12/10/09

.
.
"Nós desejamos aquilo que vemos. Ser como os outros, ter o que os outros têm.(...) Mas esta incessante actividade de desejo provoca, inevitavelmente, frustrações. Nem sempre conseguimos obter aquilo que obtiveram os que nos serviram de modelo. Somos então obrigados a dar um passo atrás. Este recuo pode assumir diversas formas: de cólera, de tristeza, de renúncia. Ou mesmo de renegação do modelo com que nos tínhamos identificado. Para repelir o desejo repelimos a pessoa que no-lo havia indicado, desvalorizamo-la, dizemos que não merece, que não vale nada. É esta a primeira raiz da inveja.
A outra raiz da inveja apoia-se na necessidade de julgar.(...) Começamos em criança a comparar-nos (...)E depois continuamos ao longo da vida(...) elogio e reprovação, sucesso e insucesso, tudo isto são comparações. (...)Queremos ser melhores, superiores, mais apreciados. Não há qualquer limite para esta ambição, para esta ascensão. Por isso não há fim para o confronto, para o juízo, para o ilimitado suceder-se de valorizações (...) E se não conseguimos, se a comparação for em nossa desvantagem, sentimo-nos diminuídos, desvalorizados, vazios. Procuramos, então, proteger o nosso valor. Aqui ainda podemos fazê-lo de muitas maneiras: renunciando às nossas metas, tornando-nos indiferentes, ou então procurando desvalorizar o modelo, baixando-o para o nosso plano. Este mecanismo de defesa, esta tentativa de nos protegermos através da acção de desvalorização, é a inveja.
A inveja é, por isso, uma paragem, uma retirada, um estratagema para nos subtrairmos ao confronto que nos humilha. É uma tentativa de abastardar o estímulo desvalorizando o objecto, a meta, o modelo. Mas é um tentativa incongruente, porque o objecto do desejo e o modelo continuam ali, como uma teia na qual a alma se debate prisioneira.
Desejar e julgar são dois pilares do nosso ser, mas também a fonte da inveja.(...) Corremos para a frente, depois paramos, olhamos em redor, voltamos novamente a proceder com prudência. A seguir, reassegurados, voltamos a fazer outro avanço. O fluxo vital é um contínuo suceder-se de explorações, de tentativas e erros, de avanços e de recuos. O momento de paragem, de refluxo, de recusa, faz parte integrante do processo, é-lhe essencial. A inveja é um acto de defesa, uma tentativa de nos recolhermos num refúgio, numa fortaleza, com medo do que nos espera. É por isso a sombra negra do nosso esforço vital, a omnipresente força contrária à nossa vontade. (...) a forma como esses fins e esses desejos se nos revelam na inveja, está distorcida e é repugnante. Não é um esforço límpido, uma corajosa marcha em direcção à meta, não é sequer uma aceitação consciente do desafio. O desejo frustrado regressa através da nossa concentração obsessiva em alguém que conseguiu ser bem sucedido onde falhámos, e nós não estamos apenas descontentes com o nosso insucesso, mas cheios de ódio pelo que venceu. A inveja tem raízes no modelo, mas esse modelo, através do processo da inveja, transforma-se numa figura em que não podemos pensar sem nos sobressaltarmos, sem sermos tomados de raiva. A inveja (...)é um protesto rancoroso contra esta substância evasiva que avilta o nosso ser. É uma revolta contra a nossa falta metafísica de autonomia. Mas é um protesto cheio de má-fé, porque apenas o agredimos quando nos sentimos vacilar, não antes. Pelo contrário, antes, clamávamos a construção da nossa segurança e do nosso valor com base nesses confrontos. A inveja é o protesto de um batoteiro que se lembra de ter feito batota, quando começa a perder. Nessa altura quereria fazer um jogo leal, mas não o pode fazer porque pensa que todos fazem batota e, não confia neles, como não confia em si próprio.
A inveja é a maldade contra os outros quando pensamos que a sociedade, o mundo, não são suficientemente bons para connosco. É um veneno que colhemos e com o qual intoxicamos o ambiente. E neste ambiente nos movimentamos incomodamente, temos dependência e medo. (...) Na palavra inveja há uma terceira acusação. "Que mal te fez?", dizem-nos. E nós não sabemos que responder. Porque aquele que invejamos não fez qualquer gesto agressivo. Não "fez" absolutamente nada. O nosso desânimo, a nossa catástrofe interna, não foi determinada por uma acção, por uma violência, mas pura e simplesmente pela comparação que nós próprios levámos a efeito. (...) Mas não fomos agredidos por ninguém. Passamos pela experiência devastadora de termos sido destruídos por outro, sem sequer o podermos acusar. "
.
.
Francesco Alberoni In "Os Invejosos", Bertrand Editora, Lisboa, 1997, pp 7 - 17.
.