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*
De meu e teu que resta
entre os ramos e o voo
das andorinhas?
Podes
convocar as palavras, adicionar
à voz o espanto, a ira, esgrimir
com as mais ásperas
vogais. Da morte
e seus juízos imutáveis
não há reccurso.
*
Pondero a têmpera, a feição
dos novos, ingénuos
utensílios, avalio
a transparência mineral dos gestos
mais antigos e das lágrimas
defuntas, agora calcinadas.
Cedo
ao mármore a insalubre vocação do silêncio.
*
Outros
foram os dados, outra
a mesa. O jogo,
não. A mesma
lâmina esgrime
entre a sutura
e o álcool.
*
Dêem-me um arco e recriarei a infância,
os tordos sob a neve,
o rio sob as águas.
Dêem-me a chuva e a gávea
duma figueira,
a flor dos eucaliptos,
um agapanto de água.
*
Levo comigo as árvores,
os lagos,
o vento - as suas cestas
de merenda e volúpia.
À beira
dos relâmpagos planto
uma araucária, uma raiz
de espadas flutuantes ou adagas
floridas - o crepúsculo,
talvez, cinzenta
espuma volátil
de beijos e de lágrimas.
(...)
*
De novo disporás
a lenha
sobre a pedra. Seco
e rente, nela
repousarás.
Ou no discurso
irredutível ao
som das moles
águas crepusculares.
*
Devolvo
à nascente o fluxo, ao mar a indomável
surpresa da corrente.
Posso
agora olhar
ileso os poros, repousar
a cabeça entre os líquenes - substância
minha austera, meu
chão de larvas e fadiga.
*
Chegam no dorso do verão, como asas
mortas de estorninhos lentamente desfolhadas.
Um marco geodésico de sombras e desen-
contros.
A maresia da noite.
Albano Martins in "Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto,
2000, pp 165 - 169.
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