27/10/09

"um fio de vigília a remendar/ as costuras ao sono... "

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"Exercício Penitencial"

Eles dormiram lado a lado sem se tocarem
numa cama estreita enquanto a madeira
estalava como uma chama acesa.

A orla da cama era a margem abrupta
que os mantinha, reféns do instante,
à beira de soltarem-se os seus países
à deriva pelos meridianos da noite.

Os minutos fluíam em segredo,
um fio de vigília a remendar
as costuras ao sono, a vegetação

de sombras onde o olhar adivinhava
dos móveis a baça cor primitiva,
a janela abrindo-se com o néon
num voto a ocidente: Westworld Club.

Dormiram a espaços na noite.
Com bons sentimentos e um desejo
a consumir-se disfarçado no corpo.

Pudesse a penumbra emulsionar
no justo embalo em que os corpos vão e vêm
as suas sombras, até estas se fundirem numa solução durável,
sem amén nem sublime licença, sem senhor nem vasalo.

O sonho é a paisagem por desenhar
quando pela manhã se lembrarem
do que ficou aqui, a marca fóssil de dois corpos

num colchão mole e usado do quarto 1014
no Hotel Belarus, em Minsk:
- a perfeita orogenia de um corpo
a construir-se séculos sob os lençóis.

Paulo Teixeira In "O Anel do Poço", Editorial Caminho, s/c, 2009, pp 24 - 25.
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