02/10/11

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Américo não quer olhar, mas não consegue não olhar, e o filho acorda aos berros.
" Vou já... "
O miúdo não para.
" Vou já, caramba! "
Mas Joaquim grita-lhe de volta e Américo levanta-se. Para tentar acalmar a criança, trá-la para a sala, senta-a ao colo e liga a televisão no canal do futebol. Veem o Lichtenstein-Malta. Um jogo amigável (...).
Joana chega ao fim da tarde, muito cansada mas a desbobinar discursos infindos que Américo faz os possíveis por esquecer na hora, monólogos cheios de voltas e voltinhas sobre " os problemas surreais da concretização do plano de controle da qualidade do azeite neste país ". Mal conseguem deitar o Joaquim, jantam umas coisas congeladas, pré-cozinhadas, almôndegas e um misterioso paralelepípedo verde que, na embalagem, se anuncia otimisticamente como " concentrado de legumes ". Veem um concurso na televisão e depois ela ainda trabalha um tempo no computador. Durante essa meia horita, Américo põe a loiça na máquina.
É a coisa que mais odeia no mundo. Pegar nos pratos empastados de puré e molho, com restos de carne ou peixe ou vegetais (...). Os restos de comida nos pratos empilhados lembram-lhe sempre o Pai doente e paralisado no hotel-clínica Descanso Feliz ali para os lados de Sintra. Quem vai no IC-19 vê o letreiro grande à direita, um grande anúncio com dois velhos sorridentes e as letras " Descanso Feliz " como que escritas à mão (...). O pai de Américo é o homem de cabelo branco junto da mesa onde se joga à bisca e à sueca. Está sentado naquela cadeira-de-rodas há quatro anos já. Um acidente numa quarta-feira em que levava o televisor novo para casa. Um Plasma Hayku Flash 3.0 de última geração com dois comandos incluídos. Escorregou nos degraus do centro comercial, a caminho do elevador para o parque de estacionamento. Primeiro não parecia nada de muito grave, depois deixou de se poder mexer e, por fim, começou a ter " alterações de personalidade ". Berrava, insultava desconhecidos sem razão, chorava e gargalhava a despropósito, passava horas sem dizer uma palavra, de olhos fixos num pormenor sem importância nenhuma, uma mancha na parede, uma mosca, um resto de pó na cabeça do Santo António da sala de estar. Era professor de Antropologia Cultural. Talvez por isso, o seu insulto preferido, nesses meses a seguir ao acidente, fosse: " Pigmeus de merda! " Usava a expressão a torto e a direito, metralhando com ela o mundo todo, como se o mundo fosse culpado da tragédia. Quando a mãe de Américo se separou dele e a família o deixou no Descanso Feliz, foi um alívio para todos. Américo acredita que também para o Pai. E, no entanto, claro, são coisas que marcam.
(...) Quando regressa à cama, Joana pergunta-lhe se está tudo bem. Américo diz que sim. Despe-se devagar, põe o pijama às riscas que a empregada deixou dobrado debaixo da almofada. Uma moldava alta e simpática que o intimida um pouco. Chama-se Ada. Escrever-se-á assim, um nome em capicua? Deitado, com os lençóis puxados até ao queixo, tenta imaginar alguma coisa divertida como de tarde.
A Ada como enfermeira perversa. Não é por nada, só para se entreter um bocado enquanto não adormece. Ele é uma espécie de herói-doente-de-guerra e está numa cama de hospital a fingir que dorme mas na verdade atento, concentrado, ouvindo-a aproximar-se. O som dos tacões no chão hipotético. Américo começa a ficar contente, cada vez mais contente, antecipando, imaginando. Ada, Ada. E ele vira-se e abraça-a, mas já sem a loucura de há pouco porque percebe que não é, claro, a Ada mascarada de enfermeira perversa, é a sua mulher, a legítima Joana, com vontade de cumprir calendário e mostrar o quanto gosta dele e como são felizes, quão normal e bonito é o postalinho de casal perfeito dentro do qual vivem.
Enquanto se mexem, e ela lhe sussurra ao ouvido uma lengalenga monocórdica sobre "visualizá-lo" de visita ao trabalho dos azeites daqui a uns anos, para a comer no gabinete de Subdiretora, com os colegas e chefes do lado de lá da parede a carimbar relatórios e circulares e documentos oficiais de chacha sem suspeitarem de nada, ele fica de olhos abertos, virado para a parede. Diz que sim, pois sim, àquela fantasia tão frouxa, e fixa um risco preto na parede branca, um detalhe insignificante (...). E depois ela dá um gritinho e ele deixa-se ir, ah. Acaba tudo, vão dormir.
" Meu amor ", diz ela.
" Minha querida ", diz ele.
Mas continua sem sono. Espera: conta até cem, para dentro. Espera mais um pouco. A respiração da Joana soa diferente, mais lenta e ritmada, já dorme, de certeza.
Américo levanta-se, calça as pantufas, desliza melancolicamente até à cozinha. (...) Nada. Não há. Acabou o chocolate, como é que é possível? (...) Sente um vazio horrível. Devia comer alguma coisa que lhe acalmasse este mal-estar sem nome, que lhe alimentasse diretamente a parte feliz da cabeça, mas o quê, porra?
(...) De regresso ao quarto, apanha um susto danado.
" O quê? " pergunta-lhe Joana, muito alto.
" Nada. Tudo bem, querida... Fui só à casa de banho. "
Joana não faz mais nenhuma pergunta, ele fica calado também. Espera meio minuto no escuro sem se mexer, e deita-se. Depois sustém a respiração, espreita-lhe a cara. Parece ter voltado a adormecer. Ou talvez não tenha chegado a acordar, afinal, talvez tenha dito aquilo dentro de um sonho qualquer. Talvez esteja a sonhar que está a dormir e que alguém entrou na cama dela. Pois, a cama dela. É isso que Américo odeia naquela casa. É tudo dela ali, a cama e tudo, tanta tralha inútil e nada realmente dele.
Esta noite, nem luzinhas no teto.
Vira-se para fora, para o lado contrário ao da mulher, fecha os olhos. Agora é a sério, é mesmo para dormir, silêncio total. Como diz o Surdo na cena final do Auto da Pura Retórica, a famosa farsa atribuida a um mestre da corte de D. Sebastião, " Oh Silêncio, não fôsseis vós tão tagarela e as cousas do mundo falariam realíssimos mistérios... " Foda-se, o que ele não dava por um daqueles chocolates de 70% cacau.

 Jacinto Lucas Pires in " O verdadeiro ator ", Edições Cotovia, Lisboa, 2011, pp 38 - 45.
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