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já não me lembro se era inverno ou verão.
sei que o sol estava baixo e a sombra dos prédios
se alongava pelo rio e um último feixe de luz precipitava
o início de um crepúsculo de cores muito saturadas.
alguém veio chamar a minha ama
e ela levou-me pela mão como se houvesse
no ar o sinal de uma catástrofe
maior do que poderia pressentir.
só parámos em frente à entrada principal do palácio das sereias
de onde vi, ao longe, a carga policial
sobre os manifestantes que se aglomeravam no largo da alfândega.
de um lado havia gente em silêncio
e do outro guardas a cavalo.
dir-se-ia que apenas esperavam
o momento adequado para o impulso
de raiva que se lhes vislumbrava
estampada nos rostos. eu não sabia
o que não sabia existir. de súbito, senti
um nó na garganta
que apertava tanto que me fez doer
a nuca, os braços, as clavículas,
as pernas, os joelhos. a minha mão
na mão da minha ama, que senti tremer.
de súbito, provindo do silêncio
em que tudo decorria, sem prévio
aviso, ouvimos um estampido, e outro, e outro, ainda.
dos homens a cavalo, alguém puxara
de uma pistola e disparara sobre a multidão
silenciosa, que começou a gritar e a correr,
arremessando pedras sobre os guardas
de esporas nos cavalos, que espumavam
e levantavam as patas dianteiras.
nas janelas das casas vi
gente que levantava bandeiras negras
e vermelhas, outras brancas,
e apupava a polícia e clamava
palavras que até ali desconhecia
e aprendi, para sempre, serem
as mais essenciais para quem da vida
só espera a liberdade. do sítio de onde
estava, num relance, vi um homem
com sangue a escorrer do peito e da cabeça, estando muitos
caídos pelo chão, que os cavalos pisavam
e a quem os guardas batiam com bastões,
enquanto outros não paravam de correr,
procurando refúgio atrás das poucas árvores
e de alguns automóveis ali parados.
por essa altura, todo o meu corpo
se pôs em convulsões, acompanhando
os gritos que ainda hoje oiço
da infância.
Amadeu Baptista In "os selos da lituânia", & etc., Lisboa, 2008, pp 19 - 21.
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