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" Canários "
Eles são verdes, amarelos, castanhos,
vermelhos: de todas as cores do arco-íris.
Eles são um arco-íris com asas. E eu, que amo
a liberdade a qualquer preço, apaixonei-me
por um, certa vez, e meti-o numa gaiola.
Desse acto perverso me havia de arrepender
depois. Tratei-o com desvelo, dei-lhe um
lugar arejado e luminoso (conspícuo, como
diria Garrett) e assim me fez companhia por
algum tempo. Morreu semanas depois, de
saudades ou de solidão, ninguém sabe, ou
foi guilhotinado pelo descuido da empregada
doméstica, durante a minha ausência no
Brasil. Tinha morrido, ou fora morto, ou
suicidara-se. Quando voltei, encontrei a
gaiola vazia, sem o mínimo sinal ou aviso -
um bilhete sequer, de despedida.
E nunca mais houve pássaros engaiolados
cá em casa. Minto. Que os houve, sim,
mas em trânsito para o Brasil, onde tenho
um amigo que a essa profissão - não única
ou exclusiva, todavia - se dedica. Tenho-me
esforçado por convencê-lo de que também
os pássaros têm direito à liberdade. Responde-me
que os canários são aves de cativeiro, como se
alguém (e alguém são, naturalmente, as aves)
já nascesse prisioneiro. (Reconsidero: todos
nascemos prisioneiros, sim, mas de outras
prisões, de outras gaiolas mais sofisticadas,
de grades metafísicas, embora dessas e de
outras filosofias não cuide aqui.) E com ele
insisto, sem sofismas (...): mas quem nasceu
com as asas recebeu-as para voar, e não
como adorno ou instrumento de eventual
serventia (...).
Não. Se os canários são aves de cativeiro
e objecto de duvidosas experiências de
laboratório e ourivesarias ornitológicas,
para gáudio de coleccionadores e ladrões
da liberdade alheia, foram os homens que
as tornaram cativas. A eles compete, pois,
devolver-lhes a liberdade roubada. Porque
de multiplos cativeiros está cheia a história
dos homens. Todos injustos. Todos afectando
inocentes. O homem é assim: usa a fragilida-
de alheia para afirmar a sua força e impor
o seu poder. Mas todas as masmoras um dia
se abrem e nelas encontram guarida os seus
construtores. O despotismo, a que alguns
chamaram iluminado, é próprio do reino das
sombras, não da luz. E a luz não pode ser encar-
cerada. Melhor: a luz não se deixa encarcerar.
Por mais submissa que se mostre ou ordeira
que se apresente.
Albano Martins in "Assim são as algas, Poesia 1950 - 2000", Campo das Letras, Porto, 2000, pp 319 - 321.
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