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"O Jogo dos Vivos"
E por que não fazê-lo?
e por que não enlouquecer?
seria bem melhor perder
de uma vez esta sensibilidade idiota
e incomodativa
parar de pensar
parar de escrever
entregar-me sem reserva à mediocridade
que a realidade envolvente exalta
nesse momento
sem problemas de consciência
passaria a fazer parte integrante da massa amorfa
de cotovelos apontados às bocas abertas
e aos dentes desprotegidos
poderia atropelar pessoas sem pedir desculpa
dizer palavrões quando me negassem qualquer capricho
meter-me em confusões beber até apanhar uma cirrose
fumar até os pulmões rebentarem roubar chupas aos putos
comer à pressa com as mãos não levantar a mesa
não fazer a cama arrotar o abecedário peidar-me
sonoramente nos transportes públicos cuspir para o chão
repreender a criança insistente que descreve
o futuro numa expectativa inocente e ingénua
tudo menos esta passividade
porque eu tenho visto o desenrolar do jogo dos vivos
sentado no banco de suplentes por vezes na bancada
em tantas ocasiões agarrado às grades do portão de entrada já fechado
porque eu condeno quem não sabe jogar quem faz jogo sujo
mas continuo a ceder continuo imóvel desconcentrado
não entro em campo não mostro o meu drible
porque eu porque eu porque
eu vejo esta gente a passar
a olhar-me de relance e juro que os seus olhos
me chamam anormal me chamam coisas incómodas como idealista
me repudiam por ainda aqui estar sentado a reflectir
em vez de consumir todos os outros recursos disponíveis
apetece-me enlouquecer
vingar-me em alguém
Paulo Tavares In "Pêndulo", Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão,
2007, pp 50-51.
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