10/07/13


 
  Um dia segui-o. Pobre Bé! Fiz com que ele julgasse que eu tinha ido trabalhar. Era já muito tarde, umas onze, meia-noite, nem sequer me interessava as horas que eram, eu tinha gasto a noite naquilo, eu queria espiá-lo, queria saborear essa espécie de arrepio de conhecer o seu lado de homem em desespero, de homem sem mulher mas com mulher. Era Junho. Muitas pessoas passeavam no paredão, uns para cá, outros para lá, namoradas e namorados, casais muito compostos que aspiravam o ar do mar e se sentiam benzidos e abençoados por morarem em tão distinto local, por serem tão sérios, tão casados, tão singelos e unidos. Jamais lhes passaria pela cabeça que havia outros homens e que havia outras mulheres e que havia muito mais coisas para se fazer nesta vida que não fosse sempre esta mesma vida, esses arremedos de responsabilidades incolores, insípidas e inodoras. Muitos tinham um cão que os acompanhava. Muitos donos acompanhavam os seus cães. Para a frente, para trás, para a frente, para trás. Desconsoladamente. (...) dia e noite, dia e noite, dia após dia, noite após noite, até que um dia todos morreriam e todos dali desapareceriam.
(...) Pela esplanada passou uma ronda de polícias que a todos olhou de esguelha. Ainda pensei que o meu sogro os tivesse ali mandado à minha procura, mas depressa desviei o pensamento porque ideia mais idiota não podia ser. Como é que ele iria saber? Como é que ele iria desconfiar que eu estava ali a tomar fôlego e a fazer tempo para poder espiar, o mais à vontade possível, as traições do seu filho? A esta hora da noite estaria ele, o meu sogro, a lavar os dentes na casa de banho do seu quarto, com os pés enfiados nuns chinelos e já vestido de pijama. A minha sogra estaria na cama toda besuntada de cremes, limando as unhas ou fazendo deslizar o olhar por todas as esquinas do tecto (...)
  Do sítio onde eu estava via perfeitamente o átrio principal do salão de entrada com muita gente a conversar e também vi Bé encostado a uma das colunas centrais. Lá estava ele a fumar um cigarrito, a olhar para todos os lados (...). Eram altas, louras e lindas e ainda hoje me lembro do cheiro do seu perfume que marcou indelevelmente e para sempre as fronhas das almofadas...
(...) Portanto, tudo o que eu pudesse imaginar podia não estar a acontecer, podia não ser verdade. Imaginei-o, sim, vezes sem conta na nossa cama com elas e isso até me consolava, no fundo eu até gostava dessa ideia. Por várias razões e a principal razão era a razão dele.
  Pois é isso que eu digo: eu até lhe desculpo as putas, coitado! E percebo-o! Percebo!
 
 
  Carvalho, Cristina. Marginal. Lisboa: Planeta Manuscrito, 2013, pp 66 - 69.
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