19/07/09


          "Manifesto Imaginado de um Serviçal"
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Chão inconquistado, chama-me teu que sobre minha fronte se
esvai a lua esburacada na sanzala. Não mais regressarei ao Sul.
Morador interdito, ficarei nas tuas entranhas. Aqui onde tudo
dei e me perdi. Morro sem respirar o hálito de uma outra cidade
que adubei.
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Irmãos:
Deitai-me amanhã no terreiro à hora do sol nascente: quero
olhar de frente as plantações. Quero contemplar, morto e inteiro, meu
legado involuntário de africano em África desterrado.
Clamo o pó que reclama a exaustão serena do meu corpo.
Não mo podeis usurpar, ngwêtas, com o ferro da vossa força.
Não mo negueis, ó híbridos forros, com vosso frio desdém de
séculos. Este barro é meu, espinho a espinho penetrou o osso dos
meus passos como um sopro cruel e palpitante. Até ao fim onde agora
começo porque a morte é o estuário de onde desertam os barcos todos
que cavaram meu destino.
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Irmãos:
Pelo mar viemos com febre. De longe viemos com sede.
Chegámos de muito longe sem casa.
Dai-me a beber agora a amarga infusão do caule do aloé, quero
esgotar o cálice do nosso calvário.
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Dai-me uma coreografia de labaredas e vertigens que a nossa
saga é uma constelação de astros absurdos.
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Dai-me amanhã em oferenda todos os sons que criei e os sons
que não criei mas aprendi
a puíta, o ndjambi, o bulauê
a dêxa também e o socopé
Trazei-me os silêncios todos que percorri
Mostrai-me os caminhos que não trilhei mas construí
Celebrai-me anónimo na praça que não verei mas antevi
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Ilhas! Clamai-me vosso que na morte
não há desterro e eu morro. Coroai-me hoje
de raízes de sândalo e ndombó
Sou filho da terra.
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Conceição Lima In " O Útero da Casa", Ed. Caminho, Lisboa, 2004, pp 35-37.
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