À mercê das tempestades que tornam ainda mais inóspitos os espaços de areia e pedras que são os desertos, estes poemas fazem-se. As mãos traçam-nos, meticulosamente. As mãos sabem que tudo é evanescente, como as dunas, que apontam direcções, mas também podem ter um efeito alucinatório para os imprudentes; talvez por isso: "os homens vagueiam (...) com desespero no tosco emaranhado das dunas. " São mãos nómadas e errantes. Mãos que resgatam as palavras, os afectos, a natureza humana, do seu carácter transitório.
Retomando a tradição dos grandes caminhantes como Bashô - atrevo-me a afirmar que o Victor Oliveira Mateus é um leitor atento da Poesia e da Filosofia do Oriente, expressas em referências subtis como a flor de Lótus - o deserto torna-se o centro de todas as errâncias: da errância dos nómadas e da errância que acompanha a busca espiritual. Angel Silesius desejava subir mais alto que Deus, no Deserto, para atingir a indiferenciação do princípio, mas o deserto é um signo de uma ambivalência incandescente na sua "fértil aridez", porque é o lugar da sede, do terrível e do sublime, das extensões infinitas onde nos perdemos e morremos, por isso o eu se resguarda: "O meu lugar é um minúsculo e límpido poço." O deserto é o espaço de ressonância para o grito do poeta que, embora seja o buscador ( o "aceitante") dos mistérios imperscrutáveis, vive ainda no caos infernal de um tempo iníquo - paradigmático dessa realidade é o poema 14. No entanto, não se pense que este escriba dos desertos (a conotação do deserto pluraliza-se continuamente) se superioriza em relação aos que cedem a toda a sorte de miragens - embora no poema 4 a "Senhora da morte eterna" encarne os fenómenos da máscara, ostentação e jogos mistificatórios rejeitados definitivamente pela natureza do poeta, o poema 8 é uma prece para que nunca o próprio sujeito seja um subvertor da ética: "Meu Deus, fazei com que os outros não me atraiçoem nunca e, sobretudo, que eu nunca os apunhale na sua dignidade! Dai-me a suprema lucidez do Viandante...". No poema 9, o sujeito da enunciação assinala o perigo que o abismo encerra; respira, de quase alívio, no poema 15, porque a sua voz, embora enfraquecida, "canta o outro lado do abismo"; apesar do desalento dos primeiros versos: "sei tão pouco de tudo/ tão pouco! Tantos anos gastos a pensar, para afinal descobrir a pouca importância das coisas", o eu escreve, e cada linha do poema é um testemunho necessário para que a fertilidade aconteça, porque só a obscura transparência da palavra pode ficar como testemunho do vivido, como aprendizagem.
Este é um livro de uma viagem iniciática, que tem por principal leit motiv o desejo erótico: o rosto do "tu" inscreve-se como uma nervura - a princípio indelével, depois mais funda, em todos os signos do desejo que afloram nas linhas do livro. O "azul desmaiado dos olhos", o corpo do outro, "essa figura sentenciosa de beduíno", as suas palavras, fazem parte do espaço - que nunca finda - do deserto. O deserto é o território do absoluto e da solidão interior - a comunhão erótica procura um mais além, "aquilo que o excede a mim entrega." A alteridade imprevisível do outro abre uma ferida no conhecimento do mesmo: uma ferida, ou uma brecha. Por essa alteridade, se acede a uma liberdade sem limites, a uma consciência mais profunda. O erotismo é uma via para aceder ao absoluto, e, como tal, também inflige provações em quem padece, tece as suas armadilhas: a princípio o olhar do tu parecia ser de escárnio, mas, aos poucos, se foi instituindo olhar de desejo, flecha apontada numa só direcção, certeira, invencível: "... e a minha fuga um pássaro degolado pelo teu corpo." (poema 11)
No deserto, há fios invisíveis que se infiltram entre os grãos de areia e vão fendendo paulatinamente o território antigo. Fundam outro deserto. O amor é o órgão para se ver a Deus, escreve Simone Weil. O corpo é consagrado nestes poemas: "E é o teu corpo nu, exausto, branco como um templo, porque todos os corpos são um templo no solo consagrado que há." (poema 21). O rosto amado é o lugar do indizível segredo. Não há transubstanciação do eu no outro. Há comunhão, há a maravilha deste outro como eu que me ama na noite, parece ciciar-nos o poeta. Eis a primeira noite de Novalis: acolhedora e manancial de conhecimento; o corpo tem a nudez de uma pedra. O conhecimento lítico do deserto de Lucchesi. Nestes poemas, ardemos no centro do amor.
Para Octavio Paz, o erotismo é uma metáfora do conhecimento e o corpo lido no poema (o esplendor do corpo) é um criptograma, um meio de decifração de sinais que preparam a descoberta do mundo. Cabe à palavra do poema preparar um outro sentido para o mundo. Cabe às mãos - acantonadas no deserto - serem o elemento que indica os caminhos do Erotismo e da Poesia, ainda que, como os místicos que sabem que a desvelação de um mistério nunca é completa, o sujeito hesite em atribuir um nome ao "êxtase do que pressinto": "misto de assombro e agonia, estranho dizer, talvez poesia."
Eu bebi a água da minha sede na cintilação das areias desta escrita.
Isabel Aguiar Barcelos in Mateus, Victor Oliveira. Pelo Deserto as Minhas Mãos. Carcavelos: Coisas de Ler Edições, 2004, pp 7 - 9.
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