" A Madre da Casa da Avó" (Excerto)
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havia um rasto de oliveiras
no manto estonteante
campo aberto
jorrado torrado a eito
forro de cortiça e azeitonas
padrão de oiros
campo pão
esbugalhado nos olhos
de bestas, mulas morenas
lentas.
cheiro a chão.
campo maior
do pão.
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partiam-nos talhadas de sabor
ternuras doces verdes e vermelhas
que secavan no papel pelo ano
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à madre da casa da avó
agarravam-se as coisas da memória:
dizer-te desse cheiro que havia
um rasto de oliveiras
e restolho
manto
estonteante manto
campo jorrado, torrado a eito
forro de cortiças e papoilas
pão esbugalhado nos punhos
de bestas
mulos à jorna
cheiro a fome do pão.
e a madre
castanha
suspira
eterna
impotente
pelos choros que não mais
- febres de incansável
pouca idade
birras de sestas enganadas
a inventar monstros
príncipes
rostos
formas aflitas nas gretas da parede
branco eterno, antigo
resguardo do abismo
pela madre,
castanha muito
madeira da memória dessa casa
à mesa
partiam-nos talhadas
barcas guardoras da magia
da família
ternuras doces
vermelhas, verdes
sementes secas
na varanda ou no sobrado
que apuravam no papel
ano adentro
até à hora de provar
a melancia
brinde da escola certinha
(lindas meninas!)
merecida
-Estado Novo
meninas lindas-
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Maria Toscano, In "A madre da casa da avó - os nomes
infinitos do ser", Ed. Pé de Página, Coimbra, 2002, p 55.
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(Nota - Este post só foi possível graças à amizade e à solidariedade
da poeta nele referida, no entanto dada a extensão do poema é-nos
completamente impossível postar, num blogue com estas características,
o texto na integra, contudo não queriamos deixar de mostrar uma
poesia que, quanto a nós, articula de forma primorosa a célebre questão
do quotidiano com todo um mundo imagético, muitas vezes inexistente
em poéticas que a si se chamam destes epítetos. Aqui o quotidiano é o
espaço dos afectos, da memória, de um certo "olhar socio-económico"
e até político - veja-se a ironia do final do excerto -, estamos a léguas
do frio quotidiano de muitas poesias.
Este post será imediatamente retirado se a Maria Toscano, ou alguém
em seu nome, nos disser que a supressão de texto atraiçoou o espírito
do poema, pois a nossa intenção era precisamente o contrário: revelar
uma poesia que merece ser mostrada.)