A limpeza das feridas de Stephen tinha-se desenvolvido de uma tarefa temida para um ritual solene. Monica transferiu a tarefa para Jordan diversos dias depois da tempestade. Stephen estava deitado na cama. Ouviram o barulho no exterior, o rumorejar de travões de camião. Stephen riu-se quando Jordan lhe tocou com o trapo na parte de trás da coxa.
- O que foi?
- Fazes sempre isso - murmurou Stephen.
E depois Jordan compreendeu. Quando limpava as feridas, Jordan seguia instintivamente a senda do fio, desde a fissura superior no lado direito do rabo de Stephen até à parte de trás da coxa esquerda do rapaz.
- A água foi-se? - perguntou Stephen.
- Sim...
Jordan pensou nos pais e parou com o tratamento.
(...) - Presumo que não venhas connosco? - perguntou Roger.
- Preciso de ficar com Stephen neste momento.
Roger olhou furioso para Jordan, um olhar que este presumiu ser de ódio. Roger ergueu-se, virou-se e desapareceu pela porta de entrada, a abanar a cabeça.
(...) Outubro trouxe o tempo frio, apagando o calor prolongado do Verão. No mês que passara desde a aproximação do furacão Brandy tinham conseguido juntar setenta mil dólares para reconstruir a torre do sino de Bishop Polk (...). Stephen acabara de pintar novamente o gabinete do pai quando chegou o postal de Meredith. Mostrava uma praia anónima e uma concha. Na parte de trás ela imprimira: "Escrevo... Com amor, Meredith." Ele prendeu-o no quadro de avisos do gabinete.
Mónica foi à procura de Stephen no gabinete. Tinha desaparecido (...).
Ao fundo do corredor, Stephen saiu do duche, a toalha que tinha em redor da cintura a não conseguir esconder as cicatrizes vermelhas que lhe raiavam a pele como um mapa de estrada... só que sem início nem fim. Jordan virou o postal de Meredith e examinou o selo enquanto Stephen deslizou para a cama junto dele.
- México? - perguntou Jordan, voltando a pôr o postal na mesa-de-cabeceira.
- Não estão a desaparecer - disse Stephen.
- É provável que não desapareçam. Já não doem, pois não?
- Às vezes. Apesar de ser em alturas esquisitas. No meio da noite acordo e elas não doem, mas consigo senti-las..
Jordan desligou a luz.
- É provável que isso nunca deixe de acontecer - murmurou ele. - É provável que as sintas sempre.
Por baixo do edredão, Jordan seguia o trilho das cicatrizes no peito de Stephen (...). Monica rezou para que o sono viesse. A fotografia de casamento ficaria na mesa-de-cabeceira como penitência por cada dia em que não informara Stephen e Jordan de que o pai deles era o mesmo.
Stephen agora sonhava com música, um clamor de vozes rememoradas, uma complexidade de almas em que nenhum indivíduo falava a verdade, mas na qual as camadas acumuladas de mentiras e perdas abriam caminho a uma verdade rara, imensa e capaz de apartar as feridas de uma parte do mundo.
Nos sonhos de Stephen, Meredith estava sentada sob um céu pleno de estrelas e livre de nuvens, as pernas contra o peito, a olhar para o oceano ilimitado, mas com a queda retumbante de uma chuva recordada nos ouvidos.
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Christopher Rice in "Jogos Cruéis", Editorial Notícias, Cruz Quebrada, 2004, pp 280 - 286.
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