31/05/11


" O Brinquedo do Céu"


o tecto azul sob si tem vários brinquedos intocáveis
imagens que o olhar concentra no seu poço de admiração
todo um quadro de paletas esbatidas e carregadas de ar em movimento
o vento que conduz as nuvens e agita os braços das ventoinhas do parque eólico

as nuvens de um azul imposto de cinzento
colocam-se entre feixes de outras que são rastos de aviões que não passaram
mas poderiam

debate-se agora a perspectiva com a evolução do quadro
tudo passa e só a lembrança pode reformular a passagem do tempo
só importa fixar o momento em que tudo passa
pois tudo passa e não adianta agarrar o instante
fica a memória do real avião que feliz atravessa seguro o centro da perspectiva
aérea praia completa do momento ido
onde todo o movimento se espraia ao sabor do vento
e nada nunca é como foi há instantes

 António José Borges in Revista "O Escritor" Nº 24/25, A.P.E., Lisboa, Dezembro 2009.
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29/05/11

Soneto CXXX de William Shakespeare dito por Daniel Radcliffe



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Minha amante nos olhos sol não tem,
mais rubro é o coral que sua boca,
se a neve é branca, o peito é escuro e bem,
se há toucas de oiro, negro fio a touca.
Vi rosas brancas, rubras, damascadas,
não tem rosas na face, ao contemplá-la,
e há essências que são mais delicadas
do que o bafo que aminha amante exala.
Gosto de ouvir-lhe a voz, contudo sei
da música mais doce a afinação,
e uma deusa a passar jamais olhei,
a minha amante a andar põe pés no chão.
Creio no entanto o meu amor tão raro
quão falsas ilusões a que o comparo.

  William Shakespeare, in " Os Sonetos de... ", Bertrand Editora, Lisboa, 2002,
p 271 ( Tradução de Vasco Graça Moura)
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28/05/11

" Ella da pan o láudano para/ las heridas o sal para la sed ... "


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 ( Primeiro poema do ciclo "Mi pluma" )

Igual que el lecho, es la pluma
ámbito diverso y amplio donde
junto al amor, cabe el desamparo
y la aflicción.
Allí se extiende
la desazón y la alegría: igual al
romo que llora la gacela, que al
tembloroso y solo que gime empezonado,
que lo mismo al galán que al viejo
desprovisto: pluma diversa, siempre la
misma: continua en sí, punta y cabida.

Ella da pan o laúdano para
las heridas o sal para la
sed y vinagre al que agua
quiere.

"Ven a salvarnos",
dice el mancebillo. Y en el
espanto tiene su tinta. "Ven",
dice la tríntina "pon la gloria
en mis manos", y en la íntima
nube tiene pan y manteca: el
alimento inicuo. "Dame la plenitude",
dice el languidomundo, " de Aladino
la luz" y recibe la parca materia
de acarreo.

Ay, de aquel que ruega
y llora: reciba el todo, ya recibe
parte. Aquel que gime  qué le pide
al mundo, a la sonanta, sino
el resíduo, la gransa, la solfa,
el desafino?
Aúnque recta e
inmutable, solícita al servicio
y prístina al mandato, qué indócil,
qué casquimanta, qué madre de sí, qué
adusta, cuánto no donante, qué perpleja
en su frío!

Te poseo de toda guisa:
morada como la chinche
sangrosa, verde como el
retamar, negra como la corazón
de les centolles, dorada del
salto de gacela, plata argenta
como el Cuzco y las andinas nieves,
marrón avieso que es color de muerte:
iguala siempre, dando la misma calofrío.
Idéntica y temporal.
Todas de madre y de padre,
amante, esposa, prima, circuncisa, napolitana
alba: Todas la misma: ciega de mi corazón,
imparpable amor, mármol de mi vida, amante
no divisa, fría, desposeída, alcuza y branquia.

Así la amo: material
y diversa: introversa
y secreta: enteca y
rutilante. Mísera y
magnífica.
Como a nuestro
más profundo la amo: el
pensamiento que fluye, como
una garza por entre las aguas,
la golondrina por entre las ciénagas.

Ay, la sorda reclámale a la muda:
no hables, corazón, cualquier muro
es oído!

  Rafael Ballesteros in "Testamenta", Visor Libros, Madrid, 1991, pp 81 - 83.
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Cidade intemporal
é lá que existes
no nocturno vazio
um homem está de pé
tem nas asas   na língua
uma chama inviolada
uma causa que varre
as sementes   a febre

devagar sobre o orvalho
o suor corre à tona
algas azuis nos cílios

e um vestido de penas

 Madalena Férin in "Viola Delta" Vol. XXV, Edições Mic, Estoril, 1998, 36.
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Seis lâminas de navalha
o altar portátil
os dragões perfilados
gravada a cruz na pele
brancas perversas   mudas
dançando sempre em roda
do vestido fizemos as paredes

Madalena Férin in "Viola Delta", Vol. XXV, Edições Mic, Estoril, 1998, p 38.
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24/05/11

Apresentação do livro "reflexões à boca de cena"

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 REALIDADE E REPRESENTAÇÃO NA POESIA DE JOÃO RICARDO LOPES

"reflexões à boca de cena" de João Ricardo Lopes, quer pelo título quer por alguns dos seus elementos constitutivos, poder-nos-ia levar a considerar, segundo um olhar apressado e desatento, que estamos perante um livro de poesia tomando a dramaturgia como seu nó central e aglutinador. Contudo, na minha leitura, este aceno interpretativo é marca de uma ambiguidade procurada que irá funcionar como chave da real preocupação da obra, isto é, o território da teatralidade não é mais do que um pré-texto daquilo que ao poeta se impõe de modo insofismável - o ser humano enquanto actor social... com os seus desencantos, os seus rasgos de lucidez, as suas paixões.
Ao carácter abrupto do início da obra: abre-se o pano e eles existem (p 8), segue-se um desfilar de figurantes - qual corso atribulado e premonitório - que atravessa todo o palco-cidade onde somos chamados a estar: os que vociferam de calças na arregaçadas (p 8), bobos e anões, cuspidores de fogo/ a meretriz das sardas... ( p 12), um borrachão com a língua de fora, assim como os cães vasculham a noite (p 28). De imediato me agradou esta concepção do labor poético que tão bem articula o esquadrinhar contínuo do mundo interior, que tem um dos seus pontos altos no poema O actor olha-se ao espelho (p 70):

não esperes tanto por mim
não tenho futuro
como passado não tive.
belo talvez seja
porém cru
não menos que estátua
nem melhor do que areia.
como toda a criatura
o que sou não sou.
as mãos ardem-me de frio
e talvez esteja já morto
ou longe de mais.
não esperes tanto por mim
não sabes quem esperas

(este belíssimo solilóquio traz para o proscénio um dos mais interessantes temas de reflexão sobre poesia: a relação do eu com o seu duplo) com um olhar atento e perscrutador do mundo exterior - veja-se, por exemplo, um excerto do poema No centro do palco ( p 56):

no centro do palco as lâmpadas e os adereços
descascam amorosamente batatas
limpam o ranho à filhota das tranças
a plateia está absoluta no encalço da cena
só respiração e alguma tosse medindo
a qualidade de representação.
(...)
uma diversão a vida, um estaleiro de pequenos poemas
( e quem precisa dos enormes?), uma pantomina.
e no fim as palmas, as palmas abundantes
o aceno imprescindível da multidão (sê-lo-á?)
bravos, euforia, teatro delicado
é isto a vida, isto sim, a poesia

Este equilíbrio, este subtil - e arguto - doseamento do interno e do externo, este relacionar que adquire mesmo foros de miscigenação, é, no meu entender, um dos pontos altos da voz poética de João Ricardo Lopes: viver é estar num palco de múltiplos cenários, viver é representar dados papéis repletos de conflitos (não só inter-papeis, mas também intrapapel!), viver é esta incessante procura de um Equilíbrio Instável ( tomando agora de empréstimo - assumidamente - o título da peça de Edward Albee, que Tony Richardson passaria exemplarmente para o cinema com a mítica Katharine Hepburn), equilíbrio entre o dentro e o fora de nós, mas viver é, acima de tudo, a lucidez e a fidelidade: a nós próprios, aos que nos amam ( porque no esboroado palco do hoje já só esses contam!), ao indizível milagre de estarmos vivos neste espaço que nos foi concedido e de que urge cuidar. Quanto ao exterior, ele irrompe em vários poemas deste livro:

(...)
este circo engraçado, colorido, oco por dentro
tanto como por fora - frágil sim, como na moleirinha
dos teus sonhos

  ( p 10)

(...)
há entre nós esta cidade inteira
esta lâmina de silêncio que nos
atravessa ao meio...

  (p 30)

Este estado de alma do sujeito-poético, que é simultanemanente desorientação e vontade de resistir, perpassa toda a obra unindo-se a uma dicotomia que o autor expressa nas mais diversas situações - a escuridão e a luminosidade:

com a boca às escuras, a minha saudade
ela apenas, escuta-a, escuta-a só

  ( p 20)

A noite é para não dizer nada.

  ( p 42)

é na sombra a mais possível das germinações
na penumbra, no poema
na esquina obscura de todo o palco

  ( p 74)

Interessante é também o facto de João Ricardo Lopes não conceder à referida luminosidade nenhum estatuto redentor, antes pelo contrário: todo a emergência do possível encontra-se constante e ininterruptamente  ameaçada:

  "Ruído"

tudo o que disse não disse.
luzes negrentas cevando os olhos
como se cedo fosse já tão tarde.
uma janela declina sobre nós
a pálpebra rude e silenciosa.
que tenha valido a pena. Tudo

  ( p 46)

Frente à lucidez com que se observa o palco e cujas variáveis nos têm sido mostradas, e fundamentadas, nas últimas décadas; frente a esta representação fétida e de mau gosto esventrada à saciedade por vários autores: o vazio e o consumismo (por Baudrillard, Lipovetsky, etc.), a ganância e a perversa manipulação do outro, apenas para que a gratuita exibição de poder conste ( por Singer, Hirigoyen, etc.), enfim, frente a uma cidade esfacelada e à deriva, o eu-poético resgata a ousadia da espera e da reinvenção:

" Alquimicamente"

também eu possuo uma retorta enganadora.
transformar em ouro o teu coração de pedra
nunca foi fácil e o fracasso sacode-me o sono em
estremeções desalmados, sou eu quem te
chama e há um caminho de árvores entre nós.
és longínqua e ris de cada vez que me explode
a decepção e eu juro acabar assim, esfarrapado
vencido e sem ti. mas o poema renasce e eu
renasço devagar. um coração de ouro é coisa de
que não se desiste. Nem até à loucura, nem até ela

   ( p 60)

João Ricardo Lopes coloca a sua escrita no seio desse paradigma que é o do sentir e ser do homem contemporâneo e acerca do qual tanto se tem escrito também nos últimos anos, veja-se. por exemplo, "Les uns avec les autres - Quand l'individualisme crée du lien" de François de Singly. Nesta poesia estamos perante um lirismo que respira e traduz, não só temas que são de todos os tempos, mas também inquietações bem delineadas no hoje, aliás, e já que falei da obra de Singly, poderei acrescentar que a situação de desacerto com o mundo em que se encontra o eu-poético é atenuada fortemente, mas jamais resolvida, pela presença da amada. Contudo - e pormenor interessante - esta amada, tal como a peça do primeiro verso do livro, surge abruptamente; as suas aparições são sempre da ordem do contingente e do ameaçado ( cf. p 14, o poema que dá o nome ao livro); a amada traz consigo algo de salvífico, todavia é sempre de uma salvação possível de que se fala, jamais de uma salvação necessária: o poema "Ligústia" ( p 40) traduz de forma magistral esta carência, já que, apesar da amada ser tão bela, a noite não cessa de vigiar o poeta, de o procurar. Há, pois, uma falha essencial na alma desta voz, um espaço impreenchido - e impreenchível -, uma clareira onde todo o mundo poderia caber, mas de onde a sua poesia e a sua busca extravasam. Dizem os grandes estudiosos destes temas ( e estou a lembrar-me dessa figura enorme que foi Martine Broda) que esta busca fundamental (da Coisa) é a marca dos grandes poetas, pois eu - qual eterno aprendiz como Sérgio! - encontrei-a nesta obra de João Ricardo Lopes. E não apenas isso: a extrema poeticidade deste livro e a pertinente acuidade com que se olha temas e subtemas acabam desembocando numa apurada estrutura concebida para enfatizar os intentos originários do autor: à permanência do palco, à sucessão dos actos, às intermináveis reflexões mesmo ali à boca de cena, terá corresponder a figura óbvia, e desalentadamente rotineira, da continuidade da peça. Por tudo isto, à medida que o livro de vai aproximando do seu fim, ele aproxima-se igualmente de um princípio - veja-se este excerto do penúltimo poema:

 "Regressar"

regressar regressa-se de muita maneira
a casa, à noite, às vezes, nunca mais, para sempre.
mas igualmente a depois da casa, a nós próprios
ao toque da mobília, ao cheiro do sabonete
a outros tempos, à altura em que, a de novo agora
...
porque é assim a vida, porque inifinita graça é a de
emendar a réplica, porque sim, porque assim é o
teatro do coração, porque redondo é o olhar
porque no fim é o princípio, porque, porque sim

   ( p 104)

Neste vivenciar, simultaneamente usual e novo, de um quotidiano que, sendo de tantos, é também de todos, o contra-regra endereça-nos o derradeiro poema deste itinerário poético: Prólogo - é o último título da representação. Que prossiga, então, a realidade, essa miríade de cenas que vamos atravessando... e que inexoravelmente nos atravessam também.

                                 Victor Oliveira Mateus
.
  João Ricardo Lopes,
                                                                           Bernarda Esteves
                                                                                     e Victor Oliveira Mateus

(Clicar em cima da imagem)

23/05/11

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" Oscar Wilde a Lorde Alfred Douglas"


Basta-nos sentir as portas
a baterem contra o vento,
o ferro a rachar o fogo
das soleiras, a sombra erguendo-se
da camilha para trazer o corpo
aos ombros. A fímbria
de um gesto criminoso.

Basta-nos aumentar o volume
até ao silêncio, estoirar os tímpanos
com o bafo sêfrego das bestas,
cumprimentar o desejo
até uma próxima e paradoxal
despedida. Basta-nos sentir

que sentimos o tom profético
da cada aceno, quando pela
secura dos dias um de nós
se chega ao outro e diz: vem-te
para cá, para dentro desta cela,
deixa-me sentir o teu perfume
mais deseducado, condenável.

  Henrique Manuel Bento Fialho in "A Dança das Feridas", Edição do Autor, s/c., 2011, p 87.
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22/05/11

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"Louis Malle a Candice Bergen"


Da última vez que me visitaste,
lembro-me bem, trouxeste-me
rebuçados e limonada.
Ficámos sentados a assistir
ao meu trabalho mais recente,
à espera que a forma nos capturasse
para dentro do poema.

Acabados os rebuçados e a limonada,
olhámo-nos descorçoados.
Afinal, o que parecia ser
um importante atalho
para a imortalidade revelou-se,
entre rebuçados e limonada,
apenas mais um degrau para a morte.

Pouco mais nos ligava
que um mero apego afectivo.
Talvez porque tal não nos bastasse
perante a evidência da fugacidade,
resolvemos unir-nos pela carne.

Desde então, somos um só corpo
que jamais trocará um copo de limonada
e um pacote de rebuçados
por uma qualquer forma de imortalidade.

  Henrique Manuel Bento Fialho in " A Dança das Feridas", Edição do Autor, s/c., 2011, p 40.
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21/05/11

Acerca da Poesia de Vera Lúcia de Oliveira

      Vera Lúcia de Oliveira,
                                                                                     Victor Oliveira Mateus
                                                                         e Filipa Barata.
                                                                                                     Livraria "Pó dos Livros" (20/5/2011).

(Clicar sobre a imagem.)
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O primeiro tópico que me ocorreu quando pensei falar da poesia de Vera Lúcia de Oliveira, prende-se com o modo límpido como esta autora se relaciona com a Linguagem, um modo desprovido de quaisquer prestidigitações estilísticas ou efeitos que poderiam correr o risco de empobrecer os seus poemas. Contudo, a autora conhece bem o terreno onde se move... Muitos de nós lemos, em tempos, uma célebre obra do Prof. Cerqueira Gonçalves, onde ele, traçando identificações entre os textos literário e filosófico, dizia que um dos motivos dessas aproximações se ficava a dever ao facto de ambos usarem a Linguagem natural. Não pretendendo ir por aí agora, gostaria apenas de dizer que a poesia, no seu discorrer, não é, nunca foi, nem conseguirá ser, até pelo facto de não poder recorrer à eficácia das Linguagens artificiais e dos  procedimentos lógicos, um discurso que apreenda rigorosamente as múltiplas vertentes da experiência humana, quer quanto à sua totalidade quer naquilo que elas são em si mesmas. Aliás, e relacionado com isto, poder-se-á até fazer, ao nível de uma sabedoria espontânea, a seguinte experiência: se eu disser branco - e partindo de hipótese que o receptor não tem qualquer lesão na área cerebral  que irá receber este estímulo auditivo nem na área secundária que o irá interpretar e coordenar -, no cérebro desse mesmo receptor formar-se-á a representação, não do azul nem do vermelho, mas do branco, o problema colocar-se-á ao nível da gradação das coincidências, do mesmo modo se entrarmos numa loja para comprar tinta branca imediatamente o empregado nos mostrará um catálogo com uma ou duas dezenas de brancos. Não me parece que fique mal a seguir a Cerqueira Gonçalves citar um ensaio de Antonio Brasileiro (A Estética da Sinceridade, p 14), onde o autor, com uma certa ironia nos diz: "Há pouco tempo um desses tipos que está sempre em dia com a última moda do intelecto tentou me convencer de que a diferença entre um bom poema e uma bula de remédio, por exemplo, era nenhuma. Produtos culturais ambos. E só". Ora este é, para mim, o primeiro segredo da arte de Vera Lúcia de Oliveira: movendo-se numa Linguagem despojada, num poema curto e num estilo que recusa todo o tipo de ornado, a poeta insiste em escrever poesia... e não bula de remédio; ela sabe que falar de algo, na prática, será sempre do campo do aproximativo e do incompleto::

"Teoria e prática"

não tinha termo não tinha jeito
de falar do que era uma perda
vivera e aprendera em todos
os livros que dentro da vida
há morte mas uma coisa é a teoria
outra a prática

  ( in A Poesia é um Estado de Transe, p 14)

Ou ainda:

"Por trás"

por trás do olho
sustar é perigoso

por trás do olho
respira sempre um outro
olho suspeitoso
palpar por dentro é vão
por onde um novo olho sobreposto
espreita o mesmo vão

 (in op. cit. p 24)

A autora, em certos poemas, fala-nos mesmo da contaminação (ou do desdobramento) que a Pragmática acaba introduzindo no seio de Linguagem:

" Tem palavras"

tem palavras que têm cicatrizes
a palavra apego, a palavra parto
a palavra tempo
dentro elas são de madeira
dentro elas se impregnam
quando a chuva bate na janela
penetra os poros

( in op. cit. p 13)

Finalmente, e relativamente a este tópico, posso ainda acrescentar que Vera Lúcia de Oliveira articulando a concisão do seu dizer poético com um subtil manejo do código linguístico e do cânone literário entra pelo universo da narratividade adentro, fugindo às armadilhas da microficção e tecendo antes poemas que adquirem uma certa função de alegoria dentro de um universo socio-cultural específico. Veja-se, por exemplo, o seguinte:

"A igreja"

a igreja brilhava em silêncio as pombas
do espírito santo voavam de vez em quando
as andorinhas tinham seus ninhos o padre
que mandara trocar o pavimento por mármore
da mais fina proveniência vivia em eterna luta
com os pássaros amaldiçoados que evacuavam
por toda a parte

( in No Coração da Boca, p 45)

Fugindo à tese que a poesia retrata fielmente o real ( numa época em que até a Fotografia, bem como o Cinema, afastaram já de si tal pretensão anacrónica de se deixarem restringir a uma única função da Arte) apercebemo-nos, neste último poema, de uma série de remissões e abrangentes sentidos (as pombas do espírito santo a fazerem-nos lembrar Alberto Caeiro; a luta do padre solitário contra os pássaros, inclusivé contra os de natureza divina, que enchiam de esterco a igreja, etc.) que nos dão a ver o modo arguto - e apetece-me mesmo dizer: sibilino! - com que a poeta tece os seus textos, assim como todo um universo poemático.
Neste segundo tópico ocorre-me dizer que não foi por acaso que acabei de utilizar o verbo tecer. A imagem da poeta, ao longo da leitura dos seus livros, foi-me surgindo sempre geminada com uma outra - a da tecedeira. Assim, foi com alegria que encontrei, dias depois do início das minhas leituras, através da mão do grande poeta e ensaísta que é Lêdo Ivo, a confirmação do que em mim temia ser mais do que pura conjectura: diz-nos, pois, o referido académico no seu Prefácio ao No coração da boca, que a autora "(...) recusa o fulgor e o esplendor, preferindo o caminho dos monólogos desolados que registram o desamparo e a colisão de seres miúdos, de pequenas vidas aflitas (...) O tecido poético de Vera Lúcia de Oliveira não é uma tapeçaria, antes um estopa (...) A poesia é construção, desconstrução, reconstrução. Vera Lúcia de Oliveira constrói, desconstrói e reconstrói: tece, destece e retece o tecido da vida." Suspeitando que o vocábulo estopa foi escolhido, aqui, como modo de clarificar um dado quotidiano socio-económico, continuarei a usar, fugindo agora delibaradamente ao rigor, o de tapeçaria. Pois nesta poesia, paralelamente à tentativa de apreensão de uma dada ordem, quer no corpo do mundo natural e do mundo humano, quer no corpo do próprio texto, há também um vincado intuito de com este nosso Todo entrar em comunicação directa - o transe deste seu último livro. Mas - e uma vez mais Vera Lúcia parece pretender baralhar incautos - através de um conceito que julgávamos que a tradição tinha clarificado, a poeta acaba falando-nos de outra coisa: o transe a que ela se refere não é o que podemos encontrar em vários autores, como por exemplo os místicos do século XVI espanhol, nestes estamos perante um movimento ascensional do sujeito visando uma transcendência que o supera ontologicamente e à qual se encontra subordinado, é esta a concepção de transe que encontramos em S. João da Cruz e Sta. Teresa de Ávila, por exemplo. Mas o transe de que nos fala Vera Lúcia tem o vector em sentido contrário, e, perdoem-me a heresia religioso-interpretativa: agora não é o indivíduo que se desprende do sensível para tentar chegar a Deus, é precisamente o contrário, ou seja, é o divino que, se quiser comunicar com alguém, ou entrar em contacto com quem escreve os seus versos e sente o real, terá de descer a um plano outro - veja-se por exemplo:

"Acordou de noite"

acordou de noite e disse que sufocava
que não conseguia respirar que uma angústia
dentro rasgava o pulmão as vértebras
não adiantava aquele remédio aquele leito
ela sabia
que na hora chegada
do dia que Deus tinha determinado
dentro da grande língua da terra
ela teria de entrar

  ( in A Poesia é um Estado de Transe, p 8 )

Atente-se ainda a um outro poema onde esse acto de ser tocado aparece agora com mais nitidez:

 "Há uns que são engenheiros"

há uns que são engenheiros
e calculam tempo e dimensão
do arcabouço
há uns que são carpinteiros
e medem ângulos exatos
interjeições da matéria
há uns que vagam no arcano
são medidos e tocados
até perceberem a proporção
correta de cada signo
que revela o mistério

 ( in op. cit. p 14)

É este, na minha leitura, o transe de que nos fala Vera Lúcia de Oliveira na sua elaborada e paciente tapeçaria poética: não uma subida para se juntar, num outro plano, à divindade, mas um vivenciar, no aqui, tudo aquilo que, nas coisas e nos seres, é extra-ordinário e divino, pois não nos enganemos, o mistério de que ela nos fala, e como escreve no poema com  o mesmo nome, não carrega vozes, ele está antes na aragem, na cozinha, nas panelas limpas/ nas tampas penduradas nas hastes/ na goteira incessante da pia. Dito de outro modo: o mistério está por todo o lado e resulta desse contacto directo com o divino destas mesmas coisas e destes mesmos seres, através dessa apreensão, que, como a poeta também nos diz, dá-nos a proporção correcta. Para finalizar, regresso ao ensaio de Antonio Brasileiro, volto de novo à questão da Linguagem e do fazer poético. Refere este autor, após algumas citações de Valéry, que a poesia é resistência, resistência e sobrevivência, e que " numa época de simplificação da linguagem, e de insensibilidade em relação às formas, há que pensar mesmo na poesia como uma coisa preservada", ou, posso eu acrescentar, como coisa a preservar. É isto exactamente o que faz Vera Lúcia de Oliveira: numa Linguagem, que, optando pela clareza, mas nada tendo de simplificação, como acabámos de ver, resgata o divino que existe em tudo aquilo que -para usar aqui um termo tão caro à mundividência llansolinana -; nos mais banais, e muitas vezes sofridos, gestos do quotidiano, a poeta recupera (e preserva) o que neles é essencial, e com eles consegue esse transe que é motor e matéria prima da sua poesia.

                                                                    Victor Oliveira Mateus
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18/05/11

Lançamento...

(Clicar sobre a imagem)
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LANÇAMENTO DO LIVRO "REFLEXÕES À BOCA DE CENA" DE JOÃO RICARDO LOPES
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DIA 21 DE MAIO (SÁBADO), PELAS 16H, NA LIVRARIA PÓ DOS LIVROS, AVª MARQUÊS
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DE TOMAR, 89 - LISBOA.
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A APRESENTAÇÃO DA OBRA ESTARÁ A CARGO DE VICTOR OLIVEIRA MATEUS
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E A SESSÃO CONTARÁ COM A PRESENÇA DO AUTOR E DA PROFª BERNARDA ESTEVES
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DA UNIVERSIDADE DO MINHO, RESPONSÁVEL PELA VERSÃO INGLESA DESTE LIVRO.
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16/05/11


A própria estrutura conceptual da fidelidade mostra que ela é um sentimento sociológico ou, se se quiser, um sentimento sociologicamente orientado. Outros sentimentos, independentemente da maneira como possam ligar as pessoas umas às outras, têm, todavia, algo de mais solipsista. Afinal, até o amor, a amizade, o patriotismo ou o sentido do dever social ocorrem e perduram essencialmente no próprio indivíduo, de forma imanente - com também se revela da maneira mais estrita na pergunta de Filipo: "Se eu te amar, a ti que te importa?" Apesar do seu extraordinário significado sociológico, estes sentimentos continuam a ser, acima de tudo, estados subjectivos. De facto, são produzidos apenas pela intervenção de outros indivíduos ou grupos, mas isso acontece mesmo antes de a intervenção ter passado a ser intervenção. Mesmo quando são dirigidos a outros indivíduos, a relação para com estes indivíduos é ( pelo menos não necessariamente) o seu verdadeiro pressuposto ou conteúdo.
Mas é este precisamente o significado da fidelidade (pelo menos como aqui é discutido, embora o uso linguístico também lhe atribua outros significados). A fidelidade refere-se ao sentimento particular que não é dirigido para a posse do outro como o bem eudemonístico de quem a sente, nem para o bem-estar do outro como um valor extrínseco e objectivo, mas para a preservação da relação com o outro. A fidelidade não produz esta relação; portanto, e contrariamente a estes outros afectos, não pode ser pré-sociológica; atravessa a relação a partir do momento em que ela começa a existir e, como a sua autopreservação interna, faz com que os indivíduos-em-relação se mantenham fortemente unidos um ao outro. Este carácter sociológico específico talvez esteja ligado ao facto de a fidelidade, mais do que outros sentimentos, ser acessível às nossas intenções morais. Outros sentimentos dominam-nos, como a chuva e o sol, e as suas idas e vindas não podem ser controladas pela nossa vontade e não são acessíveis às nossas exigências morais. Mas a ausência de fidelidade impõe uma reprovação mais severa do que a ausência do amor ou da responsabilidade social, para além das suas manifestações meramente obrigatórias.
Para além disso, o seu particular significado sociológico faz com que a fidelidade desempenhe um papel unificador em relação a um dualismo básico que atravessa a forma fundamental de toda a sociação. Este dualismo consiste no facto de que uma relação, que é um processo vital flutuante, em constante desenvolvimento, recebe, no entanto, uma forma externa relativamente estável.

  Georg Simmel in " Fidelidade e Gratidão e Outros Textos", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, pp 38 - 39 (Tradução de Maria João Costa Pereira).
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15/05/11


      " O osso"


tinha uma delicadeza feminina
amava com seu jeito silencioso
de cão que fica aguardando um osso
depois deu para morder a sombra
da memória, deu para sofrer
por alguma coisa que lhe faltava
não sabia bem quando a perdera
mas foi por isso que desandou
a rosnar para o mundo

  Vera Lúcia de Oliveira in "A poesia é um estado de transe", Portal Editora,
São Paulo, 2010, p 21.
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   " O pedido "


chamou a família
vocês nunca me entenderam
vocês nunca ouviram o moinho dentro
ralando um milho sem piedade que era
a minha alma, a minha espera, a minha
vontade de ser amado, vocês não souberam
ver o que atrás da minha fala mansa eu pedia
o que vocês acham que eu estava pedindo?
o que vocês acham que eu vivi pedindo?

  Vera Lúcia de Oliveira in "A poesia é um estado de transe", Portal Editora, São Paulo,
2010, p 47.
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     "O caminho"


disse que precisava fazer o caminho de novo
entrar no útero crescer lá dentro
que precisava rasgar a carne de novo
gemer a fome cuspir a raiva
de ter sido gerado não do jeito
que ele tinha sonhado mas do jeito
que o tinham feito

 Vera Lúcia de Oliveira in "A poesia é um estado de transe", Portal Editora,
São Paulo, 2010, p 48.
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14/05/11


        "Nota de rodapé"


lâmpada baça por onde vem o silêncio
segregado e resfolegam os olhos.
faço-o de novo até muito tarde
e tu reclamas-me docemente, por entre
capítulos obscuros de papel pardo
e destroços de carvão.
às vezes distrai-me a asa de um queixume
o teu corpo sai a terreiro, como que a
defender o quinhão de lume que lhe pertence.
é tarde e tu respiras convulsionando
as minhas palavras, adormecida.
não cheguei a dizer-to, nunca chego
a dizê-lo. o amor é sempre tão de repente

 João Ricardo Lopes in " reflexões à boca de cena", Editora Labirinto, Fafe, 2011,
p 44 (Edição bilingue: versão inglesa de Bernarda Esteves. Posfácio de daniel gonçalves).
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        " Se ao menos a vida"


se ao menos a vida fosse tão simples de limpar.
no final de cada noite era sobre o tablado
um correr de vassouras e de esfregonas
e depois tudo fresco, tudo pronto para sermos a velha vida
quer dizer, a folha mal escrita, o garatujo promissor
quer dizer, o antes de ser tarde, os olhos habituados
às estrelas, ao esplendor de cósmicas explosões no
alabastro das madrugadas proto-históricas.
mas a vida é uma versão só, sem duas vezes
um coro definitivo de ervas tenras que
devagar se despedem, cena após cena, e no fim
o desenlace do costume, as palmas, os rostos sombrios
que entram, o público que roda, tudo estranho
tudo devagar - que a vida é um teatro sem comiseração

 João Ricardo Lopes in " reflexões à boca de cena", Editora Labirinto, Fafe, 2011,
p 94 (Edição bilingue: versão inglesa de Bernarda Esteves. Posfácio de daniel gonçalves).
 
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  "A Porta"


Alguma coisa fora de mim
está escondida em mim
como um coração exterior

Às vezes canta mesmo a meu lado
com a minha voz
como se tivesse eu cantado

Talvez estas lágrimas
não me pertençam nem este momento
nem este sentimento de este sentimento

Que rosto real
me olha e se vê?
Que porta física
tenho que passar?

  Manuel António Pina in "Poesia Reunida", Assírio & Alvim, Lisboa, 2001, p 112.
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13/05/11

" (...) De tudo isto,/ durante dois, três anos, nada te disse./ Entretanto,"

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" O Hóspede"

As batatas cresciam no canto do cercado
naquele Setembro. Foram a comissão de boas vindas!
Os primeiros frutos da nossa própria terra. E o seu sabor
foi a primeira lenda. Pioneiro
na nossa própria vida, nessas manhãs -
comprei as enxadas, os ancinhos, os fatos de macaco, as botas.
E os livros. Os livros! Eu era estudante
ávido de saber tudo sobre horticultura,
a cornucópia inteira. Comecei a cavar.
Tinha de começar bem - cavei por duas vezes
todo o jardim. E o meu coração,
e tudo o que dentro dele se escondia, cavou comigo.
Convenci-me de que estava condenado - uma questão de tempo
até o coração saltar para fora do meu corpo,
ou simplesmente entrar em colapso. Depois de ter cavado durante algumas horas
subitamente alguma coisa deu de si, suava em abundância,
e tremia. O coração. Já estava acostumado.
Só podia ser o coração. As palpitações. As batidas.
À noite na almofada o ritmo incerto
do pulso no meu ouvido. Roleta russa:
cada batida do coração é como um novo lance de dados -
um estalido de roleta russa. Que estranho
ter estado deitado na minha cama
a observar o meu coração enquanto este me desfazia em pedaços
como se eu estivesse a tratar de uma simples dor de dentes.
E, no entanto, o meu coração era eu. Eu era o meu coração.
O meu coração, aquele que sempre me acompanhou cantando
no frenesi dos meus esforços. Como podia ele falhar-me?
Levei-o comigo para todo o lado, criança moribunda,
a pesar no meu peito. A súbita pontada
sob a omoplata esquerda.
Ou uma espada - imagem horrível de lâmina fina
cravada na vertical junto ao pescoço
até ao interior da clavícula. Ou algo a roer
por dentro, as costelas. Pior ainda
o desmaio imprevisto - engrenagem instantânea de deslize
de uma energia infinita para um nada fantasmal.
O ânimo em ponto morto, e o meu motor
acelerando inutilmente. Quantas vezes por dia?
A hipocondria caminhava, dando-me o braço
como uma enfermeira, com os seus dedos no meu pulso.
Bom, ia morrer.
Comecei a escrever um diário - umas observações
acerca da errata do meu coração.
Acordava com as mãos sem força. Ia para a cama
com os dedos a latejar tanto
que até sacudiam o livro que segurava e para o qual olhava.
Era nesse momento que eu sentia o soco duplo
entre as omoplatas
"suave mas atordoador como o coice de um camelo."
Na garganta, o súbito afluxo de sangue à solta,
como um pássaro de asa quebrada, que se escapou
momentaneamente
do gato. Esforços para fazer do meu corpo
uma conduta para a música de Beethoven,
e reconduzi-la através da aorta
de modo a que ele me percorresse, deixando-me limpo e sem mal-estar,
e me libertasse. Não consegui alcançar a música.
Tudo o que a música me disse
foi que eu era um rejeitado, já não pertencia
ao reino intacto ressoante e criativo
de onde a música brotava. Eu já podia ser deitado fora,
o meu ímpeto era apenas inércia
do que eu já tinha sido, enquanto me desintegrava.
Eu já era póstumo.
Tudo o que olhasse, fosse gato ou cão, via-me já morto, cambaleando
alguns passos, uma visão mecânica
ainda na minha retina.
O meu novo estudo
consistia em saber todos os modos como o coração pode matar o seu dono
e como o meu me tinha morto. De tudo isto,
durante dois, três anos nada te disse.
Entretanto,
quem usava o meu coração,
quem instalou a nossa colmeia e plantou,
com mãos inconscientes, só para se divertir,
nove filas de feijoeiros? Quem era esse trocista de um outro mundo
que tinha vindo para nos desalojar,
partilhando a minha pele, como partilhava a tua,
vendo-me a cavar, tão tranquilamente? E olhando
por cima do teu ombro, para os poemas que esmeravas,
como se olhasse para este ou aquele ou outro espelho
que tentasse ignorá-lo?

Ted Hughes in "Cartas de Aniversário", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2000, pp 265 - 269 (Tradução de Manuel Dias).
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11/05/11

"(...) O autocarro que vinha do Norte/ chegou e toda a gente saiu, eu não vinha lá dentro. "

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" O Jogo do Destino"

Porque a mensagem por qualquer razão encontrou um gnomo,
porque os antecedentes iludiram as tuas expectativas,
porque a tua Londres era ainda um caleidoscópio
de nomes e lugares que um qualquer abanão podia baralhar,
esperaste, enganada. O autocarro que vinha do Norte
chegou e toda a gente saiu, eu não vinha lá dentro.
Não interessa saber o quanto insististe
pedindo ao condutor, se calhar a chorar,
para me fazer aparecer ou se lembrar de me ter visto
perder o autocarro. Eu não estava lá.
Oito da noite e eu perdido
num qualquer lugar de Inglaterra. Contiveste
a tua ousada inspiração
e não te meteste no meio do trânsito
que andava à volta da Estação Vitória, tendo a certeza absoluta
de que me ias encontrar onde quer que eu estivesse.
Mas eu não caminhava em lado nenhum. Estava sentado no comboio,
imperturbável, no meu lugar,
balançando a caminho de King's Cross. Alguém,
mais calmo do que tu, fez-te uma sugestão. Por isso,
quando eu desci do comboio à espera de te encontrar
algures, em baixo, no cais,
vi a agitação e o nervosismo de uma figura
lutando contra o fluxo dos passageiros que queriam sair,
e logo a seguir o teu rosto comovido, os teus olhos comovidos
e as tuas exclamações, os teus braços agitando-se,
as lágrimas espalhadas no teu rosto
como se eu tivesse regressado de entre os mortos
contra todas as possibilidades, contra
toda a negativa que não fosse a tua prece
dirigida aos teus próprios deuses. Soube ali o que era
ser um milagre. E atrás de ti
o teu simpático motorista de táxi, rindo-se, como um pequeno deus,
por ver uma rapariga americana tão americana,
e por ver que toda aquela tua frenética e guerreira corrida -
Em que a soluçar o incitavas e lhe suplicavas
para fazer acontecer aquilo que precisavas que acontecesse -
tinha resultado em cheio, graças a ele.
Bem, foi uma maravilha
o meu comboio não ter chegado uns momentos antes ou até muito antes,
que entrasse na estação, atrasado, no preciso momento
em que surgiste no cais. Foi
uma coisa natural e milagrosa, um presságio
confirmando tudo
o que querias ver confirmado. Por isso o teu enorme desespero,
a tua corrida em pânico através de Londres
e agora o teu sucesso, salpicou-me
de um amor aumentado em quarenta e nove vezes,
com um primeiro trovão da torrencial chuva que vai tragar
a seca de Agosto
na altura em que a terra gretada parece estremecer
e todas as folhas tremem
e todas as coisas erguem os braços e choram.

 Ted Hughes in "Cartas de Aniversário", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2000,
pp 71 - 73 (Tradução de Manuel Dias).
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" salvo o que se repete,/ um desfiado enredo na fragilidade da voz "

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Nada em especial
salvo o que se repete,
um desfiado enredo na fragilidade da voz
e que passa ao longe
como estória fugindo de qualquer moralidade.

O que do braço se projecta é, em si mesmo,
uma mera questão de física,
um corpo, que, grave, procura a sua rota.

O que resta assemelha-se a uns olhos de menina
interrompendo o passo, ou a um cartaz
com a data rasurada na direcção contrária
e a bares que nunca fecham nos dias de trabalho.

Nem dentro, nem desterro.
E no meio de tudo - a literatura.


O poema de José Ángel Garcia Caballero publicado em Catálogos de Valverde 32, Septiembre 2010,
está aqui numa tradução minha.
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10/05/11

08/05/11

"FILI D'AQUILONE, rivista d'immagini, idee e Poesia", Numero 22, aprile/giugno 2011.

Acabou de sair a prestigiada Revista italiana "FILI D'AQUILONE" no seu Numero 22 de aprile/giugno.
PARA ACEDER AO SUMÁRIO E À NOTA EDITORIAL BASTA CLICAR SOBRE A IMAGEM...
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... e para ler o excelente artigo da PROFª DRª VERA LÚCIA DE OLIVEIRA da UNIVERSIDADE
DE PERUGGIA sobre o meu último livro, clicar igualmente em:

www.filidaquilone.it/num022.html
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         "L' ultimo scena "


A modo mio tutto ho fatto per non tornare
qui. Per non espormi all'inutile corrosione
della memoria, all'ingannevole magna delle
parole. A modo mio ho evitato sempre queste
grate, questi alberi simmetricamente

allineati che mi accennano in fondo
ao Palazzo Reale. Percorso tante volte
ripetuto e oggi rifiutato, fra sorrisi
contraffatti e sguardi presi
in prestito. A modo mio

tutto ho fatto per non tornare a incontrare
questa piazza, queste fonti geometricamente
incrostate al suolo, le statue (Castori,
con braccia sollevate, che tengono qualcosa
che io so essere ciò che non dicono), gli odori,
la musica, le passioni girate verso l'interno...

Tutto ho fatto ma senza successo, per questo ora
resto: multiplo, aereo, ricordi
sparpagliati (gli uni sugli altri,
spiegazzati). Resto - senza codici
né certezze, malgrado tutto ciò
saldo - imperturbabilmente saldo.

Victor Oliveira Mateus.Traduzione dal portoghese di Vera Lúcia de Oliveira in "FILI D'AQUILONE,
rivista d'immagini, idee e Poesia, Numero 22, aprile/ giugno 2011.
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      "Partenza"


Quando parti non venne nessuno ai bordi della pista.
Quando parti i viaggi erano cosa semplice e banale,
e non questo desiderio di cercare un senso per
il dolore, una radura per l'assenza, una fonte
- per quanto minuscola - per saziare quello che
si mantiene un'inesauribile sete. Quanto partii erano

tutti indaffarati a viaggiare, ma in un altro modo -
voracità di faccendieri, spalancati occhi
dove il tempo si mercanteggia tanto quanto un futuro
ipotecato o una semplice ruota arrugginita. Quando
parti ebbero subito la premura di avvertirmi che la poesia
non ha mai salvato nessuno, che la ricerca delle radici

(cosi come la comprensione di un passato non
avvenuto) era cosa tanto ridicola quanto obsoleta
per il riso sciocco di molti. Quando partii la buganvillea
dell'abitazione di fronte era slendente e c'era
un gatto che bucava la rete. Quando partii una donna
nel palazzo accanto sbatteva un piccolo tappeto.

Mi fece un segno. Sorrise. Quando pertii immaginai
il loro scherno, le telefonate di uni agli altri,
le chiacchiere. Quando partii nessuno venne
per salutarmi, c'ero solo: io, un obbiettivo
incerto, il tuo volto riflettuto in lontananza
e il sole che batteva in pieno sulle vetrate.

 Victor Oliveira Mateus. Traduzione dal portoghese di Vera Lúcia de Oliveira in "FILI D'AQUILONE,
rivista d'immagini, idee e Poesia, Numero 22, aprile/ giugno 2011.
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07/05/11

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Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Ter me rebelado, ter me debatido
Ter me machucado, ter sobrevivido
Ter virado a mesa, ter me conhecido
Ter virado o barco, ter me socorrido
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena ter amanhecido
Sem as tuas garras sempre tão seguras
Sem o teu fantasma, sem tua moldura
Sem tuas escoras, sem o teu domínio
Sem tuas esporas, sem o teu fascínio
Começar de novo e contar comigo
Vai valer a pena já ter te esquecido ...

     Ivan Lins

06/05/11


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Um indivíduo pode sentir prazer em destruir um outro através de um processo de perseguição moral. Chega a suceder até que esse encarniçamento acaba desembocando numa verdadeira morte psíquica. Já todos testemunhámos ataques perversos a um nível ou outro, quer seja no interior de um casal, nas famílias, nas empresas, ou até na vida política e social. Contudo, a nossa sociedade permanece cega frente a essa forma de violência indirecta. Sob o pretexto da tolerância, tornamo-nos cúmplices!
Os danos provocados pela perversão moral têm dado lugar a excelentes temas para cinema (Les Diaboliques d' Henri-Georges Clouzot, 1954)...
No filme Tatie Danièle d' Étienne Chatiliez (1990) divertimo-nos com as torturas morais que uma mulher idosa inflinge àqueles que a rodeiam. Ela começa por martirizar a sua velha empregada ao ponto de a fazer morrer, "por acidente". O espectador diz para si próprio: " É bem feito, ela que não fosse tão submissa!". Em seguida ela derrama a sua maldade sobre a família do seu sobrinho, que a havia acolhido. O sobrinho e a mulher fazem o que podem para a satisfazer, mas quanto mais eles dão, mais ela se vinga.
Para tudo isso, ela utiliza um leque de técnicas de destabilização habituais nos perversos: os subentendidos, as alusões malévolas, a mentira, as humilhações. Surpreendemo-nos que as vítimas não tomem consciência desta manipulação hedionda. Elas esforçam-se para compreender mas sentem-se sempre responsáveis: " Que fizemos nós para que ela nos deteste deste modo?" Não é que Tatie Danièle estimule a sua cólera, ela é tão-só fria, má; não de uma forma ostensiva, o que poderia pôr de sobreaviso quem a rodeia: não, simplesmente com pequenos retoques desestabilizadores difíceis de captar. Tatie Danièle é demasiado forte e dá a volta à situação colocando-se no lugar de vítima e pondo os membros da sua família na posição de perseguidores que abandonaram uma velha de oitenta e dois anos, enclausurada num apartamento, tendo apenas por alimento comida de cão.
Neste exemplo cinematográfico cheio de humor, as vítimas não reagem pela passagem ao acto violento como seria normal na vida corrente; elas esperam que a sua gentileza acabe por encontrar eco e que a sua agressora se dulcifique. Mas é sempre o contrário que acontece, já que uma demasiada gentileza é tomada como uma provocação insuportável. Finalmente, a única pessoa que alcança mérito aos olhos de Tatie Danièle é uma recém-chegada que a consegue domar. Ela encontrou, por fim, alguém à sua altura, e uma relação quase amorosa pode começar.
Se esta mulher velha nos diverte e, ao mesmo tempo, nos comove, é porque insistimos em perceber que tanta maldade só pode ser proveniente de muito sofrimento. Ela inspira-nos piedade, tal como a inspira à sua família e é por aí que ela nos manipula: a nós e à família. Nós, os espectadores, não sentimos piedade alguma pelas pobres vítimas que nos parecem até bem estúpidas. Quanto mais Tatie Danièle é má, mais os familiares são gentis, logo, insuportáveis quer para Tatie, que para nós que vemos o filme..
Não nos restam dúvidas que estamos frente a ataques perversos! Estas agressões relevam de um processo inconsciente de destruição psicológica, formado por actuações hostis evidentes ou disfarçadas, de um ou de vários indivíduos, sobre um outro indivíduo perfeitamente identificado: o "sofre-dor" no sentido correcto do termo. Através de palavras aparentemente anódinas, de alusões, de sugestões ou de não-ditos, é efectivamente possível desestabilizar alguém, ou até mesmo destruí-lo, sem que quem está à volta tome posição. O ou os agressores conseguem assim engrandecerem-se rebaixando os outros, e, simultaneamente, evitar todo conflito interior ou um qualquer estado de alma, já que transferem para o outro a responsabilidade daquilo que não está a funcionar: " Não sou eu, é o outro que é o responsável do problema!". Não há neles lugar para a culpabilidade nem para o sofrimento. Trata-se então de perversidade, entendida esta como perversão moral!
Um processo perverso pode ser usado pontualmente por qualquer um de nós. Mas ele só se torna destrutivo através da sua frequência e da sua repetição ao longo do tempo. Todo o indivíduo "normalmente neurótico" apresenta, em certos momentos, comportamentos perversos, por exemplo num momento de cólera, mas ele é capaz também de passar a outros registos comportamentais (histérico, fóbico, obsessivo...), e os seus movimentos perversos são sempre seguidos de um auto-questionamento. Mas ... um indivíduo perverso é constantemente perverso; ele encontra-se fixado no outro através desse processo relacional e jamais se mete a si próprio em questão. (...) Estes indivíduos só conseguem existir destruindo alguém: é-lhes necessário amesquinhar os outros para obterem uma boa auto-estima, e, por consequência, adquirirem poder, já que são ávidos de aprovação e admiração. Eles não conseguem ter nem respeito nem compaixão pelos outros, já que estão centrados exclusivamente na relação. Respeitar o outro seria considerá-lo enquanto ser humano e reconhecer o sofrimento que lhe é infligido.
A perversão fascina, seduz e amedronta. Invejamos, por vezes, os indivíduos perversos, pois imaginamo-los dotados de uma força superior que lhes consente sempre o lugar de ganhadores.Efectivamente, eles sabem naturalmente manipular, o que aparece com um trunfo no mundo dos negócios e da política. Tememo-los igualmente pois sabemos instintivamente que mais vale estar com eles do que contra eles. É a lei do mais forte. O mais admirado é sempre aquele que melhor sabe jogar com o menor sofrimento. De qualquer modo, fazemos pouco caso das suas vítimas, que são tomadas como fracas ou desinteressantes, e, com o pretexto de respeitar a liberdade do outro, somos muitas vezes empurrados para a cegueira relativamente a situações graves(...). Ora, este tipo de agressão consiste justamente numa usurpação do território psíquico do outro. O contexto socio-cultural actual permite à perversão o desenvolver-se já que é tolerada. A nossa época recusa o estabelecimento de normas. Colocar um limite numa manipulação perversa seria entendido como um acto de censura. Tendo perdido os limites morais  ou religiosos que formavam uma espécie de código de civilidade e que nos poderiam dizer: "Isso não se faz!", nós apenas conseguimos reencontrar a nossa capacidade de nos indignar quando os factos vêm a público relatados e amplificados pelos media (...)
Os próprios psiquiatras hesitam em atribuir nome à perversão ou, quando o fazem, fazem-no para exprimir a sua impotência na intervenção, ou para mostrar a sua curiosidade ante as habilidades do manipulador. A própria definição de perversão moral é contestada por aqueles que preferem falar de psicopatologia, enorme sala de arrumações para onde eles atiram tudo o que não sabem tratar. A perversidade não é proveniente de uma qualquer perturbação psiquiátrica, mas sim duma fria racionalidade misturada com uma incapacidade de considerar os outros como seres humanos. Alguns desses perversos cometem actos delituosos pelos quais vão a julgamento, mas a maioria utiliza o seu charme e as suas faculdades de adaptação para abrir um qualquer caminho na sociedade, deixando para trás pessoas feridas e vidas devastadas. Psiquiatras, juízes, educadores, deixámo-nos todos armadilhar por estes perversos que se fazem passar por vítimas. Eles deram-nos a ver aquilo que esperavamos deles, para melhor nos seduzirem, e acabámos por lhes atribuir sentimentos nevróticos. Quando eles afinal até se mostraram tal como são, fixando claramente os seus objectivos de poder, nós hoje sentimo-nos enganados, ultrajados, por vezes mesmo humilhados. Tudo isto explica a prudência dos profissionais em desmascará-los. Os psiquiatras dizem entre si: "Cuidado, é um perverso!", querendo significar: "É perigoso" e também: "Não há nada a fazer." Mas assim há uma renúncia em ajudar as vítimas. É evidente que nomear a perversão é algo de grave (...). O termo perverso choca, incomoda, corresponde a um juízo de valor, e os psicanalistas recusam-se a emitir juízos de valor. Deve-se então aceitar tudo? Não nomear a perversão é um acto ainda mais grave, pois é deixar a vítima desarmada, agredida já e pronta a ser agredida de novo... ali está ela à mercê.
Na minha prática clínica enquanto psicoterapeuta, tive já de ouvir o sofrimento das vítimas bem como a sua impotência em defenderem-se. Neste livro demonstro que o primeiro acto desses predadores consiste em paralisar as sua vítimas para as impedir de se defenderem. Seguidamente, mesmo quando elas conseguem entender o que lhes está a acontecer, não conseguem adquirir quaisquer instrumentos para se ajudarem a si próprias. (...) Quando as vítimas finalmente se deixam ajudar, pode acontecer que elas não sejam entendidas. É mesmo corrente que os analistas aconselhem às vítimas de um assédio perverso que procurem nelas em que é que foram responsáveis pela agressão que sofreram, em que é que elas a desejaram, nem que tivesse sido inconscientemente.  Com efeito, a psicanálise considera apenas o intrapsíquico, ou seja, aquilo que se passa na cabeça do indivíduo, e não tem em linha de conta todo um contexto: ela ignora portanto o problema da vítima considerada como cúmplice massoquista. Mas quando os terapeutas decidem ajudar a vítima, pode acontecer que, pelas suas reticências em nomear um agressor e um agredido, acabem reforçando a culpabilidade da vítima e, consequentemente, agravando o seu processo de destruição. Penso que os métodos terapeuticos clássicos não são suficientes para ajudar este tipo de vítimas. Proponho portanto instrumentos mais adaptados, que tenham em linha de conta a especificidade da agressão perversa.
Não se trata aqui de fazer o processo dos perversos - aliás, eles defendem-se muito bem sozinhos -, mas de considerar a sua nocividade, a sua perigosidade para com o outro, a fim de permitir às vítimas, ou futuras vítimas, defenderem-se. Mesmo que se considere, e justamente, a perversão como um mecanismo defensivo (defesa contra a psicose ou contra a depressão ), isso não exclui os perversos em si mesmos. Ocorrem manipulações anódinas que deixam apenas um traço de amargura ou de vergonha por se ter sido intrujado, mas existem também manipulações muito mais graves que esmagam a própria identidade da vítima e que são mesmo questões de vida e de morte. É importante saber que estes perversos são perigosos: diretamente para as suas vítimas, mas também indiretamente para todos os que os cercam levando-os a perder as suas referências e a acreditar que é possível aceder a um modo de pensamento mais livre mutilando os outros.
(...) Uma pessoa que tenha sofrido uma agressão psíquica como a perseguição moral de que aqui falamos é realmente uma vítima, já que o seu psiquismo sofreu alterações mais ou menos duráveis. Mesmo se o modo de reagir à agressão moral puder contribuir para estabelecer uma relação com o agressor que, por sua vez, se alimenta dessa mesma relação,e der a impressão de ser "uma relação simétrica", mesmo assim, é preciso não esquecer que aquela pessoa sofre de uma situação cuja responsabilidade não lhe pode ser imputada. (...) Se estas vítimas se lamentam por vezes do seu parceiro ou de quem as rodeia, só raramente têm consciência da existência desta violência subterrânea, medonha e da qual não ousam queixar-se. A confusão psíquica que previamente se instalou pode fazer esquecer, mesmo ao psicoterapeuta, que se está ante uma situação de violência objectiva. O ponto em comum destas situações é o indizível: a vítima, mesmo reconhecendo o seu sofrimento, nem sequer ousa imaginar que está inserida numa situação de violência e de agressão. Uma dúvida persiste, por vezes: " Mas não serei eu que estou a inventar tudo isto, como certas pessoas me dizem?". Quando a vítima ousa lamentar-se do que lhe está a contecer, ela fica sempre com o sentimento de não ter feito uma descrição correcta, de não ter sido entendida.
Escolhi deliberadamente os termos agressor e agredido, pois estamos frente a uma violência confessa, mesmo quando se oculta, uma violência que tende a agarrar-se à identidade do outro e a retirar-lhe toda a sua individualidade. É um processo real de destruição moral, que pode levar à doença mental ou ao suicídio. Mantenho igualmente a denominação de "perverso", pois esta reenvia claramente para a noção de abuso, como é o caso de todos os perversos. Tudo começa por um abuso de poder, segue-se um abuso narcísico no sentido em que um perde toda a auto-estima e pode desembocar num abuso sexual.

  Marie-France Hirigoyen in "Le harcèlement moral - La violence perverse au quotidien ",
Éditions La Découverte, Paris, 1998, pp 7 - 16 (Tradução de Victor Oliveira Mateus)
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05/05/11

ENCONTRO COM AS PALAVRAS: CONVERSAS LITERÁRIAS.


(Clicar sobre a imagem)
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DIA 20 DE MAIO, 18h00, NA LIVRARIA "PÓ DOS LIVROS", Avª MARQUÊS DE TOMAR, 89A
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1050 - 154 LISBOA.
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COM A PARTICIPAÇÃO DE:
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VERA LÚCIA DE OLIVEIRA (Poeta e Professora na Facoltá di Lettere e Filosofia dgli Studi de
Perugia, Itália.)
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VICTOR OLIVEIRA MATEUS
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FILIPA BARATA ( Doutoranda na Faculdade de Letras da Universidade Clássica de Lisboa)
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APOIO:
CLEPUL
(Centro de Literaturas e Culturas Lusófonas e Europeias
da Faculdade de Letras de Lisboa.)
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04/05/11

" Que importa a paisagem (...) ? "

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 "Poema do Beco"

Que importa a paisagem, a Glória, a baía, a linha do horizonte?

- O que eu vejo é o beco.


Manuel Bandeira in "Antologia Poética", Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, 1982, 13ª Edição, p 87.
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" Sai um sujeito de casa com a roupa (...)/ muito bem engomada... "

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 "Nova Poética"

Vou lançar a teoria de poeta sórdido.
Poeta sórdido:
Aquele em cuja poesia há a marca suja da vida.
Vai um sujeito,
Sai um sujeito de casa com a roupa de brim branco
muito bem engomada, e na primeira
esquina passa um caminhão, salpica-lhe
o paletó de uma nódoa de lama:
É a vida.

O poema deve ser como a nódoa no brim:
Fazer o leitor satisfeito de si dar o desespero.

Sei que a poesia é também orvalho.
Mas este fica para as menininhas, as estrelas alfas, as
virgens cem por cento e as amadas que
envelheceram sem maldade.

  Manuel Bandeira in " Antologia Poética", Livraria José Olympio Editora,
Rio de Janeiro, 1982, 13ª Edição, pp 140 - 141.
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03/05/11

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                  "O Regímen"


A sociedade portuguesa está organizada para o mal. Não é já o mal esporádico e fortuito, em casos  isolados que ràpidamente se combatem. Não; é o mal colectivo, o mal em norma de vida, o mal em sistema de governo. Os poderes funcionam deliberadamente com um fim: produzir o mal. Porquê e para quê? Porque o mal são eles e querem conservar-se. Um regímen corrupto só na corrupção subsiste. Mantém-se na corrupção, como alguns bacilos na porcaria. O seu ódio ao bem é fundamental e orgânico.
A filosofia da vida dum tal regímen é a filosofia do porco: devorar.
Mesa, cama e comua, eis a sua trindade verdadeira. Vive na carne e para a carne. Sensualismo tenebroso, regressão do homem à bestialidade do quadrúpede.
Ora, um regímen assim há-de, por natureza, absorver o mal e repelir o bem. Desde que o mal é a sua própria essência, o bem constitui a sua negação e a sua morte, o bem é o adversário. Portanto elimina-se.
Mas como semelhante compreensão da vida e do destino do homem é, por monstruosa, inconfessável, envolve-se o crime na mentira, esconde-se a chaga em linhos brancos.
Assim, o regímen declara-se cristão, organizando e mantendo um clero de apóstolos que difunda nas almas a verdadeira doutrina de Jesus: amor, humildade, pobreza, desprendimento, subordinação da vida da carne à vida angélica do espírito.
E, além de bom, declara-se justo. Nas suas escolas aprendem a justiça os que hão-de exercê-la e distribui-la no pretório. E nenhuma lei será lei antes de aprovada em cortes pela vontade nacional.
E, além de bom e justo, declara-se forte. Conta vinte mil homens, armados em guerra, para manter a paz, escudar a lei e sustentar o direito.
Mas tudo um engano, uma fraude, uma hipocrisia descarada.
O regímen, pelos homens que o exercem, denota um fim: viver estùpidamente, cinicamente, a vida bruta da matéria. Os poderes que o ajudam são coniventes e são cúmplices.
Assim, o clero é um desaforado instrumento do regímen. Espionagem de almas, batotas de eleições.
Assim a justiça é a vontade do regímen. Ele acusa, ele condena, ele absolve. Quando quer e como quer.
Assim, os deputados são, ordinàriamente, os lacaios do regímen. Dão-lhes decretos a aprovar, como se dão botas a engraxar.
Assim, o exército é a garantia imutável do regímen. Defende-o contra o povo, guarda-o contra a justiça e contra a lei!
Que significa então este regímen? O imperativo da besta, a ditadura do mal. Converte a religião em sacrilégio, o direito em crime, a verdade em burla, a força em tirania.
Os seus amigos são os inimigos da alma. Odeia o Espírito, porque o Espírito é bom, é belo, é justo, é verdadeiro. Repele a arte, repele a virtude, repele a ciência: com hipocrisia, é claro. Deixa livremente rezar o santo, meditar o sábio ou cantar o poeta. Mas o santo há-de perder a alma, o sábio há-de perder a voz e o poeta há-de perder a vergonha, diante das mentiras, das iniquidades e das infâmias do regímen (...)
Regímen hediondo! Assassino de Deus, coveiro das almas.
Hipérbole? não. É vulgar, banal, burlesco, olhado em Lisboa, anedòticamente, com olhos de ironia. Mas, olhado no tempo e no espaço, perante Deus, avoluma, caliginoso, em monstro formidável. Surge demoníaco. Dissolve, destrói, desfaz, desorganiza. A ruína bruta é ainda o menos. Uma parede no chão, levanta-se; um mercado perdido, encontra-se; um banco sem ouro, atulha-se de ouro fàcilmente. Mas a ruína moral! A morte de milhões de almas, milhões de ideias, de consciências! A abóboda estrelada do pensamento vestindo-se de noite fúnebre, noite de caos! Horroroso! pavoroso!
Regímen sinistro! És a árvore da morte, a árvore do mal. A tua sombra esterilizou o nosso campo; os teus frutos gelaram o nosso coração. Quebrar-te um ramo ou espezinhar-te um fruto, para quê? Deitarás mais ramos, deitarás mais frutos. O que é necessário, árvore tenebrosa, é arrancar-te pela raíz e fazer contigo uma fogueira. Depois aremos o campo, semeemos o trigo...

  Guerra Junqueiro in " Horas de Luta ", Lello & Irmão Editores, Porto, 1954, pp 95 - 98.

Nota: este texto de Junqueiro está datado de 15 de Novembro de 1899 e, como é hábito, conservo sempre a grafia das obras, daí, portanto, os advérbios de modo estarem acentuados.
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02/05/11

" Aquele olhar/ é o centro de qual centro? "

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 "Mona Lisa (4) "

Em qualquer
dos tantos
quatro cantos do mundo
seu olhar me segue
e nos persegue
e acusa e condena
e zomba
de quem não sabe de quê
nem de porquê

Aquele olhar
é o centro de qual centro?

Helena Parente Cunha in " Cantos e Cantares ", Edições Tempo Brasileiro,
Rio de Janeiro, 2005, p 47.
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" Desperto/ diante dos meus espelhos "

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" Síntese ?"

À beira destas águas
não sei se do Sena ou do Reno
recordo miragens de outrora
vislumbres de líquidas paisagens

Estes sinos que se anunciam
acima dos portais dos santos
e das revoadas de pombos
ressoam
no campanário de Colônia
ou nas torres de Notre Dame?

As fundas cores destes verdes
dobrados e desdobrados
em sopros e silêncios
são do Jardim de Luxemburgo
ou dos campos da Westlália?

E estas turbilhonadas
que me torvelinham
nas bicicletas de Hamburgo
são do metrô de Paris
ou do afã das multidões
no aeroporto de Frankfurt?

Desperto
diante dos meus espelhos
na extinta casa do Rio Vermelho
e no sobrado do Campo Grande

Memória ou resgate
impossível regressar

Morrer é devagar
e não recua nem recomeça

  Helena Parente Cunha in " Cantos e Cantares ", Edições Tempo Brasileiro,
Rio de Janeiro, 2005, pp 35 - 36.
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01/05/11

" Guardei-a no fundo das palavras "

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Poema XX de "Cidade Inexacta"

(Mais um aniversário melancolicamente
covarde de uma revolução qualquer perdida.)

De repente lembrei-me da espingarda
que escondi nos versos por causa da polícia
e não sei onde pára.

Guardei-a no fundo das palavras,
perdi a chave do alçapão
e agora, neste dia de barricadas com teias-de-aranha,
que vai ser de mim
sem morte nos dedos?

A espingarda! Onde está a espingarda?...
(A boneca, a boneca do Carlos Queiroz...)
... ferrugenta talvez
mas ainda útil nas paradas de névoa
com cartuchos de lágrimas
(de lágrimas secas)
para matar os homens e chorá-los logo.

Pertenceu ao Zé do Telhado,
disparou nas guerrilhas do silêncio,
andou nas mãos dos gritos
- clavina
de carregar pela boca
no Museu da Cólera.

E agora? Onde está?

Talvez na palavra Amor,
Talvez na palavra Ódio,
Talvez na palavra Medo,
Talvez na palavra Morte,
Talvez na palavra Merda.

  José Gomes Ferreira in "Poeta Militante" 3º Volume, Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1998, pp 106 - 107.
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