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"Carta para W. H. Auden (I) "
Com o teu rosto de palimpsesto
muito usado e esse ar de cavalheiro
do Império Britânico
para quem o resto do mundo é a Índia,
vi-te apanhar o Expresso do Oriente
em Hallesches Tor. Clio, musa da História,
decerto te dirá porque se mostra
privada de perspectivas romanas a cidade.
Mais belo do que o dia era a noite,
hiante, com o seu cadastro de rapazes
no Cosy Corner, a um minuto
dos teus aposentos em Furbringerstrasse
(Frau Gunther, landlady tolerante...)
Aqui, onde o desejo não precisava
de se imaginar real, deixaste tocar-te
pelo amor ( um exemplar dos sonetos
de Shakespeare, o breviário de bolso,
para qualquer dúvida na hora capital).
Berlim era uma colónia de férias
com pack de Nacktkultur e escola
de sexo e todos os eufemismos
que se escondem na palavra Freudschaft.
Com paciência de tutor inglês
aqui disciplinaste delinquentes juvenis,
às vezes atrevidos e insolentes,
puros, verdadeiros e leais -
assim te descobrias adepto da rudeza
alemã ( força, potência & vigor),
pois não era Gerhart Meyer
the truly strong man?
A sua qualidade elementar
dispensava-os de assunto de conversa:
eram um pedaço de rocha natural
à espera que o moldassem as tuas mãos
ambidestras na penumbra de algum
Jugendbar. Hoje não há bares
de rapazes e outra geração enche,
depois da razia nos campos,
os estabelecimentos de Nollendorf Platz.
Parecem não as vítimas mas os seus algozes,
quando descem, ganchos espetados nos mamilos
e argola bovina no nariz, às catacumbas de Motzstrasse.
Paulo Teixeira, In " O Anel do Poço", Editorial Caminho, s/c, 2009, pp 73-74.
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