01/10/09

""De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável."

Guillaume Depardieu e Jeanne Balibar no filme de Jacques Rivette
"Não toquem no machado" (baseado do romance de Balzac "La Duchess de Langeais).


"Uma espécie de perda"

Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.

Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,

(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.

De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.

Não te perdi a ti,
perdi o mundo.

Ingeborg Bachmann In "O Tempo Aprazado, Poemas 1953-1967", Assírio & Alvim, Lisboa,
1992, pp 99-101 (Tradução de Judite Berkemeier e João Barrento).
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