(Nota - não é meu hábito usar este blogue para "artigos de opinião". Penso, nesta altura, que as minhas opiniões fazem parte de um foro privado, que partilho com alguns mas não tenho direito de as estar, com carácter sistemático, a enfiar pela "goela abaixo" de todos. O espírito de cruzada tem pouco a ver comigo! Apesar destas resistências, e porque existem sempre excepções nas regras, gostaria de reafirmar o que recentemente escrevi à filha de Glória de Sant'Anna, a pintora Inez Andrade Paes: considero o esquecimento a que foi votada a poesia daquela poeta um dos maiores danos causados à poesia portuguesa das últimas décadas... Que se me perdoe a soberba intelectual, mas, e relativamente a este assunto, ainda assim penso.)
.
.
" UM DENSO AZUL SILÊNCIO"
.
Deixou-nos há dias (2.6.2009) Glória de Sant'Anna, quase tão discretamente como entrou no território da literatura, embora nos tenha legado alguns marcos assinaláveis do lirismo português. A autora de Distância (1951) e de Música Ausente (1954) nasceu em Lisboa, em 25 de Maio de 1925, e foi viver para Moçambique, em 1951, com 26 anos, primeiro em Nampula, e depois, a partir de 1953, em Porto Amélia (hoje, Pemba), em frente ao faustoso mar daquela imensa baía que é a terceira mais importante do mundo.
Dali só regressaria a Portugal - para Ovar, onde se fixou - em 1974, isto é, ao fim de 23 anos de permanência numa África que amou e cantou. Tendo casado em 1949, depois de terminado o curso complemetar de Letras, no Colégio de Odivelas, Glória de Sant'Anna viria, por via do ensino, a apertar contactos com a população nativa de Pemba, sondando vidas, dramas, alegrias, aspireções, angústias...
Em 1962 (era Outubro), caíu-me nas mãos, em Lourenço Marques, um livrinho de poesia de 54 páginas, óbvia edição da autora, com título aliciante e algo indecifrável ou quase demasiado decifrável: Livro de Água. Começara a publicar-se, ali, por essa altura, um diário promissor - A Tribuna - que incluía um suplemento cultural cuja direcção fora cometida a mim e ao poeta Rui Knopfli. O livro de Glória, que eu recebera quase coincidentemente com o aparecimento do jornal, tocou-me profundamente; e logo decidi consagrar-lhe algumas linhas entusiásticas, naquele suplemento que viria a durar pouquíssimo tempo.
Foi o primeiro de vários textos que dediquei, ao longo dos anos, à arte "serena" da autora de Um Denso Azul Silêncio. Falando do livro de uma autora que até aí me fora completamente desconhecida, concluía, nestes termos, que ainda hoje não renego, a caracterização da ars poetica da escritora: "Uma arte líquida, secreta, discretamente deslizante, atenta e comovida, contidamente dramática, ilusoriamente tranquila, rica nos seus meios de uma simplicidade enganadora, nítida mas plena de mistério, límpida mas 'mortal' e tocada pela asa de uma angústia que mal se mostra. Uma arte de rigor e de modéstia - clássica portanto. Mas viva."
Ao Livro de Água, outros se seguiram, em que o ofício poético da escritora se confirmou, numa monotonia suave e intensa, sempre aliciante e esquisitamente inquietante: Poemas do Tempo Agreste (1964), Um Denso Azul Silêncio (1965), Desde que o Mundo e 32 Poemas de Intervalo (1972), todos de poesia e todos publicados em Moçambique. Além destes, editaria também ali, o livro de crónicas ... do Tempo Inútil (1975). Já depois do seu regresso a Portugal, publicaria ainda Não Eram Aves Marinhas (1988), Zum-Zum (1995) e Algures no Tempo (2005).
Em 1988, a Imprensa Nacional - Casa da Moeda editou, sob o título geral Amaranto e com prefácio meu, o total das suas obras publicadas até então e alguns inéditos que, pela sua natureza supostamente subversiva não tinham podido ver a luz durante os "anos da peste". Já depois da independência, em 2000, a editora moçambicana Ndjira homenageou a autora, pela mão de Fernando Couto, publicando uma antologia que, sob o título Solamplo, coligia poemas de Música Ausente, Livro de Água, Poemas do Tempo Agreste, Um Denso Azul Silêncio, Cancioneiro Incompleto (que fora incluído em Amaranto) e Desde que o Mundo...
A arte de Glória de Sant'Anna, embora profundamente empenhada na realidade social moçambicana, porque era uma arte de subtilíssimo "recuo autobiográfico", nada tinha de ostensivamente proclamativo, nem de dramaticamente gesticulante. Em versos serenos, quase perfidamente tranquilos, cheios de um pudor que nos atingia bem mais fundo do que qualquer grito incontinente, tão "secreta/como o tecido da água", entregava-nos, "purificada" e cheia de dignidade, a tragédia de um povo emudecido.
Assim falava, por exemplo, da mulher morta por uma inundação: "O rosto é liso/ a fronte é alta/ o perfil limpo". Ou ainda: "A mão no peito/ longa, pousada./ O lábio breve/ descida a pálpebra."
Poesia intensa, que aspira ao máximo pudor e a uma espécie de "silêncio" - um "denso azul silêncio"-, ela enreda-se no nobre conflito milenar dos que se dilaceram entre o desejo de falar (testemunhar, manifestar) e o desejo não menos forte de calar. "Pesa-me o silêncio de todas as palavras", diz ela num verso, podendo igualmente ter dito: "Pesa-me o ruído que faz o silêncio..."
O outro importante pilar desta poesia insinuante é o mar, a água que visita e vivifica tantas páginas dos vários livros que compõem o cânone de Glória. Dissemos algures e pedimos licença para aqui brevemente o transcrever: " Nalgumas tradições, a hebraica, por exemplo, a água é a matriz, é a fonte de todas as coisas. Nalguns casos, na alquimia chinesa, por exemplo, o banho e a lavagem são, por outro lado, operações ígneas, isto é, a água é também fogo. Era talvez, intuindo isto, que Novalis afirmava que 'a água é uma chama molhada'.O universo aquático de Glória de Sant'Anna, no seu ímpeto rigorosamente purificador, tem qualquer coisa de um fogo que se contém, mas limpa".
Como todos os que escreveram fora da estreita paróquia lusíada - mesmo que o tenham feito em português e em nobilíssima toada - Glória de Sant'Anna foi pouco vista e pouco comentada pelos donos da poesia que por aí fazem e desfazem reputações. Não foi a única. Rui Knopfli nunca foi devidamente apreciado, em todo o caso, não à altura a que se guindou o autor de O Escriba Acocorado ou de O Monhé das Cobras. E Grabato Dias, certamente um dos quatro ou cinco maiores poetas portugueses do século XX, é aquele nome que fica escandalosamente esquecido, quando em alegre tertúlia se fazem balanços para manuais-a-haver. Ter vivido em África, ter gostado de lá estar - é pecado que sempre se pagou e se continua a pagar com língua de palmo. A Europa para os europeus, ou coisa assim, imagino eu.
Seja como for, a autora de Amaranto, pouco vista, pouco lida, pouco visitada pelos buscadores de graus académicos (com a excepção de eu próprio a ter convidado a estar presente num dos meus seminários de literatura portuguesa na Universidade de Aveiro - que diabo!, Ovar ficava mesmo ali ao lado...), a autora de Amaranto, dizia eu, deixou-nos há dias, deixando-nos também, para nosso uso, e regalo um belo canto de poucas e avaras palavras. Mas sempre de bom aviso:
.
Não sei porque buscas palavras longas
Para as coisas breves que nos assombram.
.
Nem mais. O assombro também se explora com palavras breves: se forem certeiras.
.
.
Eugénio Lisboa In "JL" de 17 a 30 de Junho de 2009, pp 22-23.
.
.
.