A própria estrutura conceptual da fidelidade mostra que ela é um sentimento sociológico ou, se se quiser, um sentimento sociologicamente orientado. Outros sentimentos, independentemente da maneira como possam ligar as pessoas umas às outras, têm, todavia, algo de mais solipsista. Afinal, até o amor, a amizade, o patriotismo ou o sentido do dever social ocorrem e perduram essencialmente no próprio indivíduo, de forma imanente - com também se revela da maneira mais estrita na pergunta de Filipo: "Se eu te amar, a ti que te importa?" Apesar do seu extraordinário significado sociológico, estes sentimentos continuam a ser, acima de tudo, estados subjectivos. De facto, são produzidos apenas pela intervenção de outros indivíduos ou grupos, mas isso acontece mesmo antes de a intervenção ter passado a ser intervenção. Mesmo quando são dirigidos a outros indivíduos, a relação para com estes indivíduos é ( pelo menos não necessariamente) o seu verdadeiro pressuposto ou conteúdo.
Mas é este precisamente o significado da fidelidade (pelo menos como aqui é discutido, embora o uso linguístico também lhe atribua outros significados). A fidelidade refere-se ao sentimento particular que não é dirigido para a posse do outro como o bem eudemonístico de quem a sente, nem para o bem-estar do outro como um valor extrínseco e objectivo, mas para a preservação da relação com o outro. A fidelidade não produz esta relação; portanto, e contrariamente a estes outros afectos, não pode ser pré-sociológica; atravessa a relação a partir do momento em que ela começa a existir e, como a sua autopreservação interna, faz com que os indivíduos-em-relação se mantenham fortemente unidos um ao outro. Este carácter sociológico específico talvez esteja ligado ao facto de a fidelidade, mais do que outros sentimentos, ser acessível às nossas intenções morais. Outros sentimentos dominam-nos, como a chuva e o sol, e as suas idas e vindas não podem ser controladas pela nossa vontade e não são acessíveis às nossas exigências morais. Mas a ausência de fidelidade impõe uma reprovação mais severa do que a ausência do amor ou da responsabilidade social, para além das suas manifestações meramente obrigatórias.
Para além disso, o seu particular significado sociológico faz com que a fidelidade desempenhe um papel unificador em relação a um dualismo básico que atravessa a forma fundamental de toda a sociação. Este dualismo consiste no facto de que uma relação, que é um processo vital flutuante, em constante desenvolvimento, recebe, no entanto, uma forma externa relativamente estável.
Georg Simmel in " Fidelidade e Gratidão e Outros Textos", Relógio D'Água Editores, Lisboa,
2004, pp 38 - 39 (Tradução de Maria João Costa Pereira).
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