30/07/09




"Soneto das Sombras das Moças em Flor"


Aonde estão as moças que floriam
a primavera azul de Itapuã
desabrochando os corpos que vendiam
na incerteza que mancha o amanhã?

Aonde estão estas meninas? Mora
nas árvores a chuva, o vento, o frio:
o inverno se assentou de vez agora;
pouca lembrança há-se restar do estio -

Só uma nesga de sol que se insinua
sobre as mesas de plástico molhadas;
só uma réstia de vida veste a rua:

os raros transeuntes nas calçadas.
Neste deserto, sob um céu sem cor,
procuro as sombras das moças em flor.


Ildásio Tavares In "As Flores do Caos", Editª Labirinto, Fafe, 2009,
p 33 ( Prefácio de Casimiro de Brito).


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"Dor e glória partilharam, afinal, homens e deuses que,
por terra e mar, vaguearam sem destino!" - considerou
o prestável Eumeu, depois de tantas coisas termos dito,
em seu casebre, nessa noite, não longe do lugar onde, ao
romper da Aurora, não tardaria a desembarcar Telémaco,
para preparar a conjura, e cumprir a vingança.

Vergílio Alberto Vieira In "Sombras de Reis Mendigos", Ed. Livros de Horas,
Porto, 2009, p 46, (Prefácio de Miguel Real).
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29/07/09

"Agora, há ruído/ além do vento."


Nota - Enquanto aguardamos o lançamento do livro da Maiara Gouveia, que, julgo, está para breve, segue um inédito seu de um outro projecto. Gostei muito deste poema e ela autorizou-me a publicá-lo, portanto ...
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"Da origem "
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1.
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Aquém da intriga, a face, ainda oculta
por água turva, em plena queda,
mistura-se ao vácuo, abertura
de uma era. E a treva, armadilha, rodeia
este nada recém descoberto.
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Do oco, um lume revela
o barulho da pedra, esse sopro
a rolar sobre a esfera,
agora líquida, translúcida, repleta
de infinito.
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O firmamento divide o tempo
em duas águas. O árido
insurge, é a forma do corpo,
ainda inerte. No entanto,
um vapor cobre tudo, e brota o fruto
e a erva. Da noite, a lua e as guelras
têm poder. E da manhã, a matéria
forma o astro, o fervilhar, de onde,
num vôo ou mergulho, os seres
retiram potência e à vida
chegam.
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Do ovo, a serpente quebra
a superfície, e a pele fria
toca o solo, à espreita
do mistério. O homem,
da lama se desprende, e sem medo
existe até que o desejo
penetre em seus poros.
Agora, há ruído
além do vento.
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Do sono, a costela
expele a fêmea, de onde vem
a dor que tudo alimenta.
A história sela o destino
de ser. Esse deus
corpóreo, o cancro da fera,
com a presa na boca
e porque a fome o deseja. E desaba
um cortejo
de vozes, o cheiro
de banha e sangue
pisado. No centro, a raiz
expande a morte.
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Sabemos?
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Maiara Gouveia (Inédito)
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26/07/09

"Retrato de Vergílio Alberto Vieira" (2007). Desenho de José Rodrigues.


Sempre que, em Ogígia, voltava aos braços de Calipso
para, no seu leito de rosas, travar sem tréguas nova
batalha fingida, não era pois do mar esse rumor de
vagas que, de céu a céu, me perseguia, mas da cadência
do remo com que, mais tarde, havia de medir: do sol, a
altura; do abismo, a sombra do naufrágio.


Vergílio Alberto Vieira In "Sombras de Reis Mendigos", Ed. Livros de Horas,
Porto, 2009, p 19 (Prefácio de Miguel Real).
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25/07/09

"Não é simples impudência o que contra ti vocifera!"

A (grande) interpretação da "Fedra" de Racine por DOMINIQUE BLANC.
DVD zona 2 com uma realização de Stéphane Metge (2003) e a encenação
de PATRICE CHÉREAU.

"Mensagem"

Para Hipólito, da Mãe - Fedra - Rainha - a mensagem.
Para o rapaz caprichoso, belo, fugindo de Fedra como,
De Febo pomposo, a cera... E pois então,
Para Hipólito, de Fedra: o gemer de lábios ternos.

Sacia minha alma! (Impossível, sem tocar os lábios,
Saciar a alma!) Impossível, ao tocá-los,
Não beijar Psique, dos lábios a visitante alada...
Sacia a minha alma: logo, sacia-me os lábios.

Cansada, Hipólito... Às putas e sacerdotizas - opróbrio!
Não é simples impudência o que contra ti vocifera!
Simples, só falas e mãos... Um grande mistério esconde
O seu tremor atrás dos lábios que o dedo sela.

Oh, perdoa, meu virgem!, donzel!, cavaleiro!, inimigo
Do deleite! Não é luxúria! Não é o seio da fêmea!
É ela, a sedutora! É lisonja de Psique -
Ouvir junto aos seus lábios o balbucio de Hipólito -

"Tem vergonha!" - Mas é tarde! É o último marulho!
Meus cavalos desvairam! Da rocha abrupta - em pó -
Também sou amazona! Lanço-me do cume dos peitos,
Fatais colinas - para o abismo do teu peito!

(Ou do meu?!) - Tenta! Ousa! Mais ternura!
Grifo na cera da tabuinha - ou cera de um coração
Feito a estilete escolar... Oh, antes lesse
Nos lábios o segredo de Hipólito a tua

Insaciável Fedra...


Marina Tsvetáeva In "Depois da Rússia 1922-1925", Relógio d'Água, Lisboa,
2001, pp 163-165 (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra).
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22/07/09

"Desperto, no meio do negro, ouvem-se as constelações baterem o pé, de impaciência..."

(Nota - é enorme a importância de Transtromer, na Suécia e fora dela, assim, dada a caracterização desta poesia, as relações que tem com várias correntes e poetas de outros países,
a polémica que levantou com a geração de 70, o modo como, apesar dos obstáculos, se tem conseguido impor como um dos grandes vultos da poesia europeia, sugerimos a leitura do Prefácio a esta obra, da autoria de Jacques Outin, bem como do breve esboço biográfico que está na Wikipédia...)

"Les Pierres"

Les pierres que nous avons jetées, je les entends
tomber, cristallines, à travers les années. Les actes
incohérents de l'instant volent dans
la vallée en glapissant d'une cime d'arbre
à une autre, s'apaisent
dans un air plus rare que celui du présent, glissent
telles des hirondelles du sommet d'une montagne
à l'autre, jusqu'à ce qu'elles
atteignent les derniers hauts plateaux
à la frontière de l'existence. Où nos
actions ne retombent
cristallines
sur d'autres fonds
que les nôtres.

Tomas Transtromer In "Baltiques - Oeuvres complètes 1954 - 2004 ", Poésie Gallimard,
Paris, 2004, p 36 (traduzido do sueco para o francês por Jacques Outin).
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20/07/09



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"Lá no Água Grande"
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Lá no "Água Grande" a caminho da roça
negritas batem que batem co'a roupa na pedra.
Batem e cantam modinhas da terra.
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Cantam e riem em riso de mofa
histórias contadas, arrastadas pelo vento.
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Riem alto de rijo, com a roupa na pedra
e põem de branco a roupa lavada.
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As crianças brincam e a água canta.
Brincam na água felizes...
Velam no capim um negrito pequenino.
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E os gemidos cantados das negritas lá do rio
ficam mudos lá na hora do regresso...
Jazem quedos no regresso para a roça.
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Alda do Espírito Sanro In "É Nosso o Solo Sagrada da Terra", Ulmeiro, Lisboa, 1978.
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19/07/09


          "Manifesto Imaginado de um Serviçal"
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Chão inconquistado, chama-me teu que sobre minha fronte se
esvai a lua esburacada na sanzala. Não mais regressarei ao Sul.
Morador interdito, ficarei nas tuas entranhas. Aqui onde tudo
dei e me perdi. Morro sem respirar o hálito de uma outra cidade
que adubei.
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Irmãos:
Deitai-me amanhã no terreiro à hora do sol nascente: quero
olhar de frente as plantações. Quero contemplar, morto e inteiro, meu
legado involuntário de africano em África desterrado.
Clamo o pó que reclama a exaustão serena do meu corpo.
Não mo podeis usurpar, ngwêtas, com o ferro da vossa força.
Não mo negueis, ó híbridos forros, com vosso frio desdém de
séculos. Este barro é meu, espinho a espinho penetrou o osso dos
meus passos como um sopro cruel e palpitante. Até ao fim onde agora
começo porque a morte é o estuário de onde desertam os barcos todos
que cavaram meu destino.
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Irmãos:
Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede.
Chegámos de muito longe sem casa.
Dai-me a beber agora a amarga infusão do caule do aloé, quero
esgotar o cálice do nosso calvário.
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Dai-me uma coreografia de labaredas e vertigens que a nossa
saga é uma constelação de astros absurdos.
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Dai-me amanhã em oferenda todos os sons que criei e os sons
que não criei mas aprendi
a puíta, o ndjambi, o bulauê
a dêxa também e o socopé
Trazei-me os silêncios todos que percorri
Mostrai-me os caminhos que não trilhei mas construí
Celebrai-me anónimo na praça que não verei mas antevi
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Ilhas! Clamai-me vosso que na morte
não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje
de raízes de sândalo e ndombó
Sou filho da terra.
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Conceição Lima In " O Útero da Casa", Ed. Caminho, Lisboa, 2004, pp 35-37.
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17/07/09


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            "A Casa"
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Aqui projectei a minha casa:
alta, perpétua, de pedra e claridade.
O basalto negro, poroso
viria da Mesquita.
Do Riboque o barro vermelho
a cor dos ibiscos
para o telhado.
Enorme era a janela e de vidro
que a sala exigia um certo ar de praça.
O quintal era plano, redondo
sem trancas nos caminhos.
Sobre os escombros da cidade morta
projectei a minha casa
recortada contra o mar.
Aqui.
Sonho ainda o pilar -
uma rectidão de torre, de altar.
Ouço murmúrios de barcos
na varanda azul.
E reinvento em cada rosto fio
a fio
as linhas inacabadas do projecto.
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Conceição Lima In "O Útero da Casa", Ed. Caminho, Lisboa, 2004, pp 19-20.
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16/07/09

"contornos perfeitos de cisne"

"Advancing plant on wall with window", Besozzo - Italia (2008), foto de Paul C. Smits
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Insistes em não compreender
ser eu aquele que pinta
a poeira no fim da luz
aquele que no parque finge
contornos perfeitos de cisne.

Daniel Maia-Pinto Rodrigues, In "Malva 62", Quasi Edições, Vila Nova de Famalicão,
2005, p 16.
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Comprometi-me a não contar
o que realmente se passou
com aquele casal
mas posso adiantar-vos
que a mulher era uma excêntrica
e o marido um turbo-potro.


Daniel Maia-Pinto Rodrigues In "Malva 62", Quasi Edições,
Vila Nova de Famalicão, 2005, p 63.
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13/07/09

"Para me não veres -"


"Raios através da janela", Pittsburgh, Pennsylvania (2008), foto de Kristen Swamer
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Para me não veres -
Na vida - cinjo-me da cerca
Invisível e penetrante.
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Cinjo-me da madressilva,
Cubro-me do algodão de geada.
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Para me não ouvires
Na noite - com manha de velha
Me dissimulo - e me protejo.
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Cinjo-me do restolhar.
Cubro-me de ramagens.
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Para que não floresças muito
Em mim - nos silvados: enterro-me
Nos livros ainda em vida:
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Cinjo-te de fantasias,
Cubro-te de ilusões.
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Marina Tsvetáeva In "Depois da Rússia, 1922-1925", Relógio d'Água,
Lisboa, 2001, p 43 (trad. de Nina Guerra e Filipe Guerra).
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12/07/09


(Desenho da autoria de Neves e Sousa)
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"Solidão 5"
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quem bateu à minha porta
limpou os pés
deixou os sapatos
e foi-se embora
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Glória de Sant'Anna In "Trinado para a noite que avança", ed. aut., 2009, p 33.
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"vou a caminho da saída"

"Mágoa"


não vêdes
que vou a caminho da saída

e que por isso
conto coisas que me são queridas

e não contaria

se não fosse
esta aura de espanto
e de
espectativa

não vêdes
que a solidão trazida
me cobre a face os ombros
e toda a vida

que por ser um resto
ainda é consentida

Glória de Sant'Anna In "Trinado para a noite que avança", ed. aut., 2009, p 15.
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11/07/09

Eugénio Lisboa escreve sobre Glória de Sant'Anna

(Nota - não é meu hábito usar este blogue para "artigos de opinião". Penso, nesta altura, que as minhas opiniões fazem parte de um foro privado, que partilho com alguns mas não tenho direito de as estar, com carácter sistemático, a enfiar pela "goela abaixo" de todos. O espírito de cruzada tem pouco a ver comigo! Apesar destas resistências, e porque existem sempre excepções nas regras, gostaria de reafirmar o que recentemente escrevi à filha de Glória de Sant'Anna, a pintora Inez Andrade Paes: considero o esquecimento a que foi votada a poesia daquela poeta um dos maiores danos causados à poesia portuguesa das últimas décadas... Que se me perdoe a soberba intelectual, mas, e relativamente a este assunto, ainda assim penso.)
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" UM DENSO AZUL SILÊNCIO"
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Deixou-nos há dias (2.6.2009) Glória de Sant'Anna, quase tão discretamente como entrou no território da literatura, embora nos tenha legado alguns marcos assinaláveis do lirismo português. A autora de Distância (1951) e de Música Ausente (1954) nasceu em Lisboa, em 25 de Maio de 1925, e foi viver para Moçambique, em 1951, com 26 anos, primeiro em Nampula, e depois, a partir de 1953, em Porto Amélia (hoje, Pemba), em frente ao faustoso mar daquela imensa baía que é a terceira mais importante do mundo.
Dali só regressaria a Portugal - para Ovar, onde se fixou - em 1974, isto é, ao fim de 23 anos de permanência numa África que amou e cantou. Tendo casado em 1949, depois de terminado o curso complemetar de Letras, no Colégio de Odivelas, Glória de Sant'Anna viria, por via do ensino, a apertar contactos com a população nativa de Pemba, sondando vidas, dramas, alegrias, aspireções, angústias...
Em 1962 (era Outubro), caíu-me nas mãos, em Lourenço Marques, um livrinho de poesia de 54 páginas, óbvia edição da autora, com título aliciante e algo indecifrável ou quase demasiado decifrável: Livro de Água. Começara a publicar-se, ali, por essa altura, um diário promissor - A Tribuna - que incluía um suplemento cultural cuja direcção fora cometida a mim e ao poeta Rui Knopfli. O livro de Glória, que eu recebera quase coincidentemente com o aparecimento do jornal, tocou-me profundamente; e logo decidi consagrar-lhe algumas linhas entusiásticas, naquele suplemento que viria a durar pouquíssimo tempo.
Foi o primeiro de vários textos que dediquei, ao longo dos anos, à arte "serena" da autora de Um Denso Azul Silêncio. Falando do livro de uma autora que até aí me fora completamente desconhecida, concluía, nestes termos, que ainda hoje não renego, a caracterização da ars poetica da escritora: "Uma arte líquida, secreta, discretamente deslizante, atenta e comovida, contidamente dramática, ilusoriamente tranquila, rica nos seus meios de uma simplicidade enganadora, nítida mas plena de mistério, límpida mas 'mortal' e tocada pela asa de uma angústia que mal se mostra. Uma arte de rigor e de modéstia - clássica portanto. Mas viva."
Ao Livro de Água, outros se seguiram, em que o ofício poético da escritora se confirmou, numa monotonia suave e intensa, sempre aliciante e esquisitamente inquietante: Poemas do Tempo Agreste (1964), Um Denso Azul Silêncio (1965), Desde que o Mundo e 32 Poemas de Intervalo (1972), todos de poesia e todos publicados em Moçambique. Além destes, editaria também ali, o livro de crónicas ... do Tempo Inútil (1975). Já depois do seu regresso a Portugal, publicaria ainda Não Eram Aves Marinhas (1988), Zum-Zum (1995) e Algures no Tempo (2005).
Em 1988, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda editou, sob o título geral Amaranto e com prefácio meu, o total das suas obras publicadas até então e alguns inéditos que, pela sua natureza supostamente subversiva não tinham podido ver a luz durante os "anos da peste". Já depois da independência, em 2000, a editora moçambicana Ndjira homenageou a autora, pela mão de Fernando Couto, publicando uma antologia que, sob o título Solamplo, coligia poemas de Música Ausente, Livro de Água, Poemas do Tempo Agreste, Um Denso Azul Silêncio, Cancioneiro Incompleto (que fora incluído em Amaranto) e Desde que o Mundo...
A arte de Glória de Sant'Anna, embora profundamente empenhada na realidade social moçambicana, porque era uma arte de subtilíssimo "recuo autobiográfico", nada tinha de ostensivamente proclamativo, nem de dramaticamente gesticulante. Em versos serenos, quase perfidamente tranquilos, cheios de um pudor que nos atingia bem mais fundo do que qualquer grito incontinente, tão "secreta/como o tecido da água", entregava-nos, "purificada" e cheia de dignidade, a tragédia de um povo emudecido.
Assim falava, por exemplo, da mulher morta por uma inundação: "O rosto é liso/ a fronte é alta/ o perfil limpo". Ou ainda: "A mão no peito/ longa, pousada./ O lábio breve/ descida a pálpebra."
Poesia intensa, que aspira ao máximo pudor e a uma espécie de "silêncio" - um "denso azul silêncio"-, ela enreda-se no nobre conflito milenar dos que se dilaceram entre o desejo de falar (testemunhar, manifestar) e o desejo não menos forte de calar. "Pesa-me o silêncio de todas as palavras", diz ela num verso, podendo igualmente ter dito: "Pesa-me o ruído que faz o silêncio..."
O outro importante pilar desta poesia insinuante é o mar, a água que visita e vivifica tantas páginas dos vários livros que compõem o cânone de Glória. Dissemos algures e pedimos licença para aqui brevemente o transcrever: " Nalgumas tradições, a hebraica, por exemplo, a água é a matriz, é a fonte de todas as coisas. Nalguns casos, na alquimia chinesa, por exemplo, o banho e a lavagem são, por outro lado, operações ígneas, isto é, a água é também fogo. Era talvez, intuindo isto, que Novalis afirmava que 'a água é uma chama molhada'.O universo aquático de Glória de Sant'Anna, no seu ímpeto rigorosamente purificador, tem qualquer coisa de um fogo que se contém, mas limpa".
Como todos os que escreveram fora da estreita paróquia lusíada - mesmo que o tenham feito em português e em nobilíssima toada - Glória de Sant'Anna foi pouco vista e pouco comentada pelos donos da poesia que por aí fazem e desfazem reputações. Não foi a única. Rui Knopfli nunca foi devidamente apreciado, em todo o caso, não à altura a que se guindou o autor de O Escriba Acocorado ou de O Monhé das Cobras. E Grabato Dias, certamente um dos quatro ou cinco maiores poetas portugueses do século XX, é aquele nome que fica escandalosamente esquecido, quando em alegre tertúlia se fazem balanços para manuais-a-haver. Ter vivido em África, ter gostado de lá estar - é pecado que sempre se pagou e se continua a pagar com língua de palmo. A Europa para os europeus, ou coisa assim, imagino eu.
Seja como for, a autora de Amaranto, pouco vista, pouco lida, pouco visitada pelos buscadores de graus académicos (com a excepção de eu próprio a ter convidado a estar presente num dos meus seminários de literatura portuguesa na Universidade de Aveiro - que diabo!, Ovar ficava mesmo ali ao lado...), a autora de Amaranto, dizia eu, deixou-nos há dias, deixando-nos também, para nosso uso, e regalo um belo canto de poucas e avaras palavras. Mas sempre de bom aviso:
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Não sei porque buscas palavras longas
Para as coisas breves que nos assombram.
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Nem mais. O assombro também se explora com palavras breves: se forem certeiras.
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Eugénio Lisboa In "JL" de 17 a 30 de Junho de 2009, pp 22-23.
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10/07/09



Il marchait un matin d'hiver
dans les rues vides d'un dimanche à Paris -
vent froid, ciel gris,
l'air un peu hagard, égaré
de l'errant qui ne sait pas au juste où il va -

il avait pourtant un désir précis:
arriver par-delà le désespoir -

Lorand Gaspar In "Patmos et autres poèmes", Poésie Gallimard, Paris, 2004, p 170.

08/07/09

"querer um verso que dissesse tudo"


"Negra e branca" de Man Ray (1926) In "Centro de Arte Rainha Sofia", Madrid.
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"As Perdas Os Ganhos"
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Este não é o poema que eu gostaria de ter escrito:
tudo no fundo se resume no poema
à soma dos ganhos e das perdas
afinal tão semelhante à vida é esse jogo
de querer um verso que dissesse tudo
e nada mais dissesse
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António Carlos Cortez In "à flor da pele", Editora Casa do Sul, Évora, 2007, p 19.
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"A Pintura"


Monet tens a impressão da realidade
e ela não pode ser de outro modo
Misturas na tela as cores primárias
como hoje a pintora no seu atelier
traçando a negro a figura humana

A poesia é talvez o momento
em que a pintura é exercida
de outra forma Um défice de realidade
nos olhos Nesse tempo o poema
surge para um dizer novo

António Carlos Cortez In " à flor da pele", Editora Casa do Sul, Évora, p 48.
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Grande Prémio de Poesia da A.P.E./C.T.T.


O GRANDE PRÉMIO DE POESIA DA ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE ESCRITORES/

C.T.T., EDIÇÃO DE 2008, FOI ATRIBUÍDO POR UNANIMIDADE DO JÚRI, AO

LIVRO " O AMANTE JAPONÊS" DE ARMANDO SILVA CARVALHO.

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06/07/09



Sobre una mínima cornisa
al otro lado de la calle
alguna paloma se posa,
hincha sus plumas, picotea
el enlucido, mata el tiempo
y se lanza de nuevo al vuelo
como un tren que en un túnel entra.
Así lo imaginará el gato
que la observa en la ventana.
Es un gato casero y fofo
que se arrellana en el sofá
mientras su dueña ve la tele
y yo desde el balcón contemplo
el resplandor de las imágenes.


José Ángel Cilleruelo In "antologia", Averno, 2004, p 108.
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05/07/09


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Quem me teria enviado esta foto? Quem me inundou
assim o P.C., que pretendia branco e limpo de qualquer
mágoa? De quem este retumbante e perverso intento
a revolver-me o pântano da memória? Porquê um anexo
a inundar-me o ecrã e a desafiar o esquecimento, que era
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já coisa certa e bem minha? Porquê a tua figura de novo,
aqui, bem na minha frente, com o nome do aeroporto
por detrás, as malas, a mochila a escorregar, os cabelos
- que naquela altura tinhas deixado crescer - quase
a tocarem o azul da camisola e o teu sorriso infantil,
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que ambos sabemos a quem se destinava? Terrível esta
alegoria da vida: as chegadas com o iníquo sabor da partida,
a bagagem aparentemente cheia no periclitante embarque
de nada, os sorrisos frágeis e efémeros, a quotidiana fuga
a cercear o que para ti tão raro quisera. Mas... quem me
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teria enviado esta foto? Esta virtual lembrança,
que nenhum antivírus impedirá agora de se tornear real,
obsessiva até? Através da janela nem uma resposta sequer.
Apenas o ecrã do céu - igualmente belo, igualmente azul.
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Victor Oliveira Mateus In "Revista de Poesia Saudade" Nº 11,
Junho, 2009, p 59.

04/07/09

"Tu corazón corea el ritmo de la música,"


La música estalla cuando al abrir la puerta
das el último atusón al cabello, dentro
enrojecen las sombras, fluyen pastosas
como un secreto inofensivo. Te acomodas
en la barra. Te apareces bastante ajeno
mientras sorbes despacio, con intriga,
un híbrido combinado de muchos alcoholes.
Ella se acerca entre satinados paños y zurea
lacónica su diestra petición de enlace
que aceptas con fingida abulia.
Te rodea el cuello con sus brazos, desanuda
sonriente la corbata y te empuja
entre las coloradas sombras hacia ciertos
peldaños que en el fondo emergen.
Tu corazón corea el ritmo de la música,
tras el nailon lucen unos muslos
hinchados cuya cadencia halaga
y descompone la acrimonia del lugar.

Muy pronto la cubrirás con tu deseo,
y ella, levantando ligeramente una pierna
por encima de tus jadeos, preocupada
repasará con el índice ensalivado
una triste carrera en la media.


José Ángel Cilleruelo In "antologia", Averno, 2004, p 30.
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02/07/09


Eu sou a juventude: sou o canto das avelaneiras a deixar oiro
aos meus cabelos, que são teus.
Na minha carne verás o poder do teu quebranto
e a arte que na memória toca o fundo de duas árvores opostas
a tornarem-se uma só.
Sou o fruto que receio de mim,
quando me ouvires contar a minha história cercada de alabastro. Sou
o que desejas agora, nessa audácia pelos campos
com desapego e indolência. E não verás nenhuma fonte,
mas posso falar-te de uma a nove léguas de distância.
Eu sou a juventude que possuis,
sou a vanglória atraída a outra coisa que viu longe,
que em breve saberás.
Abrigo a tua pele ignorada para que nenhuma mulher te veja sem amar-te, e
dos meus jardins te afasto,
cujas lembranças que terás os tornam graciosos.
Nem sempre creias na cidade futura a que prometia que chegasses,
nem enquanto nos tivermos apenas a nós dois
nesses corações, que nossos, não pensam no que nasce.
Virá o tempo em que te verás desaparecer
e eu já não poderei imaginar-te. E
com os frutos que se desprendem
entre olvidos, como agora se despede esta manhã,
irás dizer-me de uma forma distante
o que dentro e à volta do mundo eu fui deixando.
Sim, em breve eu e tu, e dos restantes, estaremos separados,
e a todos quererão outros lábios mais vorazes, que
sejam, em vez de mim, o meu perdão.
Sim... em breve... olha além a luz que clareia os campos,
vê lá os cantoneiros a segredar que estão aqui,
vê os vigilantes de jardins a acender o funcho, mais
os que estão por nascer, mais os velhos em redor do fumo e que estão certos,
vê se calhar isolado entre as heras o meu canto,
mas não digas adeus, não acenes cabisbaixo à cidade que se afasta; que
na última colheita dos teus frutos
virei com meu rebanho
sobre as nuvens dos teus filhos.


Rui Coias (Pré-publicação)
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(tradução do português para o francês)

Je suis la jeunesse: je suis le chant des aveniliers laissant tomber l'or
dans mes cheveux, qui sont à toi
Dans ma chair tu verras le pouvoir de ta lassitude,
et l'art qui, dans la mémoire, touche le fond
de deux arbres opposés devenant un seul.
Je suis le fruit qui me crains,
quand tu m'écouteras raconter mon histoire cernée d'albâtre.
Je suis ce que tu désires à présent, dans cette audace parmi les champs,
détaché et indolent.
Tu ne verras aucune fontaine mais je peux t'en parler
d'une à neuf lieues de distance.
Je suis la jeunesse que tu possèdes
je suis la vaine gloire attirée par autre chose qui au loin se prolonge,
bientôt tu le sauras.
Je mets ta peau à l'abri pour qu'aucune femme ne te voit sans t'aimer,
et de mes jardins je t'éloigne,
selon les souvenirs que tu possèdes, cela les rendra pleins de grâce.
Ne crois pas toujours dans la ville future
à laquelle je promettais que tu arriverais,
ni pendant que nous nous possédons, l'un l'autre dans ces coeurs,
qui sont les nôtres, car ils ne pensent pas à ce qui prend vie
à mes cheveux, qui sont à toi.
Viendra le temps où tu te verras disparaître
et moi je ne pourrai plus t'imaginer.
Et avec les fruits qui se dátachent entre les oublis,
comme maintenant prends congé de nous ce matin,
tu iras me dire d'une façon distante
ce que dedans et autour du monde j'ai laissé.
Oui, bientôt, toi et moi, des autres, nous serons séparés
et tous voudront d'autres lèvres plus voraces,
qu'ils soient, ainsi et à ma place, ils voudront mon pardon.
Oui... bientôt... regarde au loin la lumière qui éclaire les champs,
vois les cantonniers murmurant qu'ils sont ici,
vois les veilleurs de jardins qui allument le fenouil,
et ceux qui sont à naître, et les vieux autour de la fumée et qui ne doutent pas,
vois peut-être isolé entre les lierres de mon chant,
mais ne dis pas adieu, pas de salut pensif vers la ville qui s'éloigne;
dans la dernière cueillette de tes fruits
je viendrai avec mon troupeau
sur les nuages de tes enfants.


Lidia Martinez e Guy Vivien traduzindo Rui Coias


(Nota - os meus agradecimentos ao Rui Coias por me ter autorizado esta pré-publicação.
Os meus agradecimentos à Lidia Martinez e ao Guy Vivien por terem ousado esta
excelente tradução de um tão belo poema).

01/07/09

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com o blogue da referida Editora, caso pretenda mais informações).
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