15/10/11

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- Estou realmente a perder qualidades. Essas e outras.
- Tem juízo! - exclama Matilde, engasgada com um bocadinho de bolo. E depois: - O que te prejudicou foi a ortodoxia da situação.
Faço um apelo mudo, muito mastigado, a uma explanação mais vasta, e ela prossegue:
- Há algo de deprimente nas situações ortodoxas.
- Ortodoxas?
- Claro, meu querido! Queres coisas mais ortodoxas que um estilo de vida burguês temperado por uma literatura decadente? A tua Anne é... digamos, stendhaliana. Uma stendhaliana dos nossos dias. Conheço o género. Ela sentir-se-ia perfeitamente frustrada, des-classificada, se não fosse as suas facadinhas no matrimónio. A classe a que ela pertence exige-lhe essa desenvoltura secreta, mas secreta só até certo ponto. Quando ela passa, gosta de ouvir uns zunzuns. São os comentários do seu êxito social. São eles que a confirmam "classificada". Ela também os faz por conta de outras. Intercâmbio de maledicência, mas com boas intenções. É preciso explorar esses zunzuns, tirar deles todo o partido, pelo menos até ao sinal encarnado, que é o ponto em que a respeitabilidade se ressentiria, e ela, em vez de adivinhar zunzuns à sua passagem, começasse a defrontar olhares inequívocos de menosprezo. O que poderia significar uma " des-classificação ". É preciso conhecer a medida certa. Enquanto a tua Anne não deitar por fora, a classe a que ela pertence...
- A classe a que ela pertence!... - repito, com a sensação de um martelar doloroso algures na minha cabeça.
Matilde reclina-se. Fechou os olhos e conclui, já semialheada do meu problema, que o não é.
- Oh! É tudo tão ortodoxo! Não me obrigues a explicar-te mais. Estou, afinal, a falar de coisas que não conheço, duma classe a que não pertenço, dum mundo onde não existo. É como fazer o inventário do Palácio de Versalhes sem nunca lá ter posto os pés.

 Fernanda Botelho in " Lourenço é nome de jogral ", Contexto Editora, Lisboa, 1991, pp 160 - 161.
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