04/11/13

 
 
 
  " Secção 2 da Parte I do Poema Gente Dois Reinos "
 
 
 
Depois foi o dia do jardim. Do templo
aberto por certeiro acaso, como dizem
todos os peritos do não destino: sábios
magnificentes do que não se sabe, nem
sequer uma única vez. Foi o dia em que
te abri o passado, para que alguém
- finalmente - o destruisse na imperiosa
urgência que um outro de mim pudesse ousar
e, destecendo finíssimo casulo, um caminho
- impoluto - me pusesse à frente sem álibis
nem veredas. Sim, era mais um dia entre o éter
e o fogo, esses dois reinos que sempre somos,
mesmo se por momentos não os vemos
ou tendenciosamente os iludimos.
 
 
Mas talvez tu não existas. Talvez tu não
sejas mais do que a projecção de mim
criança, neste mesmo templo, pela mão
de uma qualquer criada velha, assistindo,
cheio de tédio, a um rito que não entendia.
Talvez tu não estejas ali à minha frente,
a observar cuidadosamente a talha dourada,
as imagens, os retábulos. Ah, os retábulos!
Quem sabe se não és apenas uma das suas figuras
que da fixidez cromática decidiu sair para questionar
meu ser e ausência? Talvez tu não sejas tu,
e eu, de máquina em punho, e a fazer zoom
para melhor te captar, não seja mais
do que um esgar aberto sobre a vastidão do vazio.
 
 
Talvez nada de ti exista, nem tão-pouco
a tua voz agora a meio metro de mim: " sabes
que no altar-mor está o túmulo de uma filha
de D. Manuel? " Mas que poderia eu saber
quando, naquela altura, tão ao invés do corpo,
do fogo e dos sentidos? E tu a perscrutares
o templo, esse templo de que fomos
chamados a cuidar e que, em medalhados
corredores de fundo, ao fundo atiramos
sem remorso nem culpa. Tu num dos cantos
mais sombrios, entre o roxo e os espinhos,
com um Cristo a lembrar-me um poema
de Antonio Machado. E eu a fixar esse ígneo
instante, esse efémero que transbordava.
 
 
Eu a querer, mas a máquina a não obedecer:
nem filtros, nem zoons, nem luz... nada!
Apenas o negro no pequeno rectângulo
que te desolava: " Vês, perdi a aura,
não consegues a foto porque perdi a aura
e nem sequer ao pé do Cristo ela aparece "
Quis dizer-te que não, que tudo era eu:
esta inaptidão para com uma mera lente
te roubar a alma; sim, esta minha incapacidade
danificara a máquina, baralhara as perspectivas,
curtocircuitara direções... Tudo isso quis eu
dizer, mas desculpei-me com esse acaso
em que não creio. E, por fim, vi de novo
a minha infância no resplendor do templo.
 
 
Vi a pequena imagem bordada a azul
e ouro. Vi a simetria das naves, o púlpito,
os adamascados, o enorme retábulo central
para onde, aos poucos, ias recuando:
essa terrífica pintura barroca onde o excesso
de dor sempre me repugnara
no que transmitia de domesticação
e de recusa da alegria que todo o sagrado é.
Tu agora disperso na estridência das cores,
numa percepção impura, como todas;
numa relação fantasiada, como todas também.
E tudo isso para que eu atravessasse
a porta, tal como entrara: circunspecto,
perdido, só - ah, tão entranhadamente só!
 
 
   Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 19 - 21.
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