21/06/09

Inocência Mata escreve sobre Arménio Vieira.

Arménio Vieira é um escritor que sempre me intrigou. Lembro-me de o ter visto pela primeira vez - não conhecido, pois nunca fomos apresentados - numas férias em Cabo Verde. Estava com a minha amiga e anfitriã, Evelina Santos, e entrámos num bar-restaurante da Prainha. Lá estava ele, imerso no seu jogo, beberricando a sua cerveja, e ela apontou-mo: aquele é o Arménio Vieira, mas não tenho relações com ele por isso não to apresento... Entendi, por isso, que não seria gente de grandes aberturas com quem não conhece. Ademais, parecia completamente alheado de tudo, apenas concentrado no seu jogo.
Era, à altura, autor de apenas dois livros de poesia. Poemas (1981, que seria reeditado em 1998) e O Eleito do Sol (romance, 1990) - um livro em todos os títulos original. Seguir-se-iam, para além da reedição de Poemas, No Inferno (romance, 1999) e MITOgrafias (poesia, 2006).
Apesar de ser por causa do Prémio Camões que Arménio Vieira salta para a ribalta, não serve este apontamento para falar da pertinência do prémio e da sua justeza. Nem da justiça (finalmente feita!) a Cabo Verde - como já ouvi. Julgo que este Prémio, que não deveria ser político (apesar de o ser, pelas afirmações de pessoas responsáveis), distingue o escritor e, através dele, o sistema nacional em que se insere o escrito - não o contrário: não se distingue o sistema elegendo um escrito, mas distingue-se aquele escritor e, por implicação, aquela literatura! Além de que o mais alto galardão literário da língua portuguesa, língua oficial de oito países, é uma criação de... apenas dois países! Claro que haverá quem diga logo que o Prémio Cervantes é criação de um só país, mas não acredito em argumentos de "jurisprudência" nestes casos...
Falemos, pois, da originalidade da obra do santiaguense Arménio Vieira, escritor já distinguido no seu país, pela Associação de Escritores Caboverdianos, é um escritor inclassificável mesmo no panorama literário cabo-verdiano. Pertencendo, se assim se pode dizer, à geração da folha Seló- Página dos Novíssimos (suplemento literário do jornal Notícias de Cabo Verde, cujos dois únicos números são de 1962), Arménio Vieira pontua ao lado de nomes porventura injustamente pouco estudados pela/na academia: Maria Margarida Mascarenhas, Jorge Miranda Alfama, Mário Fonseca e Osvaldo Osório (além de Rolando Vera-Cruz Martins, que acabou por não integrar a galeria do registo autoral da literatura cabo-verdiana).
Conheci a poesia de Arménio Vieira pela mão do meu eterno mestre Manuel Ferreira. Uma poesia (ainda) intensamente telúrica mas simultaneamente metafísica, estranhamente narrativa mas substancialmente lírica, feita de ressonâncias deslocalizadas culturalmente mas também localmente cabo-verdiana. Potenciaria essa pulverização de "contaminações" culturais em MITOgrafias, livro feito de poemas construídos a partir de referências de leituras e de afectos literários, revelando excentricidades de influências, geografias e temas: literatura, filosofia, história, teologia, condição humana.
Porém, apesar de No Inferno ser porventura a obra mais insólita da literatura cabo-verdiana, pela singularidade genológica que caracteriza a urdidura romanesca (estilhaçamento sintáctico e de vozes narrativas e ausência de uma intriga que conduza o fio da narrativa), O Eleito do Sol é mais desafiante na sua inserção no sistema.
O Eleito do Sol começa por estilhaçar a caboverdianidade "tradicional", feita de marcas de insularidade geográfica, ambiental, sociocultural, ideológica e psicológica, criando uma história que se passa no Egipto antigo, protagonizada por um escriba pícaro que, pela subtileza de espírito, pelo saber e pela astúcia, consegue vencer um faraó - personificação do poder político instituído, inerte e incompetente, adverso a qualquer ideia de mudança e confrontação de pontos de vista. É, aliás, esta bizarria romanesca que faz deste romance um caso singular na literatura cabo-verdiana: socorrendo-se de um discurso alegórico, uma realidade política codificada, para dissimular a sua inscrição no domínio político, através da feição (pseudo-)histórica da sua ontologia, a construção de imagens daí decorrente vai dando forma a ideias cuja interpretação só parece fazer sentido dentro do próprio texto, sem qualquer ligação com o contexto sociocultural e político. Daí muitas vezes surgir o cómico pelo desfasamento entre o que é dito (que nem sempre faz sentido) e aquilo para o qual remete: o poder destituído de saber, vivendo numa inactividade conservadora e que aos poucos vai sucumbindo a uma nova topia (espácio-temporal) protagonizada por alguém que, "como herói de certas histórias", se safa sempre na hora H. Desse labor astucioso resultam um novo regime democrátrico, uma nova forma de fazer política, a destruição de categorias sociais ditadas pela vinculação a uma "dinastia".
Alguma ligação com o Cabo Verde a sair do monopartidarismo por estas alturas, 1990? Apenas se desconsiderarmos a remoticidade da fábula fazendo com que o assunto adquira actualidade no capítulo das relações de poder.
Já se disse do Prémio Camões que preferia a ficção à poesia - apesar de Miguel Torga (1989), João Cabral de Mello Neto (1990), José Craveirinha (1991), Sophia de Mello Breyner Andresen (1999) e Eugénio de Andrade (2001). Na sua 20ª edição o Prémio Camões distingue um escritor que é poeta e romancista. Talvez por isso grande parte de notícias se refira a Arménio Vieira como poeta. Porém, para mim, surprende-me mais a imaginação do ficcionista.
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Inocência Mata In "J.L. de 17 a 30 de Junho, p 10.
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