18/10/11

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tão só
não diga isso, mãe, se é que percebi que nesta casa se sente só. Mas que poderia eu fazer, senão pô-la aqui, onde há todo o conforto de que precisa, onde há enfermeiras e uma cama apropriada ao seu estado? Mãe, não me queira mal, não fique assim, de boca fechada, numa obstinação, essa boca, pressinto-a cheia de palavras que a sua teimosia, o seu rancor não deixam que eu as ouça, Mãe, apetece-me abrir-lhe a boca, à força, com os dedos, enfiá-los por baixo dos lábios e depois com as unhas forçar uma brecha nos dentes, senti-los a abanar, arrancar algum, esses dentes tortos como os de uma caveira, que foram tão lindos, tão lindos, o esmalte tão branco e tão alinhados que pareciam artificiais, parecer artificial era para ti o cúmulo da beleza, o sorriso de uma dentadura postiça. Quando alguém te perguntava: são verdadeiros? Tu ficavas toda contente e dizias: sim, são verdadeiros, e batias com a unha nos incisivos, o som tão saudável desses teus dentes, sim, são verdadeiros: repetias, toda eu sou verdadeira, não só os dentes mas também o corpo. Só te faltava pedir-lhes: toquem-me  aqui, nos braços, nas ancas, nas pernas, vejam como é rija a minha carne, intensa, cheia dos olhares dos homens, vejam como esta carne seduz

vejo-te, minha filha, a inventar-me, e nessa invenção te inventas, e quanto mais me inventas, mais me desconheces. Somos sempre a invenção dos outros e ficamos estranhos na imagem que fazem de nós. Cada um que chegava a mim, inventava-me com o pouco que eu deixava transparecer, pouco da minha alma, que o corpo, esse, era coisa exposta, mas o desejo dos homens afastava-me deles sem eles o saberem, e apagava-me a alma. Há muito não dizia esta palavra, alma, ou melhor, não a pensava. Há assim palavras que ressurgem na nossa pobreza, vêm de longe, com o fascínio de um reencontro, e estremecem os lábios como se as soletrássemos pela primeira vez.

inventamos João, que inventa Maria, que inventa Pedro, que inventa Manuel que inventa, até o círculo se fechar e não sermos mais do que invenções, até a realidade desaparecer, a minha, a tua, a daquele, a nossa tristeza, a dor, o riso, o desejo. São sempre os outros que nos inventam e por isso estamos sempre sós, não podemos estar de outro modo, na clausura dessa invenção, percebi-o muito cedo, quando me queixava: dói-me o estômago, e me respondiam: isso não é nada, mas o pior não é inventarem-nos, é agarrerem-nos no braço e dizerem: faz isto, e acrescentarem: quero que faças isto; o pior é passarem por nós e perguntarem: querida, a que horas é o almoço? ou: volte-se, e sentirmos nas costas a camisola de flanela, o bafo húmido no pescoço

(...) Estou exausta e vou deitar-me no meu lado da cama, à esquerda, desamparada pelo espaço vazio à minha direita. Tenho medo de adormecer. Tenho medo de acordar, perto do homem, sentado no colchão, a descalçar os sapatos. Vejo-lhe os ombros, o cocuruto da cabeça em desalinho, a alça direita dos suspensórios a escorregar-lhe para o braço e a camisa arrepanhada nas costas. Fala, fala, fala. Um sussurro ininterrupto. Fala para ninguém, curvado sobre os joelhos. Parece muito pobre, no abandono de um qualquer futuro. Tanto lhe faz o futuro. Ou o presente. Está para ali, a tentar desfazer o nó dos atacadores, a língua entre os dentes, numa aplicação de criança infeliz, ouço-o respirar, todo o quarto respira, e eu respiro também ao mesmo ritmo, muito quieta, como se nunca mais me fosse mexer (...). Gemo. E ele cala-se, volta-se para mim e pergunta: você está a dormir? Apetece-me responder-lhe: estou e começar a rir. Você está a dormir?: repete. E encolhe os ombros (...). E as mãos voltam às calças, empurram-nas para baixo, vencem a resistência, e deixam-nas numa trouxa sobre os pés. Vai assim de futuro em futuro. Pequeninos e opacos, os seus futuros. Dá um passo, tenta dar um passo: diz a mulher. E o homem dá um passo minúsculo, peado pelas calças. Vá, outro passo: diz a mulher: um passo maiorzinho. E o homem quer dar um passo maiorzinho. E tropeça nos pés. Desequilibra-se. Leva a mão esquerda à fotografia sobre a cómoda. A do seu casamento. (...) mas ela sabe que homem é este, há tantos anos: é um estranho, ou melhor, um desconhecido: é o meu desconhecido, como sua avó dizia de alguns pobres: são os meus pobres. E a mulher riu-se,
e o homem perguntou-lhe: de que se está a rir?
E a mulher disse-lhe, a rir: de ti,

 Rui Nunes in " Os Olhos de Himmler ", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2009, pp 50 - 53.
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