04/03/10


Tão verdade que já estavam na vila os carros dos engenheiros e as máquinas de lavrar - informou outra voz. Vinham portanto os cães do Governo escorraçá-los da serra! Então o dia do juízo estava a amanhecer!
Governo para o aldeão é sinónimo de Estado e de tudo o que dá leis, uma quadrilha de olho vivo. Já lhes levavam coiro e camisa em contribuições, tributos, posturas, alcavalas de vária ordem, e vinham ainda esbulhá-los da serra! Hoje a serra, amanhã, por uma razão análoga, corriam-nos de casa para fora. Ah, cachaporra dum santo! O que todos queriam era viver à custa da barba longa, mãos brancas com bons anéis, bom automóvel, amigas para o gozo e criadas para todo o serviço que vinham buscar aos viveiros da plebe, cabritos gordos que se criavam nos ferregiais, e trutas que eles serranos estavam proibidos de pescar nos seus rios. Que maiores carrascos e ladrões!?
Esta era a noção que tinham do Governo. O Governo não era formado por um corpo de homens bons e sábios, com função directiva, reguladora e distribuidora dos bens comuns, e atentos à promulgação e defesa do direito? Qual quê? Bandoleiros das encruzilhadas e gorgulhos silenciosos das arcas e larvas da carne é que eles eram!
- Morram! - rouquejava a voz irosa pelas vielas das dez aldeias.
Uma vez a correr o rumor de que o Governo ia tomar posse da serra, o problema transcendia para o terreno do assalto e roubalheira à mão armada. Em brejos e chapadas, os roçadores endireitavam a suã e, queixo por cima dos punhos, apoiados ao cabo da roçadoira, olhos em alvo, quedavam-se a considerar. Alguns amortalhavam o seu paivante. Os mais jogaram fora a enxada:
- Se me hão-de levar o mato, já não roço mais. Puta que os pariu!
Foram-se juntando e alagando os ecos com sua grita de incêndio.(...) Tudo a postos, sem que soasse o clarim! Ia-se ver quem os tinha no seu lugar. Parada da Santa era a sede do quartel general, uma vez que ali residia o mais afoito e denodado dos serranos, homem de cabeça e de pulso, o João Rebordão. Este, por fas ou por nefas, estava arvorado em caudilho. Mas ele queria e, tomando a investidura a capricho, desatou a dar ordens de alevante.
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Aquilino Ribeiro in "Quando os lobos uivam", Livraria Bertrand, Lisboa, 1974, pp 196 - 197.
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