24/08/10

"A nossa/ vida esvai-se na transformação. E o que é exterior, cada vez mais diminuto,/ desaparece.(...)"


" A Sétima Elegia"
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Ó voz imensa, que a natureza do teu grito não mais seja
a procura da amada, não mais a procura; gritarias decerto com a pureza do pássaro,
quando o ergue essa ascendente estação do ano, quase esquecida
de que ele é um bicho cediço e não apenas um coração isolado,
que ele lança no azul sereno, nos céus interiores. Como a dele, seria
a tua procura da amada, não menos intensa -, para que, ainda invisível,
a amiga de ti se apercebesse, silenciosa, aquela em quem, lentamente, uma resposta
acorda e com o ouvir se aquece -,
aquela que inflamada sente o teu ousado sentimento.
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Oh! e a Primavera compreenderia -, não há recanto
a que não chegue o som da anunciação. Primeiro aquele
breve articular interrogativo, que no crescente silêncio,
um puro dia de afirmação vastamente envolve a sua mudez.
Depois subir degraus, os degraus do apelo, até ao sonhado
templo do futuro -; depois o gorjeio, fonte
que antecipa a queda do jacto em ascensão
num jogo de promessas... E, já próximo, o Verão.
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Não só as manhãs todas do Verão -, não só
o modo como se transformam no dia e brilham de início.
Não só os dias, tão ternos para com as flores, e lá no alto
para com as árvores, já formadas, fortes e possantes.
Não só a celebração destas forças desencadeadas,
não só os caminhos, não só os prados à noitinha,
não só, depois da tardia trovoada, um clarear que respira,
não só o sono que se aproxima e um pressentimento ao anoitecer...
mas as noites! Mas as altas noites
do Verão, mas as estrelas, as estrelas da terra.
Oh! estar outrora morto e sabê-las infinitamente,
todas essas estrelas: pois como, como, como as esquecer!
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Olha, eu chamaria então a amante. Mas que viesse
não só ela... Que viessem de frágeis sepulturas
jovens mulheres e que estivessem... Pois, como poderia eu delimitar
esse chamar chamado? As que estão afundadas
continuam a procurar terra.- Ó vós, crianças, uma só coisa
de aqui, uma vez possuída, valeria por muitas.
Não julgueis que o destino seja maior do que o devaneio da infância;
quantas vezes não ultrapassastes o Amado, ofegantes,
ofegantes após esse correr feliz, sem rumo algum, para o espaço livre.
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Estar aqui é magnífico. Também vós, ó jovens mulheres, o sabíeis,
vós que aparentemente renunciastes, vos afundastes-, vós, nas piores
vielas das cidades, ulcerantes e expostas
a todo o abandono. Pois a cada um cabia uma hora, talvez
menos de uma hora, um momento quase impossível de medir,
entre dois instantes, com medidas de tempo, em que ela teve
uma existência. Tudo. As veias cheias de existência.
Nós, porém, tão facilmente esquecemos aquilo que o sorridente vizinho,
nos censura ou nos inveja. Nós queremos
ostentá-lo visivelmente, mesmo quando a felicidade mais visível
se nos dá apenas a conhecer, quando intimamente a transformamos.
Em nenhum outro lugar, ó Amada, haverá mundo senão em nosso íntimo. A nossa
vida esvai-se na transformação. E o que é exterior, cada vez mais diminuto,
desaparece. Para onde havia outrora uma permanente casa,
propõe-se agora uma construção concebida, a toda a extensão,
da ordem do pensável, como se estivesse toda ainda no cérebro.
Amplos acumuladores de energia cria o espírito do tempo, informemente,
tal como o ímpeto tenso que de todas as coisas obtém.
Templos, já não os conhece. A estes, desbarato do coração,
nós mais secretamente os resguardamos. Sim. onde quer que subsista
uma coisa, uma coisa outrora feita de oração, de serviço, de genuflexão -
aflora já, tal como está, o invisível.
Muitos dela não se apercebem já, nem têm a vantagem
de a construírem agora no seu íntimo, com pilares e estátuas, maior!
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Cada insensível rotação do mundo tem destes deserdados
a quem não pertence nem o que foi, nem o que há-de seguir-se.
Pois o que há-se seguir-se é longínquo para os homens. A nós isto
não nos deve perturbar; antes nos dê a força de guardar
a forma mais reconhecível. Isto que outrora estava entre os homens,
no seio do destino, desses destruidor, estava
no não-saber-para-onde-ir, como ser sendo, e vergava para si
as estrelas de céus firmes. Ó Anjo,
a ti o mostro ainda, ali! no teu olhar,
fique por fim a salvo, finalmente erguido, agora.
Colunas, pilones, a Esfinge, esse erguer-se em anelo,
na soturna cor de cidades em estertor ou de estranhas cidades, da catedral.
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Não foi isto milagre? Ó Anjo, enche-te de admiração, pois somos nós,
nós, ó grande, que disso fomos capazes, narra-o porque o meu sopro
não basta para o exaltar. Assim, não deixámos
passar em vão os espaços, estes
nossos condescendentes espaços. (Como devem ser terrivelmente grandes,
pois milénios do nosso sentir os não fazem transbordar).
Mas era grande, uma torre, não é assim? Ó Anjo, era, essa torre, grande-,
grande, mesmo comparando contigo? Chartres era grande-, e a Música
subia ainda mais alto e ultrapassava-nos. E mesmo uma só
Amante-, oh! sozinha, à janela da noite...
não te chegava até aos joelhos-?
Não creias que eu te pretenda.
Ó Anjo, e mesmo que eu te pretendesse! Tu não vens..
Pois o meu
chamamento está cheio de oposição; contra semelhante
torrente é impossível caminhares. O meu grito
é como um braço que se estende. E a mão
que ao alto se abre para alcançar fica diante de ti
aberta, como defesa e advertência,
ó inalcançável, toda aberta.
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Rainer Maria Rilke in "As Elegias de Duíno", Assírio & Alvim, Lisboa, 2002,
pp 83 - 89 (Tradução: Maria Teresa Dias Furtado).
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