31/08/10

" porque ya no hay caminos/ o perdi su recuerdo."

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"Ulises"
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Besarte todavía, mientras en los cristales
una luz indecisa
anuncia la llegada de un día no previsto
en el que vivir juntos, pero esta vez a solas.
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Prometerte en voz baja que ya nunca
me volveré a marchar, y que esta vez sea cierto,
porque ya no hay caminos
o perdí su recuerdo.
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Saber, hermosamente,
que ya todo es mentira, y que no importa,
porque, después de la verdad, hay vida,
o, más allá de una verdad, hay otra.
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Y aprender el amor que cabe en tanta ausencia.
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José Cereijo in "Las trampas del tiempo", Ediciones Hiperión, Madrid, 1999.
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29/08/10

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há em cada pastor a influência do deslumbre do pasto. como se o
encanto fosse a flor e o rio um afluente a correr ao contrário da sede
que é sempre mais seda que o fio que nos estala.

somos de tanta água que te faço fonte para sempre. acolhe-me.
escolhe-me. resguardo-te. sem a alquimia dos milagres. com a prata
que é o meu sangue.

Isabel Mendes Ferreira in "As Lágrimas Estão Todas na Garganta do Mar,
Arcádia, Lisboa, 2010, p 30.
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28/08/10

( O original deste poema que traduzi aqui, da autoria de Marta López Vilar, encontra-se na lista de autores deste blogue, no nome da autora.)
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Já nada tento alcançar, nada se apresenta ante a minha porta.
Nenhuma juventude senti a não ser a tua,
nenhuma cidade, nenhum outono derramou
nas minhas mãos os filamentos da luz,
os mistérios do ar.
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Contigo repousa agora aquele sangue em sonhos
derramado, a noite sem refúgio
com redes de ouro, o coalhado
perfume das papoilas nos teus lábios
enquanto eu contemplo a pátria destruída do teu corpo,
recém abandonado.
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Contemplo o deus que me arrastou para a vida
jazendo agora na imensa sombra
do que jamais terei...
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A morte abateu-se sobre o mundo, deus meu,
e nada pode já afastar este meu frio.
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Nota 1 - ver o original na respectiva lista de autores.
Nota 2 - por várias razões, às quais não é alheia a Yourcenar, levei meses tentando ganhar coragem para traduzir este belíssimo poema.
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27/08/10

" su forma vencedora/ renovada surgiendo a cada embate "

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"Roca en el mar"

Mírala allí, plantada hermosamente
en mitad de las olas
que constantes la cercan; ladradora jauría
incapaz de otra cosa
más que afirmar, brillantes, sus aristas,
su forma vencedora
renovada surgiendo a cada embate
- en símbolo perfecto
de la callada fuerza de la vida,
que cada golpe afirma y enaltece.

Igual que tú y que yo, parece perdurable;
igual que a ti y a mí,
el mar, que es como el tiempo, devora lentamente
esa fragilidad secreta en que consiste.

José Cereijo in "Las trampas del tiempo", Ediciones Hiperión, Madrid, 1999, p 22.
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26/08/10

"Uma vontade de ser chama numa casa abandonada,"

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"Uma vontade"

Uma vontade de viver os seus cabelos,
de respirar os seus olhos,
de perseguir a direcção dos seus movimentos...

Uma vontade de ser chama numa casa abandonada,
de ser água,
gota de água,
ao instante da sua lágrima,
ao instante da sua sede...

Uma vontade de ser o Mundo em poucas palavras...

Uma vontade de ser a vontade,
todas as vontades,
toda a força,
toda a garra de uma mulher reprimida,
de todas as mulheres reprimidas,
de todo o choro que finge riso...

Uma vontade de ser poesia na folha que desmaia Outono...

Uma vontade de ver no desejo uma acção,
de ver num sonho uma vida,
de ver numa noite toda a luz
que existe além da nossa realidade...

Fecho os olhos.
Pôr-do-sol.
Acorda o arco-íris,
todas as cores na sombra da sua mão,
na sombra da sua mão,
na sombra da sua mão...

Mafalda Chambel (Inédito)
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24/08/10

"A nossa/ vida esvai-se na transformação. E o que é exterior, cada vez mais diminuto,/ desaparece.(...)"


" A Sétima Elegia"
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Ó voz imensa, que a natureza do teu grito não mais seja
a procura da amada, não mais a procura; gritarias decerto com a pureza do pássaro,
quando o ergue essa ascendente estação do ano, quase esquecida
de que ele é um bicho cediço e não apenas um coração isolado,
que ele lança no azul sereno, nos céus interiores. Como a dele, seria
a tua procura da amada, não menos intensa -, para que, ainda invisível,
a amiga de ti se apercebesse, silenciosa, aquela em quem, lentamente, uma resposta
acorda e com o ouvir se aquece -,
aquela que inflamada sente o teu ousado sentimento.
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Oh! e a Primavera compreenderia -, não há recanto
a que não chegue o som da anunciação. Primeiro aquele
breve articular interrogativo, que no crescente silêncio,
um puro dia de afirmação vastamente envolve a sua mudez.
Depois subir degraus, os degraus do apelo, até ao sonhado
templo do futuro -; depois o gorjeio, fonte
que antecipa a queda do jacto em ascensão
num jogo de promessas... E, já próximo, o Verão.
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Não só as manhãs todas do Verão -, não só
o modo como se transformam no dia e brilham de início.
Não só os dias, tão ternos para com as flores, e lá no alto
para com as árvores, já formadas, fortes e possantes.
Não só a celebração destas forças desencadeadas,
não só os caminhos, não só os prados à noitinha,
não só, depois da tardia trovoada, um clarear que respira,
não só o sono que se aproxima e um pressentimento ao anoitecer...
mas as noites! Mas as altas noites
do Verão, mas as estrelas, as estrelas da terra.
Oh! estar outrora morto e sabê-las infinitamente,
todas essas estrelas: pois como, como, como as esquecer!
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Olha, eu chamaria então a amante. Mas que viesse
não só ela... Que viessem de frágeis sepulturas
jovens mulheres e que estivessem... Pois, como poderia eu delimitar
esse chamar chamado? As que estão afundadas
continuam a procurar terra.- Ó vós, crianças, uma só coisa
de aqui, uma vez possuída, valeria por muitas.
Não julgueis que o destino seja maior do que o devaneio da infância;
quantas vezes não ultrapassastes o Amado, ofegantes,
ofegantes após esse correr feliz, sem rumo algum, para o espaço livre.
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Estar aqui é magnífico. Também vós, ó jovens mulheres, o sabíeis,
vós que aparentemente renunciastes, vos afundastes-, vós, nas piores
vielas das cidades, ulcerantes e expostas
a todo o abandono. Pois a cada um cabia uma hora, talvez
menos de uma hora, um momento quase impossível de medir,
entre dois instantes, com medidas de tempo, em que ela teve
uma existência. Tudo. As veias cheias de existência.
Nós, porém, tão facilmente esquecemos aquilo que o sorridente vizinho,
nos censura ou nos inveja. Nós queremos
ostentá-lo visivelmente, mesmo quando a felicidade mais visível
se nos dá apenas a conhecer, quando intimamente a transformamos.
Em nenhum outro lugar, ó Amada, haverá mundo senão em nosso íntimo. A nossa
vida esvai-se na transformação. E o que é exterior, cada vez mais diminuto,
desaparece. Para onde havia outrora uma permanente casa,
propõe-se agora uma construção concebida, a toda a extensão,
da ordem do pensável, como se estivesse toda ainda no cérebro.
Amplos acumuladores de energia cria o espírito do tempo, informemente,
tal como o ímpeto tenso que de todas as coisas obtém.
Templos, já não os conhece. A estes, desbarato do coração,
nós mais secretamente os resguardamos. Sim. onde quer que subsista
uma coisa, uma coisa outrora feita de oração, de serviço, de genuflexão -
aflora já, tal como está, o invisível.
Muitos dela não se apercebem já, nem têm a vantagem
de a construírem agora no seu íntimo, com pilares e estátuas, maior!
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Cada insensível rotação do mundo tem destes deserdados
a quem não pertence nem o que foi, nem o que há-de seguir-se.
Pois o que há-se seguir-se é longínquo para os homens. A nós isto
não nos deve perturbar; antes nos dê a força de guardar
a forma mais reconhecível. Isto que outrora estava entre os homens,
no seio do destino, desses destruidor, estava
no não-saber-para-onde-ir, como ser sendo, e vergava para si
as estrelas de céus firmes. Ó Anjo,
a ti o mostro ainda, ali! no teu olhar,
fique por fim a salvo, finalmente erguido, agora.
Colunas, pilones, a Esfinge, esse erguer-se em anelo,
na soturna cor de cidades em estertor ou de estranhas cidades, da catedral.
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Não foi isto milagre? Ó Anjo, enche-te de admiração, pois somos nós,
nós, ó grande, que disso fomos capazes, narra-o porque o meu sopro
não basta para o exaltar. Assim, não deixámos
passar em vão os espaços, estes
nossos condescendentes espaços. (Como devem ser terrivelmente grandes,
pois milénios do nosso sentir os não fazem transbordar).
Mas era grande, uma torre, não é assim? Ó Anjo, era, essa torre, grande-,
grande, mesmo comparando contigo? Chartres era grande-, e a Música
subia ainda mais alto e ultrapassava-nos. E mesmo uma só
Amante-, oh! sozinha, à janela da noite...
não te chegava até aos joelhos-?
Não creias que eu te pretenda.
Ó Anjo, e mesmo que eu te pretendesse! Tu não vens..
Pois o meu
chamamento está cheio de oposição; contra semelhante
torrente é impossível caminhares. O meu grito
é como um braço que se estende. E a mão
que ao alto se abre para alcançar fica diante de ti
aberta, como defesa e advertência,
ó inalcançável, toda aberta.
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Rainer Maria Rilke in "As Elegias de Duíno", Assírio & Alvim, Lisboa, 2002,
pp 83 - 89 (Tradução: Maria Teresa Dias Furtado).
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22/08/10

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"Os Livros"


Os livros duram séculos e
falam da melodia da chuva,
dos rios e dos mares, das fontes,
dos húmidos beijos dos
amantes, mas também

morrem despedaçados num
qualquer temporal que parte
as vidraças e lhes tolhe as páginas
numa brutal invasão líquida.

E falam do fogo
das paixões, de estrelas
a arder no infinito,
mas o convívio das chamas
é-lhes vedado, apesar
da torpe ignorância
a isso os ter condenado
tantas vezes.

Quantos naufrágios e incêncios
os destruiram, para depois
ressurgirem múltiplos,
audazes amigos tão antigos e
tão novos.

Inês Lourenço in "Coisas que nunca", & etc., Lisboa, 2010, pp 34 - 35.
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21/08/10

"I learned to read this from a/ woman whose hand trembled at the past, then even/ being born to her was temporary... "


No language is neutral. I used to haunt the beach at
Guaya, two rivers sentinel the country sand, not
backra white but nigger brown sand, one river dead
and teeming from waste and alligators, the other
rumbling to the ocean in a tumult, the swift undertow
blocking the crossing of little girls except on the tied
up dress hips of big women, then, the taste of leaving
was already on my tongue and cut deep into my
skinny pigeon toed way, language here was strict
description and teeth edging truth. Here was beauty
and here was nowhere. The smell of hurrying passed
my nostrils with the smell of sea water and fresh fish
wind, there was history which had taught my eyes to
look for escape even beneath the almond leaves fat
as women, the conch shell tiny as sand, the rock
stone old like water. I learned to read this from a
woman whose hand trambled at the past, then even
being born to her was temporary, wet and thrown half
dressed among the dozens of brown legs itching to
run. It was as if a signal burning like a fer de lance's
sting turned my eyes against the water even as love
for this nigger beach became resolute.
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Dionne Brand in "Poesia Contemporânea do Canadá", Antígona, Lisboa, 2010, p 48.
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20/08/10

"only the shadow knows/ these footstep years, surprising thought "


only the shadow knows
these footstep years, surprising thought
and loves so deep I keep them close
each day to wander their companionships
of wonder... oh! fly, come fly with me
in an exaltation of larks, and, yes, in a murder
of crows, in the parliament of owls, with
the eloquence of frogs - this poetry
one can't do without - murmuring clouds,
embrace of montains - sunshining streets,
the wariness of skyscrapers - the longing
of steeples - out of this disarray of imagination
are dimmed sparkles where sorrow burns
in its ashes - hot as heaven.
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Robin Blaser in "Poesia Contemporânea do Canadá", Antígona, Lisboa, 2010, p 20.
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(Nota - Depois da poesia do Canadá de língua francesa, Hélène Dorion, seguem-se dois/três poetas do Canadá de língua inglesa).
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19/08/10


A limpeza das feridas de Stephen tinha-se desenvolvido de uma tarefa temida para um ritual solene. Monica transferiu a tarefa para Jordan diversos dias depois da tempestade. Stephen estava deitado na cama. Ouviram o barulho no exterior, o rumorejar de travões de camião. Stephen riu-se quando Jordan lhe tocou com o trapo na parte de trás da coxa.
- O que foi?
- Fazes sempre isso - murmurou Stephen.
E depois Jordan compreendeu. Quando limpava as feridas, Jordan seguia instintivamente a senda do fio, desde a fissura superior no lado direito do rabo de Stephen até à parte de trás da coxa esquerda do rapaz.
- A água foi-se? - perguntou Stephen.
- Sim...
Jordan pensou nos pais e parou com o tratamento.
(...) - Presumo que não venhas connosco? - perguntou Roger.
- Preciso de ficar com Stephen neste momento.
Roger olhou furioso para Jordan, um olhar que este presumiu ser de ódio. Roger ergueu-se, virou-se e desapareceu pela porta de entrada, a abanar a cabeça.
(...) Outubro trouxe o tempo frio, apagando o calor prolongado do Verão. No mês que passara desde a aproximação do furacão Brandy tinham conseguido juntar setenta mil dólares para reconstruir a torre do sino de Bishop Polk (...). Stephen acabara de pintar novamente o gabinete do pai quando chegou o postal de Meredith. Mostrava uma praia anónima e uma concha. Na parte de trás ela imprimira: "Escrevo... Com amor, Meredith." Ele prendeu-o no quadro de avisos do gabinete.
Mónica foi à procura de Stephen no gabinete. Tinha desaparecido (...).
Ao fundo do corredor, Stephen saiu do duche, a toalha que tinha em redor da cintura a não conseguir esconder as cicatrizes vermelhas que lhe raiavam a pele como um mapa de estrada... só que sem início nem fim. Jordan virou o postal de Meredith e examinou o selo enquanto Stephen deslizou para a cama junto dele.
- México? - perguntou Jordan, voltando a pôr o postal na mesa-de-cabeceira.
- Não estão a desaparecer - disse Stephen.
- É provável que não desapareçam. Já não doem, pois não?
- Às vezes. Apesar de ser em alturas esquisitas. No meio da noite acordo e elas não doem, mas consigo senti-las..
Jordan desligou a luz.
- É provável que isso nunca deixe de acontecer - murmurou ele. - É provável que as sintas sempre.
Por baixo do edredão, Jordan seguia o trilho das cicatrizes no peito de Stephen (...). Monica rezou para que o sono viesse. A fotografia de casamento ficaria na mesa-de-cabeceira como penitência por cada dia em que não informara Stephen e Jordan de que o pai deles era o mesmo.
Stephen agora sonhava com música, um clamor de vozes rememoradas, uma complexidade de almas em que nenhum indivíduo falava a verdade, mas na qual as camadas acumuladas de mentiras e perdas abriam caminho a uma verdade rara, imensa e capaz de apartar as feridas de uma parte do mundo.
Nos sonhos de Stephen, Meredith estava sentada sob um céu pleno de estrelas e livre de nuvens, as pernas contra o peito, a olhar para o oceano ilimitado, mas com a queda retumbante de uma chuva recordada nos ouvidos.
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Christopher Rice in "Jogos Cruéis", Editorial Notícias, Cruz Quebrada, 2004, pp 280 - 286.
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18/08/10


" Berceuse"
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Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.
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Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios. Os
pedreiros deixaram de cantar à pedra:
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Hou! pedra, hou!
Hou! linda pedra, hou!
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e as canções de trabalho (uma espécie
de berceuses da fadiga) passaram
a matéria etnográfica. Por isso os
estudantes de português já não entendem
.
Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura ou
Sete anos de pastor Jacob servira.
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Mesmo o Schone Mullerin do Schubert que
se ouve ainda nos concertos clássicos
com vaga subserviência patega
(porque em alemão, não se percebe nada),
só os amantes do lied reconhecem.
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E se percebessem?
A moleira já não seria schon
e não teria 80 anos, bem bonito rol
como a de Junqueiro,
pela estrada fora toc, toc, toc, mas agora reclusa
numa casa geriátrica, em contagem crescente
da inacção.
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Muito pouco,
tão pouco, para um mundo
embalado na pesquisa espacial
de água em Marte.
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Inês Lourenço in "Coisas que nunca ", & etc, Lisboa, 2010, pp 23 - 24.
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17/08/10

" e ficar aqui para sempre, neste fim de tarde, "


"Polishop"
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click,
dormem em simultâneo sobre as escarpas
e sobre a sua beleza suja,
interior ao sono, interior à chuva,
colocam as mãos nos bolsos como se lá estivesse
parte de uma incompletude que os completasse,
consolidam a solidão inacessível,
sentem o vento processar o seu rigor irregular
nos pulsos rasgados,
ouvem música petrificada, julgam que o ritmo
e o movimento da cabeça os podem apartar,
e por isso se intitulam apenas
de ouvintes de música,
click,
nunca saberiam assinalar, por exemplo, nos negativos
da presente sessão, os lugares íngremes
das suas infâncias
que se consolam e flagelam entre si.
sobre eles disparo como se atirasse a matar
sobre as suas ideias transumantes
em direcção à trovoada oca
dos meus olhos brancos.
click
o crepúsculo carrega-nos, a confusão inicia-nos as fugas,
todas as fugas, todas as horas que a bem ou a mal
singram e quebram.
quem me dera poder embriagar-lhes a sombra,
desatar-lhes os nós da vida,
poder vê-los andar de novo,
e ficar aqui para sempre, neste fim de tarde,
compensando a minha completa falta de rosto
com a tripulação dos meus dedos
fingindo sobre a máquina fotográfica.
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Tiago Nené in "Polishop ", Ayuntamiento de Punta Umbría, 2010, p 16
(edição bilingue: tradução para castelhano de Santiago Aguaded Landero).
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16/08/10

"tu rêves, mais l'aube tarde encore/ à soufler sur les ruines, "


Tu rêves de villes que le temps
n'aura pas érodées, de forêts
qui dessinent des chemins vastes,
.
tu rêves, et sur la mer
les mâts des navires
rongent les pierres blanches,
la houle grignote le rivage,
.
tu rêves, mais l'aube tarde encore
à souffler sur les ruines,
les ombres se fracassent
contre la chair des maisons,
ébranlent la charpente fragile
des fenêtres par lesquelles tu vois
un peu d'espoir, crois-tu,
.
et comme lentement s'édifie un poème,
à l'intérieur de toi,
tu recueilles un à un ces lieux,
ces visages, tu touches à l'amour,
à tout ce qui peut encore être vrai
et beau, comme une promesse.
.
La Terre, à peine visible
- l'aurions-nous oubliée -
par le hublot des heures
sait-elle encore te rappeler
que tu n'es jamais
au-dessus de ce monde
qui avance maintenant
avec ses cassures
irréparables, - jamais tu ne seras
au-delà des vagues qui effacent
les pas humains, la beauté simple
des choses, et tu voudrais,
en cet instant où la Terre se retourne,
entendre souffler un vent oblique,
toucher du bout de ton âme
la peau fragile du temps, voir,
voir enfin s'ouvrir les ombres que l'on porte,
et comme un coeur, et comme un visage,
le monde reposer dans la paume de l'aube.
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Hélène Dorion in "Le Hublot des Heures", Éditions de la Différence, Paris, 2008, pp 76 - 77.
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15/08/10

" o sol devora meu peito/ com seu olho vasculhando "


" O Deslocamento de Ar "
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olhos vermelhos irisados
ela usa o tédio como enfeite
a juventude, fingido pesadelo
.
: a insónia é o contrário
da fome, sorri
.
o sol devora meu peito
com seu olho vasculhando
as janelas do quarto
.
como uma flor ela surge da cama
espírito de carne e osso.
.
você não tá me ouvindo!
.
as plantas nos canteiros da avenida
se movem com os carros em alta velocidade
o deslocamento de ar
.
ela se move como uma gata
sobre os lençóis
.
você não tá me ouvindo, seu idiota!
.
ela pega o travesseiro
pra começar uma batalha e faz um ruído
.
agora eu imitei
uma gaivota direitinho.
.
assim brilha a beleza
num mundo mal-amanhecido.
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Dirceu Villa in "Icterofagia", Editora Hedra, São Paulo, 2008, p 44.
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14/08/10

" e a licitação mais baixa/ sempre vence. "


"Licitação"

não sei o que esconde
o silêncio
nunca o entendi
talvez sirva
para leiloar sentimentos

sim, deve ser
exactamente isso
que acontece -
e a licitação mais baixa
sempre vence.

Tiago Nené in "Polishop", Ayuntamiento de Punta Umbría, 2010, p 40,
(Edição bilingue: tradução para castelhano de Santiago Aguaded Landero).
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13/08/10

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A França, as viagens marítimas, o perfume das amoreiras em Lavilledieu, os comboios a vapor, a voz de Hélène. Hervé Joncour continuou a contar a sua vida, como nunca, na sua vida, tinha feito. Aquela rapariguinha continuava a fitá-lo, com uma violência que tirava a cada sua palavra a obrigação de soar memorável. A sala parecia agora ter deslizado para uma imobilidade sem retorno quando de repente, e de uma forma absolutamente silenciosa, ela esticou uma mão para fora do vestido, fazendo-a deslizar na esteira, diante de si. Hervé Joncour viu chegar aquela mancha pálida às margens do seu campo visual, viu-a tocar ao de leve na chávena de chá de Hara Kei e depois, absurdamente, continuar a deslizar até apertar sem hesitação a outra chávena, que era inexoravelmente a chávena onde ele bebera, levantá-la ligeiramente e levá-la consigo. Hara Kei não parara um instante de fitar sem expressão os lábios de Hervé Joncour.
A rapariguinha levantou ligeiramente a cabeça.
Pela primeira vez tirou os olhos de Hervé Joncour e pousou-os sobre a chávena.
Lentamente, fê-la rodar até ter nos lábios o ponto exacto onde ele tinha bebido.
Semifechando os olhos, bebeu um gole de chá.
Afastou a chávena dos lábios.
Fê-la deslizar de novo para onde a tinha alcançado.
Fez desaparecer a mão no vestido.
Voltou a apoiar a cabeça no regaço de Hara Kei.
Os olhos abertos, fixos nos olhos de Hervé Joncour.
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Alessandro Baricco in "Seda", Difel, Miraflores, 1998, pp 30 - 31.
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12/08/10

"Revista de Poesia Saudade" Nº 12.


Já está à venda o Nº 12 da "Revista de Poesia Saudade". Com este número encerra-se assim a
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referida publicação. Parabéns à equipa que coordenou (e executou) este projecto! Seguem-se
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os nomes dos autores que colaboram na presente revista: Alfredo Ferreiro (Galiza), Amadeu
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Baptista, Ana Luísa Amaral, Ana Luísa Queiroz, António Cândido Franco, António José Queirós
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António Salvado, Armando Silva Carvalho, Daniel Jonas, Daniel Maia-Pinto Rodrigues, Fátima
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Valverde, Fernando Echevarría, Fernando Esteves Pinto, Fernando Grade, Fernando Guimarães
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Gisela Ramos Rosa, Graça Pires, Henrique Monteiro, Iacyr Anderson Freitas (Brasil), Ildásio
.
Tavares (Brasil), Isabel Cristina Pires, João Rui de Sousa, Joaquim Feio, Jorge Reis-Sá, Jorge
.
Velhote, Luís Adriano Carlos, Luís Filipe Pereira, Luís Graça, Luís Quintais, Maria João
.
Reynaud, Maria do Sameiro Barroso, Maria Teresa Horta, Nuno Dempster, Nuno Júdice,
.
Pedro Sena-Lino, Rosa Alice Branco, Rui Almeida, Sérgio Pereira, Tiago Patrício, Vasco Graça
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Moura, Victor Oliveira Mateus, Virgílio de Lemos (Moçambique), Xosé Lois García (Galiza)
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e Yvette K. Centeno.
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10/08/10


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    " Litania para um dia depois "

Ninguém sabe como foi. Como (súbito) desabaram
imensidões que por desígnio tanto quis. Jamais
me explicarão o derruir de tão altos cumes,
depois apenas pó - vazio, vazio tão vazio que para
o dizer nenhuma palavra serve. Contudo, tentá-lo-ei

agora: ia eu pela rua fora quando me apercebi - já
lá não estavas. Um aluimento inesperado, gume
que deveria doer, mas nem sequer. Como foi?
Com que meios? E quando, sim, quando, pois se
ainda há dias eras coisa tão presente?! Viajei eu tanto

(dentro e fora de mim) para agora uma rajada de ar
me aparecer com ar de libertadora; para uma inesperada
(e desinteressante) morte me encher assim a vida -
inútil viuvez de mim, lembranças já ossificadas
que deveriam doer, mas não. E, no quebranto

da memória, a falha é hoje uma evidência que liberta;
água, que, de tão límpida, corre em gorgolões
pelo verdete da cidade. Diz-me, que vieste tu aqui
buscar? Que vieste liquidar tantos anos depois?
Angústia para alimentar escritos? Pois bem, eis-me

finalmente livre! Gume de falha que deveria doer,
mas não. Como foi? E quando? Ninguém me saberá
explicar. Contudo, tentá-lo-ei eu agora: ia pela rua
fora, despreocupadamente, quando me lembrei
de olhar para dentro de mim - já lá não estavas.

Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 42.
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09/08/10

O livro-da-sabedoria não está escrito em qualquer uma das línguas vivas do mundo. Quando o abres é só silêncio que ouves - silêncio infinito. Por vezes parece-te ouvir o rumor do vento dos grandes desertos, mas é só a tua respiração fatigada. Por vezes parece-te ouvir uma voz ressoando numa gruta, mas é apenas uma aranha que tece a sua teia infinita. O livro-da-sabedoria é um livro vazio, perpetuamente fechado na sua dureza aérea, brilhante - rutilante. Para o leres terás de desaprender a linguagem de que és feito. Quando o abres, és atingido por um golpe de luz. Ofuscante - faiscante. Terás não apenas os olhos cegos para o mundo, mas também as mãos dormentes por terem tocado a substância do vazio. Regressarás em luz, transparente até aos ossos. Irradiante pela noite e negro pelo dia. O livro que abriste encerrou-se como a gruta secreta da morada do ser. Aceita perder-te. Aceita a significância do nada. Vive com a ferida lancinante permanentemente aberta. Ouve o sangue despenhando-se do alto - alfabeto dos alfabetos de todos os livros.
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Manuel Silva-Terra in "Lira", Editora Licorne, s/c., 2009, pp 38 - 39.
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