10/08/10


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    " Litania para um dia depois "

Ninguém sabe como foi. Como (súbito) desabaram
imensidões que por desígnio tanto quis. Jamais
me explicarão o derruir de tão altos cumes,
depois apenas pó - vazio, vazio tão vazio que para
o dizer nenhuma palavra serve. Contudo, tentá-lo-ei

agora: ia eu pela rua fora quando me apercebi - já
lá não estavas. Um aluimento inesperado, gume
que deveria doer, mas nem sequer. Como foi?
Com que meios? E quando, sim, quando, pois se
ainda há dias eras coisa tão presente?! Viajei eu tanto

(dentro e fora de mim) para agora uma rajada de ar
me aparecer com ar de libertadora; para uma inesperada
(e desinteressante) morte me encher assim a vida -
inútil viuvez de mim, lembranças já ossificadas
que deveriam doer, mas não. E, no quebranto

da memória, a falha é hoje uma evidência que liberta;
água, que, de tão límpida, corre em gorgolões
pelo verdete da cidade. Diz-me, que vieste tu aqui
buscar? Que vieste liquidar tantos anos depois?
Angústia para alimentar escritos? Pois bem, eis-me

finalmente livre! Gume de falha que deveria doer,
mas não. Como foi? E quando? Ninguém me saberá
explicar. Contudo, tentá-lo-ei eu agora: ia pela rua
fora, despreocupadamente, quando me lembrei
de olhar para dentro de mim - já lá não estavas.

Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 42.
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