, fotográficos?
Na praia do Meco ou nesse altar do desejo
Erguido sobre o mar enraivecido
Como colunas brancas e pedras amarelas de tabaco
Pernas e dentes sitiavam-me o corpo.

Seishu, um nome simples
Que articulava, em coro, uma inteira panóplia
De pequenos gestos e pássaros
Um tecido de luxo, decisivo e tão puro
A envolver-lhe as nádegas.
E tanta espuma risonha e tanto bem saber
Na tua boca fresca.

Eu já não te sentia no meu espaço
Não te exaltes
A memória enaltece os nomes concubinos.
Tu não estavas no sangue, tolhido na garagem estranha
O teu corpo esfriava
No vazio.

Armando Silva Carvalho In "O Amante Japonês, Assírio & Alvim,
Lisboa, 2008, pp 40-41.
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05/10/09

A poesia de Vinícus de Moraes por Rodrigo da Costa Félix.

"Soneto da fidelidade"

De tudo, ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e dederramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento.

E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama

Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.

Vinícius de Moraes In "Antologia Poética", Publicações D. Quixote,
Lisboa, 2001, pp 136-137.
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04/10/09

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Fiel até ao fim. Fiel até ao fel.
Há muito que não sei levar-te a mim.
A esta rude, estranha transparência dos meus dias.
Não sei se me desculpas
Ou imploras aos teus deuses que me assaltem.

Quantas vezes, perdidos já os dois, me confesso inerte dentro do teu corpo,
Cansado dos que suam e não me sonham
Dos que sonham corpos e trazem na cabeça, arrastados pelo medo,
Um suor submisso, um rouco respirar que não me alcança.

E eram mãos absurdas, vermelhas,
Rodadas, rodeadas
De pequeninos coros de papel, vítimas do mundo
E loucas de saberes
Que tu atropelavas nas ruas, selvagens,
Assassino infiel do meu destino.

Armando Silva Carvalho In "O Amante Japonês", Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, p 14.
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03/10/09

"aquí me tienes para tus enseñanzas"


Oh, Tiempo,
amante más que ninguno,
aquí me tienes para tus enseñanzas,
para tus expansiones,
para tus nudos de corbata.

Aquí me tienes para tus noches
y el recreo estival,
y para ser tu intercesora
en los debates más encarnizados.

Estaré de tu lado
taimadamente, como las novias
que no toman partido
pero no se retiran jamás del lugar
donde los hombres más valientes
son amenazados.

Desde allí todo lo ven
con su ojo atento y forzado
y un embarazo de apenas dos meses
en el que aún no piensan.

Y cuando vengan los pistoleros,
oh, Tiempo,
yo como las novias arrebatadas
esperaré hasta que caiga
la última de tus gotas de sangre,
prestándote todo mi apoyo,
animándote.

Quiero servirte de consuelo
hasta el último segundo de tu existencia,
Tiempo.

Quiero acompañarte toda mi vida
en los escalones
hechos sobre la marcha
de tu infinito atardecer.

Luisa Castro In "Amor mi señor", Tusquets Editores, Barcelona, 2005, pp 99-100.
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02/10/09

"tus ojos no fueron de hombre"

Luisa Castro (Foz/Lugo, Galiza, 1966). Em 1986 obteve logo o Prémio Hiperión de
Poesia com "Los versos del eunuco", em 1988 ganhou o Prémio Rei Juan Carlos com
o "poemario Los hábitos del artillero", em 2004 surge a sua "Obra Poética reunida 1984-1997" com o título "Señales con una bandera". O seu romance "El secreto de la lejía" ganha o Premio Azorin 2001 e em 2004 recebe o Prémio Torrente Ballester com a sua colectânea de contos
"Podría hacerte daño". A sua obra foi já traduzida para italiano, inglês, alemão, hebreu, francês e holandês. A escrita de Luisa Castro é praticamente desconhecida em Portugal.


No fue humano tu amor,
no fue de hombre tu mano,
tus ojos no fueron de hombre,
no fue tu nombre de hermano.

No fue ni amigo ni padre
ni guía ni redentor,
no fue ni siquiera un dios,
y sin medida fue amado.

Qué me diste? Qué te di,
que nunca te viste saciado,
campo que todo lo bebes,
fuente que todo lo secas.

Amor que todo lo pides
y nada das que no sea
a cuenta de usura, alegre
fuente que todo lo secas.

Luisa Castro In "Amor mi señor", Tusquets Editores, Barcelona, 2005, p 27.
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01/10/09

""De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável."

Guillaume Depardieu e Jeanne Balibar no filme de Jacques Rivette
"Não toquem no machado" (baseado do romance de Balzac "La Duchess de Langeais).


"Uma espécie de perda"

Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

Ingeborg Bachmann In "O Tempo Aprazado, Poemas 1953-1967", Assírio & Alvim, Lisboa,
1992, pp 99-101 (Tradução de Judite Berkemeier e João Barrento).
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"O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,/(...) não estamos em casa".


"Manobras de Outono"
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Não digo: isso foi ontem. Com insignificantes
trocos de Verão nos bolsos, estamos de novo deitados
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
E a nós não nos é dada, como aos pássaros,
a retirada para o sul. À noite passam por nós
traineiras e gôndolas, e por vezes
atinge-me um estilhaço de mármore impregnado de sonho,
onde a beleza me torna vulnerável, nos olhos.
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Leio nos jornais muitas notícias - do frio
e suas consequências, de imprudentes e mortos,
de exilados, assassinos e miríades
de blocos de gelo, mas pouca coisa que me dê prazer.
E porque havia de dar? Ao pedinte que vem ao meio-dia
fecho-lhe a porta na cara, porque há paz
e podemos evitar essas cenas, mas não
o triste cair das folhas à chuva.
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Vamos viajar! Debaixo de ciprestes
ou de palmeiras ou nos laranjais, vamos
contemplar a preços reduzidos
inigualáveis pores-de-sol! Vamos esquecer
as cartas ao dia de ontem, não respondidas!
O tempo faz milagres. Mas se chegar quando não nos convém,
com o bater da culpa - não estamos em casa.
Na cave do coração, desperto, encontro-me de novo
sobre o joio do sarcasmo, nas manobras de Outono do tempo.
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Ingeborg Bachmann In "O Tempo Aprazado", Assírio & Alvim, Lisboa, 1992,
pp 35-37 (trad. de Judite Berkemeier e João Barrento).
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