23/10/09

"Caminharei sem sombra pelos poços da noite "

Rodrigo Petronio e um casal amigo no dia do lançamento do livro aqui referido.

"Enterrem minha alma em algum lugar sem luz"

Enterrem minha alma em algum lugar sem luz.
Caminharei sem sombra pelos poços da noite entre galhos retorcidos e o ar escasso.
Pergaminho vivo, serei feliz sem nome, rosa túmida avessa ao ser,
Pela própria aniquilação embriagada.
Respirarei o espaço e as estrelas apagadas que unificam minha carne.
Não quero testemunhas. Livrem-se do meu cadáver.
O rebentar de uma só flor já me basta de homenagem.
Que todos os olhos se ceguem e todas as mãos sejam ceifadas.
E eu mastigado pela água em seu ranger de líquidos estalos.
O relógio das casas e sua oração de sinos quebrados.
Meu dorso não suporta o chicote de seus salmos.
À hora grave o sol engole todas essas planícies sem memória.
E somos tocados pela brisa delicada dos mortos.

Não há guerra nem renovação neste mundo limpo.
Não há nada mais sujo do que uma pessoa honrada.
Todos estão do lado da beleza. Todos estão salvos.
Vítimas se multiplicam e não há algozes entre estes ratos.
Senhor, dá-me teu doce flagelo.
Concede-me a honra de ser dentre os assassinos o mais baixo.
Para que a ferida expila o seu fruto sobre a relva.
E nos desperte do sono miserável de nossas obras e nossos quartos.

Só tu, terra devastada que espelha o céu.
Só tu, oásis, beleza sepultada de Deus, onde brotam rosas violentas.
Só tu podes redimir nossa pobreza.
Na decomposição de minhas células serei salvo finalmente.
Aquieta-te, deusa primeira.
E bebe este vaso de sangue em teus poros.
Dá-me o halo de tua glória, celeste, miserável.

Rodrigo Petronio In "Venho de um país selvagem", Topbooks Editora,
Rio de Janeiro, 2009, pp 43 - 44.


Notas:
- esta obra ganhou o Prémio Nacional "Academia de Letras da Bahia/ Braskem 2007".
- optei, como ilustração, por uma foto do próprio lançamento, mas guardando aquelas em que o autor está com Maiara Gouveia para quando postar textos desta última. As fotografias que encontrei na net pareceram-me bem mais antigas.
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