O sobressalto pelo telefone. Havia carros de combate, hesitando nas ruas que desciam para o Terreiro do Paço. Que subiam para o Carmo.
Quem costumava ligar a rádio dera pelas canções, Paulo de Carvalho, José Afonso.
E pelo repetir de um comunicado: "Aqui, posto de comando do Movimento das Forças Armadas..."
O anúncio de que alvorecia. O aviso de que toda a população se deveria manter em casa.
Mesmo assim, saíra-se a comprar pão. Favas, que já se estava no tempo delas. E pouco mais, porque o mês ia no fim.
Quanto às obrigações do costume, quase ninguém se metera a caminho.
"Não abri a loja", "Não fui pegar às oito, na oficina". Nem os garotos tinham ido à escola.
Expressões de orgulho. Das que, mais tarde, preencheriam o recordar dessa manhã.
E os momentos de que já ninguém fala?
Resta, apesar de tudo, o direito à memória. Sim. Mercê de não se terem acatado certos avisos.
Principalmente, ter-se sido rápido a decidir. Tal o fotógrafo que, pelo meio da madrugada, foi ao encontro de Salgueiro Maia.
Fernando Salgueira Maia, Capitão de Cavalaria.
O fotógrafo: Alfredo Cunha, d' O Século.
Um ia em trinta anos. O outro, nos vinte.
Ribeira das Naus.
A fragata Gago Coutinho rumando ao Cais das Colunas. E os blindados de Ferrand d' Almeida frente aos de Salgueiro Maia.
De trás de um chaimite, veio o rapaz-fotógrafo. Disparou. Registou o capitão persuadindo um tenente-coronel a render-se.
Logo a seguir, outra fotografia: o capitão dando ordens à Polícia. As primeiras.
Depois, a série que descreve Salgueiro Maia a chegar com os seus duzentos e quarenta homens ao Terreiro do Paço. E a encontrar desertos os gabinetes dos Ministros.
Lembramo-nos, pelas fotografias de Alfredo Cunha.
Também pelas de outros. Claro.
A Cidade, porém, não ficara vazia.
Muita gente chegava à janela. Vinha para a rua. Perguntava se aquilo se estava mesmo a dar. Se era verdade.
- E eles?...
O tempo de salpicos não ajudava. Chove? Não chove? Mas também não dissuadia fosse quem fosse de se pôr a caminho da Baixa.
A Polícia já não conseguia que, do Cais do Sodré à Doca da Marinha, as praças e as ruas se mantivessem isoladas.
Beja, Filomena Marona. Bute daí, Zé! Lisboa: Sextante Editora, 2010, pp 94 - 96.
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