" Berceuse"
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Canção de embalar é talvez
demasiado melódico e além disso
um desuso. Já ninguém canta a adormecer
os filhos. Coisa imprópria para o crescimento
de criaturas autónomas
e hiper-activas que devem fugir
ao sedentarismo e à obesidade.
O Canal Panda faz isso muito melhor
ou qualquer brinquedo mecânico e perfeito.
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Também já ninguém canta
nos lavadouros públicos ou nos campos. Os
únicos campos onde se cantam as brumas
da memória são os estádios. Os
pedreiros deixaram de cantar à pedra:
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Hou! pedra, hou!
Hou! linda pedra, hou!
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e as canções de trabalho (uma espécie
de berceuses da fadiga) passaram
a matéria etnográfica. Por isso os
estudantes de português já não entendem
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Descalça vai para a fonte
Lianor pela verdura ou
Sete anos de pastor Jacob servira.
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Mesmo o Schone Mullerin do Schubert que
se ouve ainda nos concertos clássicos
com vaga subserviência patega
(porque em alemão, não se percebe nada),
só os amantes do lied reconhecem.
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E se percebessem?
A moleira já não seria schon
e não teria 80 anos, bem bonito rol
como a de Junqueiro,
pela estrada fora toc, toc, toc, mas agora reclusa
numa casa geriátrica, em contagem crescente
da inacção.
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Muito pouco,
tão pouco, para um mundo
embalado na pesquisa espacial
de água em Marte.
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Inês Lourenço in "Coisas que nunca ", & etc, Lisboa, 2010, pp 23 - 24.
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